• Nenhum resultado encontrado

O exame de cento e quatro (104) cantares de amor e amigo de D.Dinis mostra-nos como estão presentes nas produções líricas de D.Dinis, quiçá de toda a produção galego-portuguesa, os posicionamentos de fenhedor e precador – criados dentro da sociedade medieval pela educação, cortesia, ética, estética e princípios da cavalaria.

O homem medieval do velho continente foi forjado nas fartas paisagens da Península Ibérica, nos campos de batalha, que ceifavam a vida de milhares de homens em busca de salvação celestial e em nome de brasões senhoriais. Também, havia os homens de muralhas de fronteira, os pobres citadinos e a “classe” embrionária da burguesia. Dentre os defensores da cruz – um estamento imenso – desde os alegres goliardos162, passando pelos numerosos cistercienses163 e cluniacenses164, ordens mendicantes, chegando ao alto clero de

força e autoridade, todos gozavam de uma particular condição de felicidade. Não esquecendo os domínios da corte, local de riqueza cultural – a festiva e

162 Os goliardos eram “clérigos ou estudantes boémios, que optavam por uma vida desregrada,

licenciosa e recheada de folguedos. Tais foliões encontravam-se em Inglaterra, França e Alemanha, onde se produziu este tipo de literatura marginal. O nome por que ficaram conhecidos deve-se à devoção ao bispo Golias, de quem se diziam seguidores.” (Arias Y Arias, 1975)

163 A Ordem de Cister (Ordo cisterciensis) é uma ordem monástica católica, fundada em 1098 por

Robert de Molesme, seguindo a regra beneditina; os monges cisterciense são conhecidos como monges brancos devido à cor do seu hábito (Nascimento, 1998).

164 A ordem de Cluny foi uma ordem mendicante extremamente popular e que se espalhou

rapidamente por todo a Europa. Iniciada por volta de 1030, perdurou até meados de 1130. “Cluny representa o que de mais opulento a Idade Média central, a dos feudais, criou. Foi uma espiritualidade triunfalista, a idéia de cruzada na oração, onde a contemplação da glória e da majestade divinas eram mais destacadas que as noções de pecado e de resgate” (Vauchez, 1995: 40).

gananciosa vida das famílias reais, dos ricomens165 e alguns infanções166. Por último, mas não menos importante, a massa populacional, a linha de frente das batalhas formada por agricultores e pecuaristas, aqueles que eram o combustível do regime feudal e que se divertiam nas deliciosas rodas de música e dança pelos campos e nas festas em frente à igreja depois das missas semanais.

Toda a diversidade da sociedade medieval (ao menos, grande parte dos estamentos) tinha dois pontos de contato: a arte trovadoresca e a admiração e respeito pelo monumento da cavalaria. Estes dois pilares do medievo castigam até hoje literatos e historiadores em busca de respostas, isso porque eram duas ocasiões nas quais a ordem dos estamentos não fazia muito sentido; não porque não existissem “fronteiras sociais”, mas porque eram fenômenos que atingiam de formas diferentes quase todos os estamentos daquela sociedade. Sejam quais forem os motivos para isso, e essas respostas não fomos buscar, é fato que a ideologia presente nas realizações de parte do povo medieval (aí se incluem as cantigas galego-portuguesas) estão absolutamente impregnadas dos lemas e ensinamentos dos cavaleiros e valores associados.

A análise das cantigas líricas galego-portuguesas de D.Dinis confirma categoricamente as hipóteses dos posicionamentos de fenhedor e precador/entendedor apresentadas por Ceschin (1998). Creio que a pesquisa foi bastante inovadora no sentido de tentar conciliar Lingüística, Filologia e Literatura. Além disso, foi minha vontade revigorar as análises filológicas, associando-as a uma perspectiva lingüística moderna: a Lingüística Sistêmico-Funcional. Inversamente, o estudo também pôde ser bem enriquecedor para a LSF, pois, em geral, os pesquisadores da área não se desafiam analisando gêneros líricos, quanto mais textos antigos e escritos em línguas perdidas no tempo. Acredito que trabalhos como este testam os limites da aplicabilidade da LSF (e teorias associadas), assim como abrem novos campos e possibilidades para outros pesquisadores.

165 rico homem, possuidor de bens, nobre da mais alta hierarquia, depois dos membros da família

real. A forma antiga mais usada nos Cancioneiros é ricome (cfr. ome). Além disso há o aumentativo ricomaz e o feminino rica dama.

166 A Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira indica que os infanções estão abaixo dos

fidalgos ou dos ricos-homens em grau de nobreza. O sentido da palavra se vulgarizou tradiamente (designando toda qualidade de nobres), entretanto, o Manual de História de Espana assinala duas hipóteses para sua origem: ou os infanções seriam os descendentes dos godos livres que conservaram privilégios tributários e penais, ou seriam os, filhos dos nobres com cargo político no palácio real, como su propio nombre, infanzón (hijo), parece indicar. (apud Ceschin, 2004).

Sempre acreditei em abordagens interdisciplinares e multifuncionais. Neste trabalho minha intenção foi mostrar que isso pode ser feito. Além do mais, ainda que possam existir, até o momento, não tenho conhecimento de estudos desse tipo, tanto no campo da teoria sistêmica, quanto na área da Filologia.

As análises aqui apresentadas puderam associar os gêneros literários de amor e amigo (em D. Dinis) com, respectivamente, os posicionamentos de fenhedor e precador/entendedor. Imaginamos que o mesmo tipo de estudo nos gêneros satíricos galego-portugueses, em nossa opinião, retoricamente muito mais ricos e deliciosos, seja muito válido e possivelmente comprove o grau do drudo e mostre outra feição do grau de entendedor. Porém, o mapeamento aqui apresentado talvez permita enxergar os mesmos posicionamentos codificados em gêneros literários diferentes – são novas possibilidades criadas para análises posteriores.

Por todos os motivos enumerados, essa pesquisa foi um grande aprendizado para mim. Graças a ela, pude desfrutar de áreas distintas e aprender muito sobre cada uma delas, além de entender como seria possível conciliá-las. Tenho consciência de que meu trabalho não está terminado, mas, por enquanto, creio que pude contribuir para o esclarecimento de algumas questões sobre as cantigas líricas galego-portuguesas.