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4. APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

4.5 O sistema da transitividade nas cantigas de amigo

4.5.1.2 O trovador como Experienciador

Nas cantigas de amigo é a donzela quem agora entra na mente do trovador e diz por ele, entretanto, o caráter dialogado do gênero permite que o próprio trovador, ocasionalmente, diga sobre seu ‘pensar’, ‘sentir’, etc. Vez ou outra é uma confidente da donzela, aquela que traz recado do namorado, quem revela o estado mental dele.

A mudança do gênero não muda a situação do trovador nesse nível. O trovador ainda é aquele que ‘sofre’, mas o motivo é outro: a distância da amada.

A donzela, falando pelo trovador através dos processos mentais, demonstra certa ousadia - claramente uma das distinções entre as categorias de fenhedor e precador. Nas cantigas de amor o eu-lírico trovador não entra na mente da donzela para expressar seus processos mentais, ao passo que nas cantigas de amigo, isso ocorre, mesmo que timidamente. Nesse sentido, as amarras da cortesia foram parcialmente removidas para o precador.

Notamos também que esses tipos de processo revelam a “intromissão” do trovador nas cantigas de amigo. Numa sociedade muito focada no universo

masculino, mesmo quando o trovador deixava a donzela ser eu-lírico (cantigas de amigo), sua perspectiva não é inteiramente abandonada. Prova disso são os processos mentais emotivos, que ocorrem na mesma proporção com a donzela e com o trovador como Experienciadores; dezenove (19) processos. Com o trovador, o que se enfatiza não é diferente das cantigas de amor: o ‘amar’ e ‘pesar’ do trovador diante da impossibilidade de realização do amor, no entanto, os reveses, nesse nível, são equilibrados para o favorecimento da donzela e do trovador. Por exemplo, na cantiga X, o que se diz em: “Ca de uos el amar de coraçon”94 é positivo para ambos.

As cantigas de amigo também apresentam um bom número de processos perceptivos com o trovador como Experienciador (11,56% do total de mentais). Tais processos expressam:

a) o lamento dele por não tornar a ‘ver’ ou ‘ouvir’ seu amor, então distante (em onze [11] processos). Essa mesma circunstância é igualmente comum no gênero amor, a diferença, nesse caso, é o fato desta ‘saudade’ ser bilateral e não ‘unilateral’ como nas cantigas de amor. A donzela e o namorado sofrem com a distância: “ca o non vi, nen vio el mi,”95 – cantiga III;

b) o mau agouro do dia em que ele viu/ouviu a amada – a marca do início do sofrimento. Esse traço, característico do gênero amor, é algo muito menos acentuado nos cantares de amigo, como ratifica o número diminuto de ocorrências, somente sete (7): “- Hu uos en tal ponto eu ou falar,”96 – cantiga XX;

c) o namorado que viu/ouviu a namorada, sete (7) processos: “E com ousara catar estes meus/Olhos,...” (metáfora do processo: = ver) – cantiga XIX;

d) a donzela falando pelo trovador através dos perceptivos, doze (12) processos: “pero, quando me viu, disse-mi assi:” – cantiga XXII.

Por sua vez, os poucos processos cognitivos nos cantares de amigo (5,93% do total), na configuração: trovador = Experienciador, representam:

a) o ‘pensar’ e o ‘saber’ do trovador. A consciência do mal estado em que se encontrava sua amada sem sua presença. Esse contexto mostra uma situação desfavorável à donzela, contudo também não é benéfica para o trovador. A relevância destes processos é seu número diminuto, apenas seis (6), não os

94 Paráfrase: Pois ele a ama de coração

95 Paráfrase: porque não o vi, nem ele viu a mim, 96 Paráfrase: - Onde você em tal lugar eu ouvi falar,

tornando suficientes para mudar o alvo “mal agourado” na côrte amorosa (para a donzela): “E sab el que mi faz Pesar,” – cantiga XXXI;

b) o lembrar na namorada aparece apenas em duas cantigas (III) e (LI); c) o rogo à amada: ‘creia’ em mim. Esse dado é importante quando confrontamos os gêneros. Surpreendentemente, nas cantigas de amor, em vinte e três (23) ocasiões o trovador fenhedor, como eu-lírico, pede através das imperativas que a donzela ‘creia’ e se ‘doa’ por ele. Já nas cantigas de amigo, o trovador pede que a donzela ‘creia’ nele apenas em duas (2) cantigas, e sem imperativa (“Mays podedes creer muy bem”97 – cantiga VIII; “Que mi Deus deu; e podedes creer”98 – cantiga XXXVIII), ou seja, neste gênero é a donzela, na condição de eu-lírico, quem usa mais imperativas para ‘pedir’ a volta e o amor do namorado (papel de precador);

d) Em apenas cinco (5) processos a donzela fala pelo trovador, o que ele ‘sabe’/‘pensa’ ou não ‘sabe’/‘pensa’: “Sab el cax [h]e no meu Poder.”99 – cantiga XI.

Quanto aos mentais desiderativos, a diferença entre as cantigas de amor e amigo é que, as últimas, apresentam a donzela (eu-lírico) entrando na mente do trovador e dizendo seu ‘querer’ (com raras exceções). Nesses doze (12) casos, o ‘querer’ do namorado é benéfico para a donzela, pois ela o ‘quer’ (“mi vós podessedes querer,”100 – cantiga XXIV). Contrariamente, nas cantigas de amor, o ‘não-querer’ da donzela em relação ao trovador enfatiza o tom melodramático e negativista do gênero amor.

Enfim, as imperativas com os mentais nas cantigas de amigo trazem o apelo da donzela para que o namorado dê credulidade a sua situação. O baixo número de imperativas com o trovador como Experienciador, onze [11] processos, metade do total nas cantigas de amor, é fruto da pequena necessidade da namorada em fazer o amante compreender sua situação, já que a cumplicidade dos interlocutores é fato pressuposto.

4.5.1.3 Deus como Experienciador

97 Paráfrase: Mas pode crer muito bem 98 Paráfrase: Que Deus me deu; e pode crer”

99 Paráfrase: Sabe ele que (isso) está no meu poder. 100 Paráfrase: vós podesse querer a mim,

A presença de Deus como Experienciador nas cantigas de amigo é mais rara que nas cantigas de amor (quatorze [14] contra quarenta e um [41] processos). Desses quatorze processos, Deus surge na cantiga XLI tendo conhecimento da situação da namorada (“Que hua, que Deus confonda,”101) e na

cantiga LI, no refrão, com a donzela pedindo sua intervenção (“e quisesse Deus que m’escaecesse”102). No mais, os outros dez (10) processos trazem alguma

variação da expressão idiomática “me valha Deus”103.

Poucas orações com Deus como Experienciador é um fator importantíssimo para delinear as diferenças genéricas dos cantares líricos. Nas cantigas de amigo:

1) intermediários entre a namorada e o trovador não são absolutamente necessários. A posição de precador elimina algumas barreiras da cortesia; o uso de Deus como intermediário é uma delas. Quando surgem intermediários, o contexto de produção dá predileção à amiga ou a mãe;

2) o poder de Deus diminui sensivelmente. Como causa ou conseqüência disso, o eu-lírico deixa de enfatizar o ‘querer’ de Deus, livrando-o sutilmente do papel de algoz. Depois da união dos namorados (pressupostamente permitido por Deus) o que se sucede depende muito mais das intenções dos amantes;

3) diminui o tom dramático e negativista dos cantares, pois não se recorre tanto a Deus como último recurso de uma situação fatal e irreversível.