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4. Púnin e Babúrin no contexto histórico e literário russo

4.3. Capítulo III – 1849 – Período pós-Primavera do Povos

O ano de 1849 foi marcado por violenta repressão na Rússia, em consequência dos movimentos revolucionários ocorridos no ano anterior em todo o Ocidente em oposição aos regimes autocráticos. Este é o momento em que Babúrin é preso e mandado para a Sibéria ocidental por envolvimento com um grupo de conspiradores contra o governo, numa clara referência ao Círculo de Petrachévski, constituído por pessoas que se reuniam às sextas-feiras no apartamento de Mikhail Petrachévski (1821- 1866) para discutir textos políticos, literários e filosóficos de cunho socialista utópico.

Diversos intelectuais russos participavam das reuniões do círculo, entre eles Dostoiévski, que havia publicado Gente pobre em 1846, obra aclamada pela crítica, em especial por Belínski, por ser um romance de denúncia social. Como a perspectiva das revoluções de 1848 ocorridas na Europa se estendiam pela Rússia, o grupo foi desmembrado pelo tsar Nikolai I em 1849:

Em 22 de abril de 1849, trinta e nove membros do grupo foram presos e, embora nada pudesse ser provado contra eles, exceto uma “conspiração de ideias”, uma ofensa desconhecida pelo código criminal, um tribunal militar especialmente constituído condenou à morte quinze dos acusados, e seis a trabalhos forçados ou deportação para a Sibéria.81

Nesse mesmo ano, Mikhail Petrachévski e Dostoiévski foram presos e condenados à morte, no entanto, no último instante tiveram suas penas comutadas por trabalhos forçados. Petrachévski foi exilado na Sibéria oriental, enquanto Dostoiévski cumpriu sua sentença na parte ocidental, para onde também foi enviado Babúrin.

81FLORINSKY, 1947, p. 82. “On April 22, 1849, thirty-nine members of the group were arrested and,

although nothing could be proved against them except a "conspiracy of ideas," an offense unknown to the criminal code, a specially constituted military court sentenced fifteen of the accused to death and six to forced labor or deportation to Siberia.”

Um pouco antes da prisão de Babúrin, ao lhe fazer uma visita, o narrador vê que “Em seu quarto, no lugar mais visível, estava pendurada uma litografia do retrato de Belínski; na mesa estava um volume antigo do Estrela polar, de Bestujev.” O crítico literário Vissarión Belínski (1811-1848), também um raznotchínets, filho de um médico provinciano, uma das figuras mais importantes para o desenvolvimento da crítica literária russa, em seus últimos anos de vida, foi radicalizando cada vez mais sua postura política, como se pode ver no seguinte trecho de sua famosa Carta a Nikolai Vassílievitch Gógol, de 1847:

As questões nacionais mais cadentes na Rússia contemporânea agora são: acabar com a servidão; abolir o castigo físico; introduzir, tanto quanto possível, a execução rigorosa, que seja, das leis existentes. Isso sente mesmo o próprio governo (que bem sabe o que fazem os senhores de terra com seus camponeses e quantas vezes ao ano estes retalham aqueles), que se justifica com suas meias medidas acanhadas e infrutíferas em favor dos negros brancos e com a substituição cômica do cnute de uma ponta pelo açoite de três. Eis as questões com que a Rússia está inquietamente ocupada em sua sonolência apática!82

Com clássicos como O inspetor geral (1836), Almas mortas (1842) e O capote (1843), Gógol era considerado o iniciador da Escola Natural na Rússia, ao retratar as mazelas e vícios da sociedade. No entanto, em 1847, Gógol publica Trechos escolhidos da correspondência com amigos, obra duramente rejeitada pela crítica por seu teor místico e conservador. Aos olhos de Belínski, Gógol teria se tornado reacionário. Entretanto, a adesão do escritor à ortodoxia e ao tsarismo já o aproximava mais do eslavofilismo do que do ocidentalismo, ao qual o crítico se associava.

A referência ao almanaque literário Estrela polar também é importante, pois tratava-se de um periódico de orientação decabrista, publicado de 1822 a 1825 em São Petersburgo. Mais tarde, em 1855, Herzen deu continuidade ao almanaque ao

publicar uma revista de mesmo nome que continha discussões sobre o socialismo e demais temas políticos:

Em Londres, [Herzen] estabeleceu sua imprensa livre e, na década de 1850, começou a publicar dois periódicos em russo, A Estrela Polar e O Sino (os primeiros exemplares apareceram em 1855 e 1857, respectivamente), o que marcou o nascimento de uma agitação revolucionária sistemática – e uma conspiração – dos exilados russos dirigida conta o regime czarista.83

No primeiro capítulo, Babúrin é demitido do emprego na casa da avó do narrador por intervir em favor de um camponês que ele julgou estar sendo punido injustamente. Neste capítulo, o republicano tornara a perder um emprego por razões semelhantes: “[...] em Petersburgo, tornou a se empregar num serviço privado, o qual, por outro lado, foi forçado a abandonar há alguns dias por causa de um aborrecimento com o patrão: Babúrin inventou de intervir em favor dos operários...” Musa, agora esposa de Babúrin, também revela84 a Piotr Petróvitch o envolvimento do marido com um grupo que

conspirava contra o governo, o que deixa o narrador preocupado, por ser um momento de repressão, mas principalmente por Babúrin não pertencer a um alto estrato social. No entanto, Musa contesta:

– É claro – interrompeu Musa com voz amarga –, ele é um pequeno-burguês; e na Rússia só os nobres podem tramar conspirações, como, por exemplo, no catorze de dezembro… pois foi isso o que o senhor quis dizer.

“Nesse caso, do que a senhora está se queixando?” – quase deixei escapar... no entanto, me contive.

– Então a senhora acredita que o resultado do catorze de dezembro teve características tais que é necessário incentivar outros? – pronunciei em voz alta.

O resultado da Revolta Dezembrista foi recebido como fracasso, pois a reação do tsar foi brutal. Como descreve Herzen em seu já citado texto, houve perseguições

83BERLIN, 2005, p. 135.

84É interessante destacar que Musa mostra-se receosa em contar a Piotr Petróvitch que Babúrin estava

envolvido com um grupo de conspiradores contra o regime, pois Piotr, além de ser nobre, naquela época era funcionário público, e Musa acreditava que, por essa razão, seria leal ao governo.

desumanas e acirramento do despotismo, o que levou a um esfriamento do debate acerca das questões políticas no país:

Já não era possível nenhuma ilusão: o povo havia se transformado em espectador passivo do 14 de dezembro. Todas as pessoas conscientes viram as temíveis consequências da completa ruptura entre a Rússia nacional e a Rússia europeizada. Toda ligação viva entre esses dois campos fora rompida; era preciso restaurar o vínculo, mas de que modo? Essa era justamente a grande questão.85

Herzen alegou ainda que praticamente toda família nobre possuía algum parente próximo degredado devido à revolta ocorrida em 1825. Dessa maneira, era compreensível o narrador, personagem oriunda da nobreza, demonstrar apreensão com a ideia de um pequeno-burguês, ou seja, alguém que não era nobre, enfrentar uma punição por conspirar contra o regime. Essa concepção vai ao encontro da afirmação do historiador James Billington de que a paixão aristocrata pela discussão política havia morrido com os dezembristas,86 o que também proporcionou um solo fértil para o

desenvolvimento do “homem supérfluo”. Desse modo, podemos afirmar que o casal Babúrin reprovava a postura de Piotr Petróvitch frente às questões políticas e sociais, pois este se recusava a agir, confirmando sua caracterização enquanto “homem supérfluo. Como a própria definição implica, como observa Victor Terras:

[…] a “superfluidade” pode ser vista de dentro, como uma síndrome psicológica, um estado de espírito; e também pode ser vista de fora, como um fenômeno sociológico, uma condição da sociedade, de modo que uma classe significativa de pessoas não encontre nela nenhum lugar útil. Nos dois casos, a “superfluidade” de uma personagem pode ser tratada com aprovação ou simpatia, por exemplo, como uma manifestação de maior inteligência, sensibilidade ou preocupação moral; ou pode ser condenada, por exemplo, como evidência de preguiça, arrogância ou recusa em enfrentar realidades.87

85HERZEN, Op. cit., p. 168. 86BILLINGTON, 1970, p. 269.

87TERRAS, Op. cit., p. 454. “[…] ‘superfluity’ can be viewed from within, as a psychological syndrome,

a state of mind; it can also be seen from outside, as a sociological phenomenon, a condition of society such that a significant class of people can find no useful place in it. In both cases a character’s ‘superfluity’ may be treated with approval or sympathy, e.g., as a manifestation of greater intelligence, sensitivity, or moral concern; or it may condemned, e.g., as evidence of laziness, arrogance, or refusal to face realities.”

Ademais, o narrador se surpreende com o tom de Babúrin ao falar das autoridades: “Eu mesmo ficara estupefato com algumas estranhezas no comportamento de Babúrin, em todo o seu jeito. Umas duas vezes ele opinou sobre as ordens do governo e de altos dignatários com tal ódio e amargor, com tal repugnância, que fiquei perplexo…” Babúrin ainda pergunta a Piotr Petróvitch se ele havia libertado os camponeses da propriedade da avó:

– Mas, e então? – perguntou-me ele de repente – O senhor libertou os seus camponeses?

Fiquei constrangido ao reconhecer que não.

– Mas, decerto, é provável que a avozinha tenha falecido? Isso fui obrigado a reconhecer que sim.

– Ora, ora, o senhor, um nobre fidalgo – resmungou Babúrin entre dentes... – Puxar a brasa... para a sua sardinha... é disso que o senhor gosta.

A resposta ranzinza de Babúrin expressa mais uma crítica à autocracia russa ao saber que Piotr não havia libertado seus servos, mesmo após a morte da avó, aquela que deveria ser o único impedimento para tal atitude. É importante lembrar que, ao ir embora da propriedade após ser demitido por ter defendido Ermil, Babúrin diz ao narrador, entre lágrimas: “Uma lição para você, jovem senhor; lembre-se do acontecimento de hoje e, quando crescer, esforce-se para pôr fim a tais injustiças. O senhor tem um coração bom, e o caráter por enquanto ainda é puro... Veja, tenha cuidado: pois assim não é possível!” Passados dezenove anos, Babúrin então percebe que o narrador, aquele jovem em quem ele havia tentado incutir seus ideais de justiça social, permanecia um “fidalgo nobre” que, embora se dissesse republicano, continuava a tirar proveito da servidão que ainda vigorava no país. Esses momentos de confronto entre Piotr e Babúrin evidenciam que o narrador se configura como um “homem supérfluo” não só pela oposição entre nobre e raznotchínets, mas também pelo contraste entre ação e inação.