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Os processos de expulsão dos camponeses de seus territórios e sua resistência guardam semelhanças com os processos de expulsão dos índios da região. Ambos os povos e seus modos de vida eram vistos como empecilhos aos processos desenvolvimentistas liderados pelas elites do país, ao longo da primeira metade do século XX.

Como exposto na seção anterior, até a década de 1930, o Vale do Rio Doce caracterizava-se por ser uma região pouco povoada, de mata atlântica, rica em árvores frondosas, em água abundante, madeira de lei e terra boa para plantar e colher, inclusive culturas como arroz e milho. Além disso, a região também era rica em pedras preciosas, mica e berilo (PEREIRA, 1988; MORAES, 2013).

Devido à grande quantidade de terra boa e disponível, em função do processo de povoamento tardio da região, a região do Rio Doce atraía diversos migrantes que vinham do Nordeste brasileiro no fim do século XIX, expulsos pela seca e pelo latifúndio. Esses grupos tornaram-se posseiros, estabelecendo-se com suas famílias e dedicando-se ao cultivo da agricultura familiar (PEREIRA, 1988).

Então, foi na primeira metade do século XX, no contexto da construção da rodovia Rio- Bahia, concluída em 1948, que se iniciou uma intensa corrida pela exploração da madeira, pelas pedras preciosas ou pela mica e berilo. A valorização da região despertou o interesse dos grandes proprietários de terra pelo local. Assim, os posseiros, que com trabalho árduo desbravavam as matas do Vale e arriscavam-se nas primeiras plantações, logo depararam-se com a figura dos grileiros, que reivindicavam serem os legítimos donos daquelas terras. Esses eram normalmente grandes fazendeiros, coronéis, ou enviados dos mesmos. Com sua influência política e suas milícias armadas os grandes fazendeiros acabavam expulsando os posseiros de suas terras e esses, por sua vez, iam para as cidades mais próximas, em especial Governador Valadares, viver nas periferias ou transformavam-se em meeiros (PEREIRA, 1988; MORAES, 2013).

A ampliação das propriedades dos coronéis destruía tanto a mata nativa quanto a diversidade da agricultura praticada pelos posseiros, na medida em que a principal destinação das terras passava a ser a pecuária, que trazia consequências negativas para a terra, gerando compactação do solo e erosão. Assim, os grileiros fizeram sua fortuna especialmente na década de 1940 e 1950, enquanto a paisagem nativa que reinava foi sendo substituída pela devastação da Mata Atlântica, pela escassez de água, pelo empobrecimento do solo e pelo surgimento de erosões e voçorocas (PEREIRA, 1988; MORAES, 2013).

Somando-se aos latifúndios dos grandes coronéis, podemos afirmar que a paisagem do Vale do Rio Doce também foi impactada de forma considerável pelos projetos de industrialização empreendidos pelo país na primeira metade do século XX. Nesse período foram implantados pelo Estado grandes projetos nas áreas de siderurgia e mineração e o espaço

nacional precisava ser ordenado e adequado a esses objetivos. Nesse sentido, a região do Rio Doce atraía o olhar capitalista, que via nas montanhas da região o potencial para a extração do ferro e manganês; nas matas, o potencial da extração das “madeiras de lei” e de lenha para a siderurgia; nos rios o potencial da força hidráulica para produção de energia para a indústria e um importante canal de escoamento para a produção mineral (ESPÍNDOLA, 2000, 2015).

Logo, era fundamental o controle das matas e dos rios, como recursos que gerariam riquezas econômicas, permitindo o sucesso dos empreendimentos capitalistas. A ferrovia Vitória-Minas possibilitaria o escoamento da produção mineral, especialmente do Quadrilátero Ferrífero de Minas Gerais (onde estão as grandes siderúrgicas Acesita e Usiminas) para os portos de Vitória. Nesse cenário, índios e camponeses dedicados à agricultura e à criação de animais, eram personagens que não cabiam nos modernos projetos nacionais.

Na medida em que os conflitos entre posseiros e grileiros se acirraram, surgiu o primeiro Sindicato dos Trabalhadores Rurais em Governador Valadares com o intuito de organizar os trabalhadores do campo para lutarem por seus direitos. Pela intensidade de sua atuação, o sindicato de Valadares logo influenciou a criação de novos sindicatos em cidades próximas, sendo que esses, apesar de terem sofrido intensas perseguições e ameaças, obtiveram importantes conquistas para os trabalhadores da região (MORAES, 2013).

No princípio da década de 1960, os coronéis uniram-se sob o pretexto da ameaça comunista que rondava o país e fortaleceram sua rejeição ao governo de João Goulart que pretendia realizar importantes Reformas de Base no país, dentre elas a Reforma Agrária. Diante disso, a onda de violência no campo aumentou e, devido aos embates violentos junto aos camponeses locais, o Vale do Rio Doce passou a ser reconhecido como uma região marcada por uma das mais violentas lutas pela terra no Brasil, principalmente no período entre 1940 e 1960. Posteriormente, no período da ditadura, as lutas persistiram intensas, com processos violentos em que direitos sociais básicos eram negados a essas populações.

Os intensos processos de sindicalização iniciados na década de 1950, assim com a mobilização popular empreendida pela Igreja Católica por meio da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e das Comunidades Eclesiais de Base (CEB´s) foram as sementes para a formação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra no Leste de Minas, um ator importante que surge no cenário do Vale para dar prosseguimento às lutas dos trabalhadores, como trataremos na seção seguinte.

Na década de 1990, quando os Sem Terra chegaram ao Vale do Rio Doce, vindos do Vale do Mucuri, pensaram que não conseguiriam ficar naquelas terras, devido ao intenso histórico de conflitos. Fato é que, depois da primeira ocupação, vieram outras e, atualmente, a própria cidade de Tumiritinga está cercada por cinco assentamentos do MST. “Ao chegarmos no Vale do Rio Doce, em 1993, viemos trazer a esperança para muitos que sonhavam e sonham em conquistar um pedaço de chão.” – fala de uma assentada, presente no livro produzido em parceria com a UFV, em que contam a história do assentamento (COELHO, 2007, p. 9).

Figura 2: Mapa dos Assentamentos da Reforma Agrária na Bacia do Rio Doce Fonte: BARCELOS, E., 2015

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra tem sido de grande importância para reconfigurar a história da terra no Vale do Rio Doce, trazendo para uma região ainda marcada pelo latifúndio e pela degradação ambiental, a possibilidade de outras territorialidades e projetos de sociedade.