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A figura do narrador é um elemento importante na composição de qualquer obra e deve ser contemplada em toda abordagem literária. Assim como o título, a distribuição dos capítulos, a escolha das épocas e locais em que o enredo se desenvolve, também o narrador não é escolhido ao acaso pelo escritor:

Manejador de disfarces, o autor, camuflado e encoberto pela ficção, não consegue fazer submergir somente uma sua característica — sem dúvida a mais expressiva — a apreciação. Para além da obra, na própria escolha do título, ele se trai, e mesmo no interior dela, a complexa eleição dos signos, a preferência por determinado narrador, a opção favorável por esta personagem, a distribuição da matéria e dos capítulos, a própria pontuação, denunciam a sua marca e a sua avaliação.152

Além de investigar a evolução do narrador enquanto um “homem supérfluo” e sua inação em comparação com o raznotchínets, como foi feito no item 4 deste trabalho, também é interessante examinar a técnica narrativa utilizada por Turguêniev. De acordo com a classificação de Norman Friedman, Piotr Petróvitch pode ser considerado um narrador-testemunha. Ele narra em primeira pessoa e vive os acontecimentos descritos, dando assim verossimilhança ao fato narrado: “O narrador-testemunha é um personagem em seu próprio direito dentro da estória, mais ou menos envolvido

na ação, mais ou menos familiarizado com os personagens principais, que fala ao leitor na primeira pessoa.”153 Já segundo a definição de Brooks e Warren, esse

narrador seria um “personagem-observador, que participa mais ou menos da ação”,154 pois limita-se a narrar e não tem grande atuação na narrativa. Não se trata

de um narrador onisciente, pois não sabe o que se passa na mente das demais personagens, nem o que acontece longe de sua presença. Resta-lhe apenas inferir e formular hipóteses baseado em sua observação.

No entanto, de acordo com Friedman, o narrador-testemunha não é tão restrito quanto pode parecer, pois tem a oportunidade de conversar com todas as personagens para obter seus pontos de vista, além de ter acesso às suas cartas, diários e demais escritos que indiquem seu estado mental. Ou seja, o narrador-testemunha pode ter acesso às situações mais inusitadas, como é o caso de seu envolvimento no triângulo amoroso entre Babúrin, Musa e Tarkhov nos dias que antecedem a fuga dos dois jovens. No segundo capítulo, ao reencontrar seu velho conhecido Púnin e lhe fazer uma visita, o narrador recebe um bilhete escrito às pressas que Musa lhe entrega furtivamente solicitando um encontro no dia seguinte para tratar de um assunto de extrema urgência. Nesse encontro, a jovem revela sua intenção de fugir, pois Babúrin pedira sua mão em casamento e ela, para não parecer ingrata, já que fora acolhida por ele, havia aceitado contra a sua vontade e apesar de estar apaixonada por Tarkhov. Na manhã seguinte, Púnin visita o narrador e lhe conta essa novidade, que Piotr Petróvitch finge desconhecer e assim aproveita a ocasião para interceder por Musa, insinuando que um casamento com tamanha diferença de idade e, por consequência, sem amor, não era adequado. Tal insinuação irrita Púnin, o que faz com que o narrador fique confuso,

153FRIEDMAN, 2002, p. 175-176. 154 CARVALHO, 1981, p. 4.

mude de ideia (um pouco movido também pela inveja do amor entre Tarkhov e Musa, como confessa) e vá imediatamente à casa de Tarkhov fazer um discurso para dissuadi- lo de fugir com a jovem e para defender Babúrin. Além disso, é através de uma carta que somos inteirados do estado de espírito de Babúrin ao receber a notícia da emancipação dos servos e é como se dá o desfecho da novela, que se encerra com a morte do republicano.

É comum encontrarmos em Turguêniev um narrador que faz comentários e se dirige diretamente ao leitor. Isso ocorre, por exemplo, em Memórias de um caçador, Fumaça e O brigadeiro. Piotr Petróvitch, no entanto, por ser um narrador-testemunha, mantém o leitor afastado e vincula apenas a sua própria percepção e pensamentos sobre as ações e personagens. Nesse caso, as opiniões do autor também são postas de lado, como aponta Friedman: “Muito embora o narrador seja uma criação do autor, a este último, de agora em diante, será negada qualquer voz direta nos procedimentos.”155

Ainda seguindo a teoria de Friedman, Turguêniev escreve a maior parte do primeiro capítulo da novela a partir de cenas: “[…] a cena imediata emerge tão logo os detalhes específicos, contínuos e sucessivos de tempo, espaço, ação, personagem e diálogo começam a aparecer”.156 Ou seja, as ações são descritas de forma direta e

imediata, a começar pela entrada do mordomo anunciando à velha proprietária a presença de Babúrin, a entrevista de emprego que se segue, passando pelo encontro do narrador e de Púnin no jardim, em seguida a discussão com Babúrin, até o exílio do camponês Ermil e a consequente demissão de Babúrin. De fato, é através de cenas que será narrada a maioria das situações descritas em Púnin e Babúrin.

155FRIEDMAN, Op. cit., p. 175. 156Ibidem, p. 172.

Apenas em alguns momentos e sobretudo no início dos demais capítulos, Turguêniev utiliza o sumário: “[…] o sumário narrativo é uma apresentação ou relato generalizado de uma série de eventos cobrindo alguma extensão de tempo e uma variedade de locais, e parece ser o modo normal, simples, de narrar [...]”.157 Essa forma

mais indireta foi adequada para se iniciar os capítulos, pois há a passagem de um grande período de tempo entre eles. Do primeiro para o segundo capítulo são sete anos: “Passaram-se sete anos. Nós vivíamos em Moscou como antes – mas eu já era aluno do segundo ano da faculdade – e o poder da vovó, que se tornara visivelmente decrépito nos últimos anos, não pesava sobre mim.”. Do segundo para o terceiro capítulo, passam- se doze anos: “Já havia se passado não sete, mas doze anos inteiros, e eu completara trinta e dois anos. Vovó havia falecido há muito tempo; eu vivia em Petersburgo, onde era funcionário do Ministério do Interior. Eu perdera Tarkhov de vista [...]”. E mais doze anos do terceiro para o quarto e último capítulo: “Mais doze anos se passaram... Todos na Rússia sabiam e para sempre se lembrariam do que havia ocorrido entre os anos de 1849 e 1861. E em minha vida particular aconteceram muitas mudanças sobre as quais, aliás, não há porque me estender.” Vemos que, como há um considerável intervalo de tempo entre cada capítulo, Turguêniev escolheu o sumário para sintetizar brevemente os acontecimentos centrais, focando nos eventos mais preponderantes, e a cena para se concentrar em fatos específicos e de maior relevância para o desenvolvimento e detalhamento da novela.

6.2. Temas e recursos recorrentes