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CANONIZAÇÃO POPULAR

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ANEXO I – 1891: Carta de Dom Arcoverde para Dom Joaquim

3 PADRE CÍCERO, SANTO POPULAR DO

3.1 CANONIZAÇÃO POPULAR

Apesar de uma vasta literatura existente, contrárias às virtudes, à pessoa e ao modo de proceder do Padre Cícero, após 1889, em nada interfere para diminuir o sentimento de afeto, de gratidão, de respeito e veneração do povo para com ele. Esse sentimento é sobretudo do nordestino, mas ultrapassa a fronteira do regionalismo e alcança todo o país, indo além dos seus limites.

“Os devotos o escolheram para santo, através do sentimento coletivo de solidariedade, fé e esperança (ARAUJO, 2011, p. 56). Na contramão dos que afirmam ser ele o fomentador do ‘fanatismo’ e do “cangaço”, são encontrados na história repetidos testemunhos escritos ou falados a favor de sua vida de santidade. Ele é um promotor da paz.

Em mais de uma ocasião, Cícero “conclamara jagunços e cangaceiros a depor as armas. Uma das prédicas mais famosas de Cícero aos peregrinos dizia respeito ao assunto. Inúmeras vezes, da janela de casa, ele pregava de braços erguidos à multidão” (NETO, 2009, p. 339).

Quem bebeu não beba mais, Quem roubou não roube mais,

Esse trecho esteve inserido, mais de uma vez, em suas pregações.

Sobre as pregações do Padre Cícero, Feitosa (2011) defende o porquê do seu sucesso, pois era procurado por padres, intelectuais, fazendeiros e o povo sem expressão social, com os seguintes argumentos:

Ele foi corajoso, abandonou os padrões do seu tempo e partiu para a realidade, em uma autêntica novidade, assim também, com sucesso foi o Cura d’ Ars. Ele teve psicologia e viu que para ensinar o evangelho e fazer o povo mudar de mentalidade e costumes, era preciso o padre mudar quase tudo: 1) mudar o modo de viver. 2) mudar o isolamento e encarnar-se na vida do povo. 3) mudar a defasagem entre a vida privada e pregação, enchendo-se de espiritualidade para poder aconselhar o que ele mesmo fazia. 4) mudar o sermão para reflexão, aconselhamento e orientação; mudar o discurso teórico para ganhar comunicação, preferindo o tom de conversa instrutiva, com amigos por quem se tem o máximo interesse” (FEITOSA. 2011, p. 229).

De acordo com Neto (2009, p. 337), Padre Cícero chamava a atenção do povo para a mudança de vida e conversão da alma (NETO, 2009, p.337). Também desse mesmo espírito se imbuiu, no sentido de prover a paz no Vale, para compor o 7º artigo do “pacto dos coronéis”, levando todo o documento para votação. Ele bem conhecia a situação: “não havia um único coronel ali que não mantivesse em suas terras um batalhão de bandidos sob seu soldo. E nenhum dos coronéis ousou rebater as palavras de Cícero, ficando assim, mais um artigo aprovado, dos nove que haviam sido previamente preparados” (Ibid, p. 338). Procurava apaziguar as famílias em desavenças. Na carta endereçada a Prestes, conclama-o à rendição, por ter em vista que os resultados da causa que defendia, na situação em que se encontrava, ser impossível de êxito, e também em nome da paz.

O cancioneiro popular, há muito tempo, decretou a canonização do Padre Cícero. “As narrativas populares foram transformando um Padre afastado de suas ordens sacerdotais em um Patriarca, e em um “Padim” acolhedor, conselheiro e milagroso”24 (TOLOVI, 2016, p. 20).

“Em diálogo constante com o contexto histórico e com os críticos do padrinho, eles (autores dos cordéis e canções populares) reproduzem um discurso elogioso e um cânone de representação que funcionam como suportes da memória

24 TOLOVI, Carlos Alberto. Padre Cicero do Juazeiro do Norte: a construção do mito e seu alcance

e da identidade coletiva.”25 O povo, não só o nordestino, o considera santo, o que é também admitido por sucessivas gerações.

Dentre as diversas autorias de definição e características do Catolicismo popular, partimos desta que, no contexto do trabalho, abrange toda a situação:

O catolicismo popular no Brasil é o conjunto de expressões religiosas, individuais ou coletivas, fruto do encontro do catolicismo europeu com uma cultura popular autônoma e coerente, em constante dialética afetiva com os “poderosos” e o “Todo poderoso”. Caracteriza-se pela predominância do afetivo sobre o racional, do vivido sobre o pensado. De simbologia mais concreta (objeto) do que abstrata (a palavra), com predominâncias do afetivo, o vivido, o concreto, porém sem excluir o racional, o pensado, a abstração. O povo compreende mais fazendo do que pensando. É uma definição essencialmente psicológica. O movimento popular de Juazeiro é um exemplo típico dessa dialética psicoafetiva (GUIMARÃES. 2011, p. 34- 35).

Conforme Hoornaert (1979), os santos populares brasileiros se distinguem dos outros por duas razões: 1) por rejeitar o escravismo colonial, embora não seja uma rejeição de forma direta, eles, os santos, não a aceitaram; 2) os santos populares suscitam fanatismos (HOORNAERT, 1979, p. 50-55).

Nessa descrição acima, o Padre de Juazeiro se enquadra perfeitamente. No que se refere ao primeiro item acima, ele combate o escravismo, o Padre de juazeiro “agiu no sentido de implantar uma agricultura alternativa não colonial (Ibid, 1979, p.50), para libertar o despossuído de terra do grande fazendeiro. E Oliveira (2011) complementa descrevendo a cena:

Aos que chegavam, se dispunham de recurso, mandava adquirir propriedades, aos menos favorecidos mandava para a serra do Araripe plantar mandioca; instalava aviamento para a fabricação de farinha. Para outros arranjava morada nos sítios, proporcionando maior produção. Enfim era o orientador de toda gente que resolvia fixar residência nesse lugar que ele dizia ser da Mãe de Deus (2001, p. 141-142).

No tocante à segunda afirmativa, também a devoção ao Padre é comumente considerada, principalmente pelo clero, como sinal de ignorância, atraso cultural e fanatismo. Nesse argumento se fixou D. Joaquim, à época dos acontecimentos de Juazeiro, que como bem é sabido, foi determinante para a suspensão de ordem do Padre.

A Foto 3 é uma demonstração dos objetos deixados pelos romeiros por graças alcançadas, as quais atribuem à intercessão de Padre Cícero. Esses objetos compõem o acervo da Casa dos Milagres.

25 STINGHEN. Marcela Guasque. Padre Cícero e a canonização popular. 2008, p. 26. Disponível em

Foto 3 – acervo da casa dos milagres

Em 1898, o Padre Cícero retorna de Roma. Dos fatos de Juazeiro, distanciam quase dez anos, mas o Bispo nada mudou. Manteve a suspensão do Padre, embora ele tenha sido absolvido pela Congregação do Santo Ofício. O manteve proibido de residir em Juazeiro e permitiu que ficasse apenas os dois meses, conforme pedido, pois o Padre necessitava de resolver seus negócios.

Fonte: Heider, Felipe (2016)

Sobre esse assunto, Oliveira escreve:

Passados os dois meses, Dom Joaquim começou a exigir por diversas Portarias que o padre ou pusesse fim às romarias ou se retirasse de sua Diocese, para qualquer outra, alegando que sua permanência ali ou em pontos próximos, estava entretendo fanatismos (OLIVEIRA, 2001, p.142).

“O santo popular não é um herói. [...] é uma pessoa que optou pelos seus semelhantes, simplesmente” (HOORNAERT, 1979, p.53). Optar pelos seus semelhantes... não foi essa a opção feita pelo Padre quando obedeceu ao seu “sonho” no qual acreditava ser este mesmo sonho, ordens expressas do próprio Jesus?

“O milagre26 une o povo e ‘as gentes’ a Deus por meio do encanto e das maravilhas. O milagre sacraliza as benesses estendidas aos espectadores, apagando temporariamente as diferenças sociais” (DEL PRIORE. 2000, p. 64).

Ao Padre Cícero é atribuído inúmeros milagres. À intercessão do Padre Cícero é imputada curas física, psicológicas ou mentais, libertação de vícios (do álcool, jogos ou manias), conversões, proteção contra o perigo eminente etc.

Milagre é um atributo do santo a ser investigado para a sua canonização, no caso, à oficial. A “canonização popular” faz reunir na casa dos milagres, situada no

26Ato ou acontecimento fora do comum, inexplicável pelas leis da natureza. Qualquer indicação de

participação divina na vida do homem. Indício dessa participação, que se revela especialmente por uma alteração súbita e fora do comum das leis da natureza (HOUAISS. Dic. Ling. Portuguesa).

largo do Socorro, em Juazeiro, grande quantidade de ex-votos, que compõem um acervo impressionante. Os fiéis, ao depositarem ali o “seu ex-voto”, deixam ao mesmo tempo, o sinal de “prova” do milagre recebido como também o milagre já agradecido.

O acervo da casa dos milagres, anterior a agosto de 2013 “foi destruído por um incêndio. ”27No entanto, depois de reaberta a casa, em outubro de 2013, não tardou a somar incontáveis ex-votos ali deixados. “No museu vivo do Padre Cícero, no alto da colina do horto, antes conhecida como Serra do Catolé, também são deixados ex-votos pelos seus devotos”.28

Gilvânia Aparecida Ribeiro e José Moreira neto, casados há 35 anos, fizeram questão de relatar para esse registro, a sua crença na intercessão do Padre Cícero. Foi por ocasião de um grande acidente, em 1981, com José Moreira Neto e colegas de trabalho, que a esposa em preces rogou ao Padre Cícero, pedindo a sua ajuda e proteção. Eles ficaram apenas com pequenas escoriações, resultado atribuído pela fé deles, à intercessão do “santo”, em resposta ao pedido. No contexto, os que testemunharam classificaram como um acidente impossível de escapar com vida. Este, entre outros relatos, define o que seja sociologicamente, santo:

É aquele que o povo respeita como fiel a Deus e a missão que Deus lhe deu para cumprir aqui na Terra. Sociologicamente o povo liga a fidelidade a Deus ao poder de intercessão, recorrendo assim a sua proteção.

Uma veneração só se generaliza, quando o povo reconhece na pessoa virtudes superiores, pouco explicáveis pela simples boa vontade humana e retidão de caráter. Se um dia o Padre Cícero for canonizado pela Igreja, ninguém vai chama-lo São Cícero. Todos estão acostumados a chamá-lo delicadamente de “Meu Padrinho”, termo achado cândida e sorrateiramente para furtar-se a repressão oficial e para fazer resistência. O sentido venerativo é o mesmo (FEITOSA. 2011, p. 88).

Desde o início do cristianismo, o povo cristão canonizava seus santos. A canonização do Padre Cícero pelos seus devotos não fugiu à regra. Segue o princípio dessa ‘tradição popular’. O povo transmite às novas gerações o legado deixado pelo Padre ao longo do tempo: a santidade de um homem, no caso, o Padre Cícero. Esse passar adiante se manifesta por diversos modos: pelas referências que ressaltam as virtudes e o modo de vida do Padre. Pelas orações individuais ou coletivas realizadas oralmente, por orações escritas de forma tradicional ou em

27 Manchete do Jornal O Povo. Disponível em www20.opovo.com.br/.../2013/, acesso em 01/02/2071) 28 Ibid

forma de hinos e canções, ou ainda dentro do contexto moderno, à maneira virtual, mas sobretudo se manifesta pelo modo que tem maior peso e destaque: as peregrinações ou romarias.

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