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Para pensar a memória da juventude do assentamento enquanto grupo, nos valemos da noção de memória coletiva conforme estudada por Maurice Halbwachs (1990), como uma dimensão psicossocial da memória, constituída por um conjunto de lembranças que é uma construção social do grupo em que a pessoa vive.

No caso, para os jovens cujas famílias são militantes ainda atuantes no Movimento e possuem o hábito de relembrar constantemente as histórias de luta, o lar é a comunidade afetiva, conforme nos fala Halbwachs (1990), que lhes permite constantemente rememorar o que viveram e não viveram em comum com aquela comunidade. Pois para nutrir a memória coletiva é necessário permanecer em relação com pessoas que viveram os mesmos fatos e que entre eles falam e refletem sobre o assunto muitas vezes depois. Os encontros de formação do MST e os cursos em Agroecologia e Educação do Campo também funcionam como essas comunidades afetivas. Sem essas comunidades, a memória coletiva tende a desaparecer e eis que por isso, o trabalho em prol memória coletiva dentro dos movimentos sociais é também um trabalho contra o individualismo desagregador.

Os espaços que são conquistados nas comunidades tradicionais pela televisão, pela internet, pelas redes sociais, pelo celular tendem a subtrair o tempo das partilhas nas comunidades afetivas. Consideramos importante destacar o fato de que o Sr. Roberto, considerado um guardião das sementes crioulas e da memória do assentamento, destaca em sua fala que sempre que alguém chega em sua casa para visitá-lo, a primeira coisa que ele faz é desligar a televisão, algo que pudemos comprovar nas inúmeras vezes que estivemos em sua casa. Esse gesto poderia passar como um detalhe, mas revela-se de extrema relevância ao

colocar valores como o acolhimento ao outro, a atenção e o diálogo frente ao entretenimento diário oferecido pelos meios de comunicação de massa.

Quando o uso dessas mídias é feito de forma alienada, pautado pelos ditames da indústria cultural consumista/machista/racista/colonial, esta absorve os jovens em realidades virtuais vazias e empobrece a qualidade de seu tempo e das relações no território. Por outro lado, esses instrumentos podem também ser utilizados com consciência e equilíbrio para globalizar a luta, promover o intercâmbio de experiências e o fortalecimento da cultura, porém, sem excluir a necessidade da presença real no território. Ou seja, é possível uma atuação local- global que se alinhe com os ideais de re-existência do assentamento.

É importante destacar que existe um componente ideológico dessa memória coletiva (HALBWACHS, 1990), devido a mecanismos sociais que selecionam elementos a serem escolhidos e rejeitados para comporem essas memórias. Um exemplo que damos entre memória e ideologia é o fato vivenciado recentemente com a tragédia-crime ambiental que atingiu o Rio Doce. Desde que iniciamos nossa pesquisa no assentamento, um ano após o rompimento da barragem, percebemos que quase não se tocava nesse assunto, uma tragédia de grandes dimensões que deveria ainda estar muito viva na memória e nas falas dos moradores. Tampouco o Rio Doce foi mencionado ou apareceu em nosso Mapa da Comunidade espontaneamente quando fizemos essa dinâmica para levantarmos a percepção da juventude sobre seu território. O Rio e a questão da tragédia só apareceram quando perguntei por eles já ao final da vivência.

Apenas após um mês de trabalho, uma jovem, educanda do curso técnico em Agroecologia, desabafou numa das reuniões:

Olha só o que que o pessoal da Samarco fez, o pessoal da Samarco destruiu... destruiu o Rio Doce e aí eles vêm, querendo cadastrar todo mundo, fazer uma indenização com um cartão, todo mundo tem o seu dinheirinho, fica caladinho, sem falar nada, e aí? (C., 30 anos)48

Nesse momento, a jovem foi aplaudida por todos e teve início uma série de reclamações sobre a forma como a reparação dos danos pela tragédia-crime vem sendo conduzida pela Fundação Renova,49 fundação criada pela Samarco para gerir o processo. Foi relatada a falta de

48 Nesse caso específico, optamos por omitir o nome da jovem.

49Outras informações sobre a forma como a Fundação Renova está conduzindo o processo de reparação da Bacia podem ser encontradas nos relatórios disponíveis no site http://www.fundacaorenova.org/a-fundacao/ e em artigos sobre o tema, com as seguintes referências: Zhouri et al., 2016; Ferreira, S. R. L, 2016.

informações, falta de critérios para a distribuição do referido cartão, falta de participação da comunidade no processo, descaso e inúmeras dificuldades de comunicação.

A empresa, ao adotar uma estratégia de monetarização e individualização da reparação dos danos, através da concessão de um cartão por meio do qual recebem cerca de R$ 1.300,0050 mensais, produz a falta de clareza quanto aos direitos da comunidade, inibe as discussões coletivas, produz o silenciamento e, por consequência, o esquecimento das proporções do vivido, numa manipulação ideológica da memória da comunidade.

Produz-se uma tentativa de submeter a experiência vivida pelos povos a uma narrativa hegemônica, à qual a comunidade precisa estar atenta, pois forma-se um campo de disputas de narrativas, que vai impactar a forma como o conflito será resolvido. Por isso é também necessário atentar para a dimensão simbólica e discursiva dos conflitos territoriais. (MILANEZ e LOSEKANN, 2016). Nesse sentido, problematizamos nos encontros da juventude sobre a importância de uma retomada dos debates sobre os impactos desse crime-ambiental dentro da comunidade, pois a memória dos assentados, acerca do tema, encontra-se vulnerável.

Sabemos que a força da memória coletiva apresenta-se como elemento fundamental na prática dos movimentos sociais populares. No caso do MST, os nomes dos núcleos e brigadas fazem referência a militantes do movimento e os nomes dos assentamentos também fazem referência a lutadores do povo ou à data de conquista do assentamento.

É comum também, como em outros movimentos populares, o costume de lembrar os companheiros que faleceram com o seguinte gesto: uma pessoa puxa o grito com o nome de quem partiu e os demais respondem: “Presente!”, por três vezes. Essa prática mostra que a companheira ou o companheiro permanece presente através da luta dos que continuam.

A própria prática da mística dentro do MST é um constante lembrar, sentir e recontar histórias, através de representações e encenações que acontecem com regularidade antes do início das atividades ou como intervenções. Ela tem a intenção de emocionar, criar e fortalecer vínculos sociais, quebrar barreiras. Segundo Bogo (2012, p. 478), “a mística é o ânimo para enfrentar as dificuldades e sustentar a solidariedade entre aqueles que lutam. A mística não

50 A informação desse valor é proveniente da comunidade. Fizemos três tentativas de nos comunicar por telefone com os responsáveis pela Fundação Renova na região para confirmar alguns dados e não conseguimos contato. A própria comunidade afirmou que é difícil acessá-los por meio dos telefones que deixam para contato, porque esses telefones mudam com frequência, assim como mudam os responsáveis pelo caso, o que impede que as pessoas criem referência com algum funcionário estável da Fundação para facilitar o trato de seus processos.

somente ajuda a transformar os ambientes e cenários sociais, mas, acima de tudo, impulsiona e provoca mudanças por fora e por dentro dos sujeitos.”

Juntam-se a esses exemplos, diversos outros ritos que possuem esse papel de alimentar a memória coletiva. Como um exemplo desses ritos podemos citar a tradicional festa de aniversário do assentamento, em que é encenada a chegada à antiga Fazenda Califórnia. Nesse dia, os assentados acordam de madrugada, soltam foguetes e repetem a caminhada que vai do túnel onde desceram do caminhão para entrarem pela primeira vez na fazenda até a área central de Limeira. Montam simbolicamente barracos de lona no ponto em que acamparam, relembram as dificuldades iniciais, as conquistas até o presente momento, e tratam dos sonhos que continuam. Normalmente, o rito termina com uma celebração religiosa.

Figura 35: Mística de celebração do aniversário do assentamento. Ao centro, duas gerações simbolizam a continuidade da luta. Junho 2017. Foto: Gilcimária Félix

Figura 36: Celebração religiosa no aniversário. Junho 2017. Foto: Gilcimária Félix

O rito é uma atividade elementar da experiência humana e está diretamente ligado à necessidade de recordar um mito (Mauss, 1974). Aqui compreendemos o mito no sentido do qual nos fala Brandão (1998), ao destacar que para os gregos, inicialmente, mythos não tinha

uma analogia com a ideia de “falso”. Dizia respeito a narrativas verdadeiras, ainda que assombrosas e quase inacreditáveis. Assim, para os gregos, a mneme (memória) estava associada ao mito coletivo, enquanto anamnsesis (recordação) estava associada a uma lembrança da psique pessoal. E dessa maneira, “lembrar refere-se ao de onde se veio. Antes, com os outros, os meus, minha gente; depois, sozinho, minha alma...” (p. 12) O aedo, poeta épico da Grécia antiga, “lembra as origens aos outros, ao seu nós”, relembra os fundamentos do que não pode ser esquecido, tecendo o fio mítico da história, a mística guerreira e sagrada de um povo, a consciência coletiva de um nós que se partilha (Ibid., p. 11).

Para Mauss (1974), as imagens evocadas no espaço-tempo consagrado ao rito induzem os participantes do ritual a um estado extra-ordinário, por meio de uma associação de ideias e sentimentos, quebrando a rotina diária. Assim, esses estados extra-ordinários promovidos pelo rito abrem passagem para uma reconexão com o mito. O espaço consagrado ao rito (modificado, preparado, tornado especial para esse momento) torna-se de certa forma o templo, em seu sentido mais genuíno e o tempo consagrado ao rito torna-se festa (Trías, 1997). Dessa forma, os ritos são importantes para a memória. É um momento em que a comunidade evoca e reafirma seus valores, sua história e memória comum.

A festa de aniversário do assentamento é um exemplo de como a encenação ritual da conquista da terra relembra a luta, conta a história guerreira dos Sem Terra, o mito de origem daquela comunidade. As místicas e outras celebrações tradicionais que ainda acontecem também cumprem esse papel. Para Segato (1992), o rito atua como um dispositivo que permite a performance dramática da narrativa mítica que dá sentido ao vivido, invocando os aspectos sensoriais e afetivos associados àquela história comum e induzindo uma religação com essa realidade mítica.

Percebemos, portanto, ser importante que os jovens tenham trazido com tanta força as lembranças das comemorações tradicionais e afirmarem o desejo de retomá-las em seus projetos para o futuro. Esse fato também nos aponta para importância da consideração da dimensão simbólica e imaterial do território (que deve ser considerada de forma indissociável do material) para pensarmos o Bem Viver das comunidades. Por isso, o Bem Viver está muito além da noção de desenvolvimento, pois ele contempla aspectos físicos, materiais, afetivos, simbólicos e espirituais da vida humana.

No segundo Encontro de Pesquisa-Ação Participativa que organizamos, presenciamos uma mística espontânea que foi muito marcante. Nesse encontro, por iniciativa dos próprios

jovens, lideranças adultas do assentamento foram convidadas para partilharem sua vivência e contarem histórias aos mais novos. Neste dia, partilharam com os jovens momentos difíceis da luta, inclusive episódios de torturas e morte de companheiros ao longo da caminhada.

Em determinado momento, uma das lideranças disse que uma vez, olhando a bandeira do MST, estava se perguntando por que a bandeira é vermelha e não, por exemplo, verde, que poderia representar a terra. Foi então que ela entendeu que aquele vermelho representava o sangue. O sangue de seu filho e seu marido que morreram na luta, o sangue de tantos outros companheiros que se doaram por aquele ideal. Ela então pediu a seu filho mais novo, que estava presente no encontro, que colocasse no aparelho de som uma música do MST enquanto ela ia passando por cada pessoa que compunha o círculo e envolvendo a cada um com a bandeira vermelha do movimento por alguns instantes. Muitos emocionaram-se profundamente.

Aquele rito invocou os aspectos sensoriais e afetivos ligado à história coletiva comum. Sentimos que foi um rito importante para os jovens que estavam presentes, especialmente porque nesse dia estavam jovens bem novos, adolescentes, que talvez nunca tivessem escutado essas histórias. A mística enquanto memória/rito abre portas no tempo, traz de volta a história mítica, e numa trama de sentimentos, pensamentos e gestos recria o sentido profundo da comunidade.

Para mim, particularmente, enquanto pesquisadora, e, sobretudo como pessoa, ter presenciado esse rito e ter sido afetada por ele (FAVRET-SAADA, 2005), abriu janelas tão profundas de comunicação com a história daquele povo e minha própria história pessoal, que passei a noite imersa em reflexões e emoções que me levaram a reassumir compromissos com a luta do povo pela terra e pela justiça social.

Nesse sentido, a partir das observações que relatamos nesse texto, entendemos que a memória coletiva de um povo é um aspecto importante para a manutenção dos conhecimentos locais e tradicionais. Por isso, contribui para a geração de vínculos, pertencimento, enraizamento. Uma das jovens trouxe em sua fala a importância da transmissão dos saberes e das histórias das lutas para os mais jovens e recordou o importante papel desempenhado pela educadora e atual vice-diretora da escola como guardiã e incentivadora da memória do assentamento.

ah, foi muita coisa boa que eu aprendi mesmo e acho que os meus irmãos, os meus colegas, colegas das minhas irmãs que são mais novos, deviam saber dessas coisas, sabe? Buscar história, contar. A Maria Medeiros que fazia isso, eu não sei agora como é que tá, mas... eu lembro que sempre que tinha

tinha, passava... Não sei se ela conseguiu passar isso pra DVD, porque vai evoluindo as coisas, né? Então vai ficando pra trás muitas coisas. Chamava: “Vamos assistir lá na sede a primeira ocupação na Fazenda Aruega” (Elonália, 39 anos)

A mesma jovem nos falou ainda que ela mesma deseja confeccionar artesanalmente um livro com sua história de vida para sua filha. “Eu quero que ela saiba disso pra saber de onde que eu vim, né, e onde eu tô hoje e onde que ela veio, sabe, também pra ela saber dar valor às coisas simples da vida, que faz tanto bem.”

Dessa forma, a partir da memória somos levados e discutir também a valorização dos saberes locais e de suas práticas tradicionais, pensando na continuidade das lutas e projetos entre as gerações. Sabemos que a transmissão desses conhecimentos tradicionais locais se dá pela oralidade, não pela escrita, através de várias dimensões da vida cotidiana. Eles são compartilhados por meio do diálogo direto entre as gerações, tanto das gerações mais antigas para as do presente, quanto das gerações do presente para as ainda mais jovens. Esses conhecimentos são a síntese: “(i) da experiência historicamente acumulada e transmitida por uma cultura rural determinada; (ii) da experiência socialmente compartilhada pelos membros de uma mesma geração; e (iii) da experiência pessoal e particular do próprio produtor e sua família, adquirida pela repetição do ciclo produtivo (anual)”. (TOLEDO E BASSOLS, 2009, p. 35).

Os encontros, assim como a qualidade do tempo que se passa no território, são, portanto, fundamentais para o cultivo das memórias e sabedorias locais. Atualmente, esses saberes são desqualificados e desperdiçados pela sociedade. Como nos diz Boaventura de Sousa Santos, é o desperdício da experiência proporcionado por uma ciência indolente (2002). Na medida em que se desqualificam os saberes tradicionais, esses são sobrepujados pela ciência e pela cultura moderna hegemônica, que se oferecem como a alternativa símbolo do progresso e futuro. Assim, as comunidades vão perdendo suas práticas comuns, seus rituais coletivos, suas festas, seus cantos, seus momentos de encontro.

No Assentamento Primeiro de Junho ainda encontramos uma grande riqueza de saberes populares. Existem na comunidade, guardiões e guardiãs de saberes tradicionais que podem dialogar mais com a presente geração de jovens, tais como: o Sr. Deusdéti, guardião das cantigas tradicionais de roda que trouxe de sua região de origem, o Vale do Jequitinhonha; a Dona Lindaura com seus conhecimentos e cantos sobre a Catira; Sr. Roberto, guardião do conhecimento sobre as sementes crioulas e biodiversidade; Sr. Milanês com seus “causos”,

(inclusive sobre o Lobisomem que ele próprio conheceu); Dona Aninha e Dona Maria com o conhecimento das benzeções e das ervas; Zei, com os conhecimentos ancestrais da Capoeira, enfim, mais uma quantidade de outros moradores que guardam consigo tesouros que são a sua própria experiência de vida somada à de seus antepassados.

Figura 37: Manifestações da cultura popular: cantos tradicionais. Foto: Grupo JUFTER

Figura 38: Manifestações da cultura popular: Capoeira. Foto: Gilcimária Félix

Em síntese, percebemos que para cultivar a memória, são fundamentais dois aspectos: a) Espaços-tempos que possibilitem experiências significativas individuais e coletivas; b) a formação de comunidades afetivas com as quais se comparte e rememora experiências. Nesse

sentido, a memória é resistência e re-existência, na medida em que: a) esses espaços-tempos precisam ser não-controlados pelo capital; espaços-tempos gestados e apropriados por geografia(s) insurgentes, em que o tempo repousa sobre o espaço para acolher o ser, pois as experiências significativas brotam das pausas e das presenças; b) além disso, a memória coletiva carece de comunidades afetivas para florescer e portanto, contrapõe-se à sociabilidade individualizante que reina na cultura hegemônica.

Concluímos que nos tempos atuais a formação dos jovens nos cursos e Agroecologia e Educação do Campo estão sendo fundamentais para fortalecer a memória dos educandos e influenciar seus projetos para o futuro, rumo a um compromisso mais coletivo, com a continuidade dos sonhos das gerações anteriores, fortalecendo também seu sentimento de “pertença” ao território. Os cursos abrem para os jovens novos horizontes, possibilidades e esperanças para a construção do Bem Viver no campo. Da mesma forma, destacam-se a Escola Estadual Primeiro de Junho e os momentos das místicas e vivências dentro dos espaços de militância dentro do assentamento, como espaços fundamentais para o cultivo da memória coletiva, dos saberes tradicionais e, consequentemente, para o fortalecimento da “pertença”.

CAPÍTULO 5

NATUREZA, CULTURA E POLÍTICA: REFLEXÕES SOBRE OS VÍNCULOS COM O LUGAR