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O antropólogo James CLIFFORD (1997) observa que culturas diaspóricas, de forma geral, não anseiam, tampouco vislumbram por representações exclusivas e perenes. A ideia de “lar original” parece ser colocada em patamar secundário em relação à ideia de deslocamento. Paralelamente, se sobressai a elevação da multilocalidade dos laços sociais em detrimento da fixação em um espaço circunscrito. Clifford afirma:

As conexões transnacionais que ligam as diásporas não precisam estar articuladas primariamente através de um lar ancestral real ou simbólico (…).

Descentradas, as conexões laterais [transnacionais] podem ser tão importantes quanto aquelas formadas ao redor de uma teleologia da origem/retorno. E a história compartilhada de um deslocamento contínuo, do sofrimento, adaptação e resistência pode ser tão importante quanto a projeção de uma origem específica. (Clifford, 1997, p.219)

A identidade canadense se caracteriza pela multilocalidade. O Canadá reúne povos que experimentaram diásporas de vários tipos e em diferentes momentos históricos. À ótica dos Estudos Culturais de Stuart Hall (1990), o conceito de diáspora se apresenta como aberto. A concepção binária de diferença, isto é, de uma separação entre dentro e

fora, entre excluídos e inclusos, não permite circunscrever as diversas

realidades que se possam observar relativamente à noção de diáspora. À ótica derridiana de différence (cf. différer, postergar, adiar; cf. DERRIDA, 2003) remete às configurações sincretizadas de identidade, nas quais os binarismos coexistem com as diversas possibilidades de mudança, sobretudo diante das flutuações que emergem das places de passage (cf. HALL, 2003, p.33).

Os significados posicionais e relacionais se friccionam (cf. Barthes, 1990, O Prazer do Texto) gerando gradações ao longo de espectros sem início ou fim. Em termos gerais, ao se supor “uma” identidade canadense, em sentido montante (en amont) ela não desembocaria na possibilidade de uma raiz étnica comum (linguística, por exemplo)23. Diferentemente, de forma jusante e montante (en amont et en aval), se localizam compartilhamentos históricos, geográficos e esforços cotidianos para a constituição de uma ideia de nação. No caso do Canadá, até a presente data (2015), ainda não se pode falar de constituição de um lar nacional único, de uma “nação canadense”, tendo as diversas forças complementares preponderantes, mas também divergentes em diversos pontos, que se concatenam sobre um só território. Outrossim, cabe destacar que a imigração no Canadá sempre esteve aberta. Nos últimos anos há campanhas para atrair novos cidadãos, tendo em vista sobretudo as baixas taxas de natalidade e o envelhecimento da população atual. A necessidade de mão-de-obra em determinados setores (e.g. enfermagem, construção civil) se apresenta como crítica. Nos últimos 20 anos, há

23 Aliás, nos parece fazer sentido sugerir aqui a leitura de Raízes do Brasil (1997) de

Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) e de As Veias abertas da América Latina (2010), de Eduardo Galeano.

grandes contingentes de portugueses, de chineses e de povos de língua árabe que se instalam no Canadá.

A multiculturalidade, acompanhada do multilinguismo, cujos traços semânticos podem induzir à ideia de fragmentação, constitui justamente um dos fatores de concatenação para a manutenção de projetos futuros e de um presente fundamentado na ideia de nação, tendo em vista que os compartilhamentos são efetivos. O indivíduo em diáspora experimenta, em território canadense, a complexidade de se relacionar simultaneamente com seus referenciais de origem e com suas novas ancoragens estabelecidas social e juridicamente. Desvelam-se, quase sempre, processos de construção de identidades híbridas e flutuantes (cf. Derrida). Clifford, em seu livro intitulado Diasporas (1994; 1990), questiona as experiências que os sujeitos diaspóricos substituem, marginalizam ou acatam. Tais possibilidades conduzem, novamente, a considerar diversas formas de diásporas.

Paralelamente, de forma mais geral, a noção dicionarizada de diáspora conota traços como “imigrante”, “minoria”, “comunidade étnica”, insistindo sobre a visão binária de dentro e fora. Se, por um lado, a ideia de diáspora remete à transnacionalidade e ao deslocamento; por outro lado, desvela a busca política pela demarcação de espaços e de diferenças ao longo dos contextos históricos que permeiam os próprios deslocamentos.

Para CLIFFORD (1998), as culturas diaspóricas situam-se nos espaços de tensão, gerados a partir de friccões resultantes de indecisões entre “separação” e “entrelaçamento”, de viver aqui, mas insistir em lembrar ou desejar outro lugar (p.5), outra condição política ou retomada de fatos de outrora. A observação de Clifford vai ao encontro da visão de Avtar Brah, manifestada em sua obra intitulada: Diaspora, border and

transnational identities (1996), na qual alude aos grandes movimentos de

massa que se verificam, inclusive, em pleno século XXI. Para Brah, nem todas as situações de diásporas pressupõem a “ideologia da volta à terra prometida”. O conceito de diáspora oferece, sim, uma crítica aos discursos que pregam por origens fixas, ao mesmo tempo que leva em conta o desejo por um lar fixado (homing desire), que não equivale necessariamente ao desejo por uma “terra natal ou por um território pátrio” (chez moi ou

homeland) (Brah, 1996, p. 180). Para Brah, o espaço de diáspora é

marcado justamente por desafios aos binarismos, uma vez que fronteiras entre inclusão/exclusão, pertencimento/outridade, nós/eles, nós/os

Outros, podem ser a todo instante contestadas e/ou deslocadas diante dos

A condição diaspórica clássica, talvez situada tão somente nos imaginários – que implica passado e feitos gloriosos, marcados por tradições e costumes singulares, sobretudo, por uma identidade cristalizada e estabelecida –, parece estar muito mais ligada a questões teológicas do que à teleologia, embora seja impossível estabelecer estanqueidade entre uma e outra noção, uma vez que a significação de ambas se permeia a todo instante. Aliás, se a teleologia remete às reflexões sobre as finalidades do universo, podemos aceitar que seria incongruente separar suas investigações daquelas realizadas pela teologia. O estudo teológico, sem engajamentos religiosos não conduz, a meu ver, a aceitação de um Deus, mas talvez a compreensão de que cada religião e cada igreja se ergue a partir do desejo humano em criá-los para responder a algum tipo de desejo ancestral incrustrado, ou até mesmo pela perda inexorável dos progenitores em algum momento, corroborando com as teses de NIETZSCHE (1973).

No caso do Canadá, o sujeito diaspórico parece buscar reconfiguração social a todo instante. A idéia de “tradição” implica, na visão de HALL (1990), a busca por bases seminais anteriores, por sentimentos de unidade perdidos, mas não significa necessariamente sonho ou desejo de volta ao ponto ancestral, de origem. No entanto, como sugerem BARTHES (1990) e DERRIDA (1978), a construção de identidades é um processo em constante evolução. É certo que as identidades possuem origens e permitiram construir histórias, algumas referenciadas inclusive localmente; outras imaginadas, todavia, todo relato ou mesmo o que é histórico comprovado, passa por inexoráveis processos de metamorfose. As places da história serão sempre places de

passage. Não há espaços históricos fixos; há tão somente registros que a

Nova História, por exemplo, muitas vezes abala ao propor novos pontos de vista. Os sentidos da história variam de acordo com suas condições de registro e sobretudo de leitura e interpretação. As construções são orientadas por questões de poder (ideologias, prestígio cultural, grau de poder político, especificidades antropológicas, entre outros tantos fatores flexíveis). As configurações das tradições consideradas canônicas são desafiadas a todo instante por suas traduções – observe-se não se tratar aqui de Tradução1, no sentido de transferências de código de A para

um formato A’ a ser respeitado (translate), mas de leitura, interpretação e representação; ou seja traductio à ótica de YUSTE FRÍAS (2014, 2010).

Durante todo o século XX os povos aperfeiçoaram suas habilidades em contar suas histórias segundo suas visões (e.g. a história

da atual Macedônia24). Sabe-se que as culturas nacionais se friccionam a todo instante com as culturas, também em cruzamento com outras tantas, conduzindo à emergência da Nova História e de histórias novas (cf.

Invasões Bárbaras (2002) e Declínio do Império Americano (1986)25 de Denis Arcand). Nos contextos de carrefour, entram em confronto valores, costumes e narrativas que reforçam o conceito de places de passage, de

não-lugares26 e de multi-realidades. De acordo com Hall, as pessoas pertencentes às culturas ditas híbridas têm sido levadas a renunciar ao sonho ou à ambição de redescobrir qualquer tipo de pureza cultural “perdida” ou de absolutismo em relação às origens étnicas. Elas vêm sendo irrevogavelmente traduzidas de acordo com as configurações up e

down (p. 89), em constantes cruzamentos, em hic e nunc.

A experiência diaspórica se contrapõe às concepções de essência e pureza ao enfatizar a heterogeneidade e explicitar diferenças, aliás: inerentes e inexoráveis. Na mesma linha de pensamento de Hall, encontra- se Homi Bhabha, que trata das questões em seu livro intitulado: O local

da cultura (1998). Bhabha (id.ib.) aponta para o surgimento de

hibridismos culturais em momentos de transformações históricas, os quais contribuem para a idéia do novo, não como continuidade do passado e do presente, mas de o novo, na conjuntura de diversidade (s). Para Bhabha, a [...] arte não apenas retoma o passado como causa social ou precedente estético; ela atualiza o passado, reconfigurando-o como um entre-lugar

contingente, que recria e interrompe a atuação do presente” (p. 27). Diante

24 O povo da Macedônia se considera herdeiro de Alexandre, o Grande, 356-323 a.c. 25 Trata-se de dois filmes quebequenses que obtiveram grande sucesso. Abordam

questões políticas e psicanalíticas, algumas pontualmente referentes a condição canadense contemporânea às duas produções. Em o Declínio do Império Americano (Québec-Canadá), o enredo conduz o espectador a questionar todo o sistema sociocultural vigente até os anos 80, com excelentes diálogos sobre a moral, liberação sexual, valor do conhecimento dentre outros. Já em As Invasões Bárbaras (Québec- França) é proposto um “reencontro” de praticamente todos os mesmos personagens de As Invasões Bárbaras. O enredo gira em torno do personagem Rémy que luta contra um câncer. Os personagens refletem principalmente sobre os acontecimentos dos últimos 20 anos e as mudanças sociais ocorridas. Os diálogos estabelecem um contraste sobre como a sociedade se transforma e reconfigura sua história a partir de novos elementos.

26 O Professor Alain-Philippe Durant, em aula ministrada na Pós-Graduação em

Estudos da Tradução em 2012.1, definiu os não lugares como espaços em que as configurações sociais se virtualizam, sobressaindo não mais as condições sociais ou culturais, mas uma estruturação física que eleva a patamar similar os comportamentos e as opções locais. Cita como exemplo os Shoppings, os aeroportos e algumas redes de fast food.

de tais condições híbridas, que despontam nas sociedades do século XXI, Bhabha sugere que a literatura mundial, tradicionalmente voltada a questões nacionais, deveria abrir espaço para histórias transnacionais de indivíduos e grupos diaspóricos, como foi – ou ainda é – o caso dos próprios autochtones canadenses (Inuits e Métis) ao longo da história, estendendo-se aos diversos povos que integram hoje o território canadense.

Neste sentido, é importante estudar a história de um país através de documentos por vezes considerados marginais. Faz-se importante, como já destacado acima, estudar os processos tradutórios como procedimentos que envolvem tensão e fricção constantes, passíveis de gerar estados provisórios, configurações inexoravelmente abertas e plurais em movimento constante. Oscilações comparáveis aos aspectos que permeiam as noções pós-modernas de diásporas, de antropofagia, ou de apreensão de conteúdos.