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A região leste de Minas Gerais, onde se localiza o Vale do Rio Doce, ficou por cerca de trezentos anos, impedida de ser povoada pela Coroa Portuguesa. A Coroa buscava evitar que nessa área houvesse a passagem da população da região das minas para o litoral, no intuito de manter apenas um caminho oficial para o escoamento do ouro e dos diamantes, evitando assim o contrabando. Por isso, essa região ficou conhecida como os “Sertões do Leste” e, devido ao seu isolamento, foi um dos últimos refúgios dos índios “botocudos” (MERCADANTE, P., 1973).

“Botocudos” era a nomenclatura genérica utilizada pelos brancos para se referirem a diversos grupos étnicos20 que eram caracterizados como “índios bravos” e que normalmente utilizavam botoques como adornos labiais ou auriculares. Eles também eram chamados de Aimorés ou Tapuias e pertencem ao tronco linguístico Macro-Jê (PARAÍSO, 1992). Esses indígenas ficaram acuados no litoral, onde os brancos se estabeleceram inicialmente. Aos poucos foram recolhendo-se para os sertões, escondendo-se dos processos de expansão territorial nacional.

Após o declínio do ciclo do ouro, no século XVIII, com a liberação da ocupação dos sertões do Leste, a Mata Atlântica começou a ser severamente explorada. As novas opções econômicas eram a agricultura, o comércio e a pecuária, sendo os grandes rios os locais escolhidos para concentrarem novas zonas de povoamento, pela facilidade de escoamento da produção. No processo de povoamento das novas áreas, a abertura de rotas era respaldada por incentivos para a instalação de colonos, iniciativas de aldeamentos indígenas para pacificação e exploração da mão de obra dos mesmos e um intenso aparato militar. Fazia parte desse aparato: a instauração de quartéis, os destacamentos e os presídios, para fazerem frente à resistência indígena. Montou-se um verdadeiro sistema de “guerra justa” e caça aos índios. (PARAÍSO, 1992).

Nesse contexto, o genocídio em massa dos botocudos começou com a carta régia de 13 de maio de 1808, com a Declaração de Guerra de Extermínio a esta etnia, por parte do Rei Dom João VI. No total, foram três cartas régias dando diretrizes para o extermínio indígena,

20 Dentre essas etnias podemos citar: Aknenuk, Etwet, Nep-nep, Nakrehé, Takruk-krak, Gutkrak, Nakshapmã, Krenak, Mifiajirum, Jiporok, Minajjirum, Pojixá, Naknenuk, Krakmun, Pejaerum. (PARAÍSO, 1992, p. 419; p. 420)

justificado pela necessidade de “civilizar” o país. Em meados do século XIX, aldeias inteiras já tinham desaparecido do mapa (ALVES E ALVES, 2008).

Os botocudos reagiam, a seu modo, à devastação de seus territórios. Resistiam aos aldeamentos, dos quais fugiam com frequência e organizavam ataques às fazendas próximas. Neste tempo, era comum a prática de captura das crianças indígenas, chamadas de “Kurukas” que eram vendidas para fazendeiros, juízes e nobres. Alguns importantes ataques dos botocudos às fazendas próximas foram em função do resgate de Kurukas capturados (PARAÍSO, 1992; SILVA, 2011).

Com o prolongamento da guerra e o gradual extermínio em massa, pequenos grupos indígenas passaram a procurar os aldeamentos para se entregarem, assolados pela perda dos territórios e pela fome. A primeira região que foi considerada “pacificada” neste processo de guerra foi a do Jequitinhonha e, posteriormente, o Rio Doce, sob o comando de Guido Tomaz Marliére, designado em 1813 para administrar os índios da região. Para fugirem da sua ação, muitos índios dirigiram-se para o Vale do Mucuri, que só foi dominado após 1847 pela ação da Companhia do Mucuri, liderada por Teófilo Ottoni. Entre 1800 e 1850 estabeleceram-se entre os Rios Pardo e Doce cerca de 73 aldeamentos e 87 quartéis. Em torno dos quartéis e aldeamentos foram surgindo pequenas vilas, que reuniam aventureiros, índios, comerciantes, artesãos, etc. Com o tempo, esses aglomerados tornaram-se sedes de importantes municípios (PARAÍSO, 1992).

Como afirmou Cunha (1992), a problemática indígena no século XIX deixava de ser uma questão de captura de mão de obra para tornar-se essencialmente uma questão de conquista de terras para a expansão e consolidação do Estado-Nação brasileiro, o que se verifica no caso do Vale do Rio Doce.

Já no começo do século XX, a região foi marcada pela construção da estrada de ferro Vitória-Minas, da Companhia Siderúrgica Vale do Rio Doce,21 que avançou sobre os últimos redutos dos botocudos. Esse período foi influenciado pela onda positivista que se fortalecia no Brasil, especialmente nas escolas militares. Sob o lema de “ordem e progresso”, novas instituições foram criadas para subsidiar o ingresso do país no processo de desenvolvimento que estava em curso. É o caso do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), criado em 1920 pelo

21 À época, a empresa era estatal. Hoje é uma poderosa multinacional, responsável, junto com as mineradoras Samarco e a australiana BHP Billiton pelo crime ambiental do rompimento da barragem de rejeitos que atingiu o Rio Doce em 2015.

Marechal Rondon22, no intuito de promover o processo civilizatório dos índios. Segundo a perspectiva do órgão, estes necessitavam ser tutelados pelo Estado até que fossem progressivamente civilizados e inseridos na sociedade. De toda forma, as relações do órgão com os indígenas eram ainda tensas e conflituosas (BARRETO e EITERER, 2015).

De acordo com Paraíso (1992), em 1918, o SPI negociou junto ao Estado a criação de uma área de 2000 hectares como reserva para os Krenak23, ampliados para 4.000 ha em 1920. Infelizmente, já em 1921, essa reserva que havia sido concedida aos Krenak era alvo da prática do arrendamento de terras indígenas pelo SPI para trabalhadores que chegavam à região. Em 1955, com a descoberta de uma mina de mica dentro da terra da reserva indígena, houve uma pressão muito grande da sociedade para retomada das terras indígenas pelo Estado. Cabe ressaltar que a mica já vinha sendo explorada na região desde o período que marca o início da Segunda Guerra Mundial, com a finalidade de ser utilizada na confecção de armamentos e radares. Era, portanto, um grande atrativo econômico para a região (REGINO, 2007).

Nesse sentido, o SPI cedeu à pressão transferindo os índios para uma área Maxacali no Norte do Estado. Junto aos Maxacali as condições de vida eram muito ruins, pois além dos conflitos que vivenciavam por serem os Krenak e os Maxacali grupos rivais, os indígenas passavam fome, frio e estavam sujeitos a diversas doenças que acabavam levando-os à morte. Em 1959, os Krenak voltaram a pé para a estação Krenak no Rio Doce, onde ficaram por um longo período sem assistência. Durante esse tempo, alguns foram enviados para um posto indígena no estado de São Paulo (PARAÍSO, 1992).

O SPI foi extinto em 1967, sob diversas acusações de corrupção e omissão diante dos maus tratos, submissão ao trabalho escravo e práticas de tortura infringidos aos índios nos postos indígenas que ficavam sob sua responsabilidade. O órgão foi substituído no mesmo ano pela criação da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), existente até os dias de hoje. Em 1969, já no período ditatorial, foi criado o Reformatório Agrícola Indígena, na área Krenak, em Resplendor, Médio Rio Doce, dentro do Parque Estadual de Sete Salões (BARRETO E EITERER, 2015). Segundo os autores, o reformatório ficava sob administração militar e, na prática, funcionava como um presídio que reunia todos os índios considerados desordeiros e perigosos. Não havia período de reclusão determinado, nem assistência psicológica. Os índios

22 Rondon, uma das principais personalidades na formulação da política indigenista nesse período, havia sido aluno de Benjamin Constant, uma referência do positivismo no Brasil.

23 Cabe destacar que a etnia que conhecemos hoje como Krenak é fruto de um grupo dissidente de outra etnia maior, que lutou e resistiu bravamente a diversas tentativas de capturas e aldeamentos. O grupo era liderado por

tinham suas rotinas rigidamente controladas e eram submetidos a trabalhos forçados e castigos. (BARRETO e EITERER, 2015)

Em 1971, o presídio e os Krenak foram transferidos para a Fazenda Guarani, no município de Carmésia/MG. Outra transferência traumática e violenta, que implicou num processo de desterritorialização e consequentemente, reterritorialização que durou cerca de dez anos. Em 1980, com a ajuda do Conselho Missionário Indígena (CIMI) e outros grupos simpatizantes à causa indígena, os Krenak conseguem retornar à sua região de origem, no Vale do Rio Doce, onde estão até hoje na reserva conquistada: a Terra Indígena Krenak, na região de Resplendor. (PARAÍSO, 1992).

Atualmente, os Krenak ocupam uma área à margem esquerda do Rio Doce e sonham em retomar o Parque de Sete Salões, uma região com cavernas amplas no alto de um morro, com o qual possuem uma relação ancestral e mítica. É o local onde acreditam estar os espíritos de xamãs e caciques que protegem seu povo e também é o local em que se refugiavam e realizavam cultos quando eram atacados e perseguidos. (MEDEIROS, 2015)

Os “botocudos” lutaram e resistiram aos colonizadores a aos militares da forma que puderam: foram constantes subjugações, humilhações, torturas, processos de expulsão e de incansáveis retornos desses povos a essas terras, na busca de se estabelecerem definitivamente em seus territórios ancestrais. Ailton Krenak, importante militante indígena pertencente a essa etnia, afirma que a Constituição de 1988 foi um marco importante para os indígenas, pois mobilizou uma pressão popular muito grande para que a relação do Estado com o índio mudasse. Após a constituinte, Ailton acredita que houve o fortalecimento da identidade indígena, a busca pela retomada de sua história e a intensificação da luta pelos direitos indígenas. Porém, afirma que “O Estado parece uma daquelas feras que ficam mansas, mas, de vez em quando, ainda comem alguém” (KRENAK, p. 199). Ele lembra ainda que seus ancestrais dizem que a guerra não terminou.