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Segundo AIRD & FALARDEAU (2009), a arte de reproduzir cenas e traços de personagens consiste de uma das formas de criar situações de humor em que, normalmente, se expõe fatos importantes de forma indireta, gerando situações que, embora muitas vezes possam induzir a ambiguidades, circunscrevem temas críticos e em voga em determinado instante político. No caso das charges de YGRECK, cabe destacar que elas são particularmente voltadas a questões de ordem política. Neste sentido, os desenhos imitativos podem ser encontrados nos jornais ao longo de sua história, inclusive em suas versões mais seminais.

Segundo os autores citados acima, a aceitação das charges, que aludem publicamente à imagem de personagens ou de grupos de destaque na vida cotidiana, pode ser considerada como indicador de evolução democrática, ou seja, a charge pode tanto ser tomada como elemento ofensivo e transgressor, quanto instrumento de mera discussão política através do qual se lança à cena todo e qualquer tipo de debate que possa gerar reflexões e evoluções das opiniões públicas.

Diferentemente da caricatura, quase sempre considerada de forma isolada e não ancorada pragmaticamente, a charge envolve uma espécie de script mais amplo, referenciada e baseada em cabedais situacionais do cotidiano, ou seja, nos fatos mais salientes e em voga em determinado instante. Uma gafe, um escândalo, uma atitude política, entre outros tantos fatos midiáticos, oferecem ingredientes seguros para que, imediatamente, os artistas se lancem à elaboração de suas charges. Muitas delas, verdadeiras obras de arte, não somente no sentido plástico, mas sobretudo em seu conteúdo discursivo condensado. Seu sentido instantâneo exige, todavia, profundas ancoragens, tendo em vista que sua extrema atualidade pode se transformar em extrema esvanescência. O fenecimento das relações entre conceitos, que fazem emergir a pertiência de uma charge, também incide sobre seus conceitos: algo como uma fotografia instantânea que, sob o efeito da luz, irá se apagar. Não faltariam

exemplos, cito então, para o caso brasileiro, as estampas eucalol29 e deixo, propositadamente, o leitor que não quiser recorrer às notas, à eventual dúvida.

PIEON (2010, p.21) destaca que: “... a caricatura editorial (charge) é muito mais que um simples desenho de humor. Tal como o editor, o caricaturista/chargista é quem abre a discussão em um grande periódico sobre as questões que concernem à sociedade. A política é evidentemente um assunto privilegiado para o caricaturista/chargista. ”30

Diretamente atrelados às cenas do cotidiano ou de cenas que remetem à contemporaneidade do leitor, se encontram paratextos diretamente anexos, e peritextos e epitextos que demandam conhecimentos aprofundados em história, geografia, sociologia, antropologia, política. Em outras palavras, os elementos presentes em determinadas charges, como essa que examinamos aqui, remetem aos fatos passíveis de atualização de forma sincrônica e diacronicamente. Em geral, uma charge consiste de um expoente de realidades extensíveis, ou seja, o artista propõe extratos capazes de espelhar o todo, mas de forma remissiva e alusiva. De fato, o artista sugere partes que concentram instantes políticos do presente, mas também do passado que o gerou. Por conseguinte, os componentes de uma charge podem sugerir o desenrolar

29 As estampas eucalol, acompanhavam os sabonetes eucalol entre os anos 1930 e

1960. Na frente apresentavam desenhos e no verso, textos explicativos sobre 54 temas. Eram figurinhas instrutivas a serem colecionadas. Título de uma poesia de Hélio Contreras (1935-2011), musicalizada por Eugênio Avelino, Xangai, tornou as estampas muito conhecidas para além dos anos 1960, quando desapareceram em função da venda da empresa para um grupo multinacional.

Eis uma reprodução de uma Estampa Eucalol.

30 … la caricature éditoriale est bien plus qu’un simple dessin

d’humour. Tout comme l’éditorialiste, le caricaturiste qui œuvre dans un grand quotidien une opinion sur les grandes questions qui touchent la société. La politique est évidemment un sujet privilégié du caricaturiste. [tradução do autor]

possível para fatos com consequências futuras, que inexoravelmente afetarão as relações políticas, antropológicas e sociais, no presente e no devir.

Uma charge, assim como um texto exclusivamente linguístico, é passível de tantas interpretações quantos forem seus leitores, considerados hic e nunc, ou seja em suas condições espatio-temporais. Naturalmente, um mesmo leitor, em outro hic e nunc desdobrará novas páginas não abertas, conduzindo a formação de outras interpretações e traduções.

A charge se caracteriza então como um elemento importante dentro de uma sociedade que se pretenda democrática. A partir de traços plásticos precisos, o artista busca extrapolar parcelas de traços físicos do personagem representado, naturalmente com o intuito de explicitar posicionamentos morais ancorados em um dado contexto político.

As pictóricas remontam o alvorecer da humanidade. Registros rupestres talvez buscassem gravar algum ritual. Embora, não se possa identificar traços de humor, tampouco interpretá-las com certeza, a atração do homem por espelhos se sua própria existência é algo que se pode, à ótica junguiana, considerar como ancestral. Outrossim, o princípio da economia das linguagens, permite ao ser humano a identificação da caricatura de um rosto por meio da manutenção de traços hiperonímicos, situados nas categorias de base, que orientam ao quem se destinam. Em geral, os caricaturistas salientam o que já é saliente. Destacam o que a própria luz destaca. Tais atribuições, fazem com que os pólos de base e a imitação transfigurada, produzam efeitos de humor.

Os primeiros estudos que mostram personagens políticos sendo retratados com pequenas ou grandes deformações físico-faciais são atribuídos à Da Vinci (FONSECA, 1999, p. 49). A principal técnica utilizada era a do zoomorfíssimo, atribuindo características de animais a personagens políticos. No período pós idade média, além de Da Vinci, também é importante considerar os trabalhos do escultor Bernin (1598- 1680) e seus trabalhos de deformação de fisionomias. Na França a caricatura/charge se enraizou a partir da Revolução Francesa, ocasião em que são encontradas as primeiras amostras de charges de cunho político. Em 1865, as leis de imprensa na Europa já impunham uma censura rigorosa tanto aos jornalistas quanto aos caricaturistas, visto que as charges não eram muito apreciadas pelos personagens nelas retratados, muito embora o povo se divertisse com a maestria dos artistas e com a precisão dos desenhos.

Se considerarmos que o índice de analfabetismo nos no século XIX ainda era enorme e apenas os mais afortunados tinham acesso à leitura, é

possível também associarmos o conhecimento restrito da língua escrita à popularidade das charges. De algum modo, “um desenho, mil palavras”, possui algo de pertinente.

Em geral, as charges dos grandes jornais constituem críticas destinadas a leitores politizados. Os prolongamentos podem oscilar em profundidade em proporção similar aos graus de conhecimento ativados em relação aos componentes presentes no iconotexto apreciado, assim como em suas informações de ordem linguística.

De fato, nada há, em uma charge, que possa ser considerado como “simplificado” ou “amplificado”, a não ser os traços biológicos ou linguísticos estampados de maneira derivada com vistas a gerar efeitos de humor. Todo e qualquer destaque pode se tratar de topicalização expressa com vistas a desorientar interpretações para desviarem de determinados percursos esperados. A tipicalidade poderia ser considerada como base para que o iconotexto se mantenha nos limites da interpretabilidade. Ao mesmo tempo que alude, há limites para que os focos interpretativos não se tornem demasiadamente opacos, a ponto da arte nada significar. Este não parece ser o objetivo de uma charge. Seu papel é clarear e não ofuscar o leitor.

A necessidade de pertinência textual, sobretudo em se tratando de material jornalístico, é uma condição sine quoi non para a admissibilidade do instrumento comunicativo. Como já sugerido, uma charge não pode, naturalmente, derivar para as raias da simbologia não ancorada, aliás, como parcela do jornalismo, sua pertinência se pauta por default, uma vez que, principalmente como produto comercial, espera-se que a arte produza reações.

Determinadas charges comportam parte importante das informações de um momento histórico, desde que a memória presente em seus paratextos seja assegurada. Seu valor artístico, assim como a validade ideológica de suas propostas sofrerão oscilações, sobretudo em razão da velocidade que caminharem os fatos que embalam as constituições sociológicas. As metamorfoses que ofuscam as interpretações só podem ser parcialmente controladas a partir dos registros que sustentem as significações erguidas em determinados momentos. Logo, trata-se de uma espécie de “empenho etimológico”, tal como em geral se aplica à instauração das denotações atreladas a uma determinada entrada de dicionário.

Analisar um politexto – no caso deste estudo: uma charge – implica muito mais que processo de leitura top-down e botton-up. Trata-se de supor mecanismos de processamento de leitura mistos. A interpretação e a tradução constituem a melhor exegese que se possa fazer de um

iconotexto. A leitura de um texto linguístico está, em geral, ancorada: (i) no contexto das palavras; (ii) no contexto textual; (iii) em suas extensões semânticas e pragmáticas. Nós, leitores, não fomos “treinados” (leia-se alfabetizados) para decifrar e processar o sentido das entidades ou mesmo do “todo” de um desenho colorido. Ademais, apesar dos trabalhos do

Groupe µ (1992), não há uma sintaxe compartilhada em relação ao

desenho de forma geral. Naturalmente, salvo casos muito específicos, como manuais de utilização de aparelhos eletrodomésticos, instruções de seguranças de aviões, etc. Uma flor de lis, ao olhar do observador desinformado, pode significar muito pouco, mesmo inserida de forma coerente e coesa em um politexto. Diferentemente, sua atualização histórica ativará imediatamente relações heurísticas cujos desdobramentos remetem às redes conceituais (cf. Sowa, 1985).

O iconotexto em sua categoria charge está repleto de elementos que, sutilmente ou explicitamente, desvelam entidades e relações que uma vez contextualizados expõem toda uma mise en scène que comtempla fatos passados, presentes e futuro projetáveis. Em sentido amplo, pode-se dizer que alguns ícones presentes na charge examinada geram a sensação de uma mise en abîme, tendo em vista a perspectiva hipertextual que abrem ao leitor, propondo paradoxalmente uma espécie de heurística com soluções provisórias, tendo em vista que o caráter enciclopédico de certas entidades seriam capazes de assumir a função de desencadeador para o estudo da história de uma nação. Remeto-me aqui particularmente à imagem da flor de lis, dado heráldico, ícone, símbolo, ou apenas uma a estilização de uma flor. Abaixo, uma flor de lis estilizada à forma clássica:

Figura 6 – Flor de lis (Clássica) 2.6 A charge como discurso

O estudo do politexto, mais precisamente de uma charge de caráter humorístico desemboca sobre a questão da tipologia dos discursos. Aliás, architextualité, segundo a terminologia de GENETTE (2009, 1987, 1982). Para Genette, é justamente em função das relações que

determinado texto mantém com outros textos que ele se reveste de uma identidade. Por conta disso, a “originalidade” do subgênero cômico, que chamamos aqui de “charge”, poderá ser colocada em questão a todo instante. Em outras palavras, é justamente essa intertextualidade contraditória que conduz à elasticidade do gênero. Ademais, como observa EVRARD (1996, p.34), a própria ideia de humor está situada no patamar das noções de caráter definitório flutuante, tal como o erótico, o

horror e o horror. Eis que todas as citadas são categorias inerentemente

elásticas semanticamente.

De forma esquemática e baseados em DUFAYS (1996, p. 51), apresentaremos quatro proposições complementares que demonstram as relações entre discursos que constituem intertextos do ponto de vista do humor:

a) Super discursos – segundo GIRAUD, 2013 pgs. 111-112), abarcam os outros discursos em função de suas características, suas qualidades, sua reputação e ambições. Em razão de sua ambiguidade constitutiva inerente, escapam a maior parte das críticas. As charges humorísticas, por exemplo, podem integrar a classe dos super discursos, sobretudo no que concerne a suas representações pictóricas.

b) Infra discursos – seu status se limita àquele que lhe conferem indiretamente os discursos dos quais ele se serve. Parasita, o cômico emerge tão somente para referendar o que já foi dito, para reutilizar o que já foi empregado. Trata-se do copiar/colar, como se pode constatar, por exemplo, nas pesquisas de imagens da web. Alguns padrões se dissiparam e passaram a ser compartilhados. Qualquer ambição estética ou ideológica que vise à além da diversão, corre o risco de comprometer sua especificidade. Cabe observar que as categorizações tentam colocar fronteiras estanques entre as classes. No caso da charge examinada, no seu conjunto há elementos super discursivos, assim como se identifica também ícones infra discursivos, como é o caso da própria saliência de traços do rosto da personagem representada para gerar o efeito “caricatura”.

c) Contra discurso – degrada, destrói, rompe, transgride. O contra discurso vive do fenecimento e da morte dos outros textos. Ele os desmotiva ao grau do fenecimento ou se apropria deles como ato de canibalismo ou antropofagia. Segundo BOUCHÉ (1974), o contra discurso relativiza o caráter sério das expressões, por vezes, através da paródia. Para Bouché,

o cômico, por exemplo, não é um gênero, mas o inverso de todos os gêneros.

d) Meta discurso – os discursos caricaturados, segundo DEFAYS (1996, p.52), se situam no princípio de todo escrito, na medida em que ludicidade e lucidez caminham juntas. O “gênero cômico”, se é que se pode criar uma tal categoria (?), poderia ser considerado como um gênero situado no umbral a partir do qual se visualiza a repetição (inútil) e a criatividade (impensável). O papel de uma charge seria então o de lançar o leitor e o politexto de paraquedas para esse local e esperar os resultados de tal encontro. No “entre”, não há sentidos prévios, mas tão somente negociações.