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CAPÍTULO SEGUNDO – A INTUIÇÃO ESTÉTICA

• A Intuição Estética

Existe uma outra forma de conhecimento que supera o princípio de razão suficiente, que eleva o modo de conhecimento da intuição empírica, um outro conhecimento que reconhece as formas atemporais e fora do espaço: A intuição estética.

Através da intuição estética o gênio contempla o fundo essencial dos fenômenos, sua Idéia. O filósofo de Danzig incorpora aspectos da teoria das idéias de Platão com a sua imaterialidade e seu apriorismo com a ressalva de que para aquele a arte não está a três graus da verdade, ao contrário, a verdadeira obra de arte é a coisa mesma, é o agente facilitador para o acesso às Idéias.

A intuição estética permite ao gênio suprimir dos objetos tudo o que relaciona-se com o princípio de razão, todo o fenomenal do objeto e, em um movimento análogo no sujeito, permite-o suprimir toda a vontade individual transfigurando a estúrdia composição de eu cognoscente somada ao eu querente em puro sujeito do conhecimento. Essa supressão da fenomenalidade dos objetos presentes no mundo faz com que puro sujeito que conhece seja acometido por uma visão única e abrangente do objeto, vislumbrando não diversas facetas possíveis e mutáveis no objeto mas sim o objeto ideático e único, sendo tal experiência tão surpreendente quanto a constatação de uma pessoa, que, vendo pela primeira vez, percebe que ao se aproximar e distanciar dos objetos, eles não aumentaram ou diminuíram, mas permaneceram sempre os mesmos. A volição interior é cessada e o indivíduo transforma-se em gênio, este cocheiro que através da carruagem da obra de arte nos encaminha até o reino das Idéias. Assim, enquanto a ciência compreende os conceitos, é estruturada após a coisa, a intuição estética

compreende a Idéia ou a unidade antes da coisa27, pois como já mencionou-se, a

27

É a tradução da expressão escolástica Unitas ante rem. “A idéia é a unidade que se transforma em pluralidade por meio do espaço e do tempo [ou seja, do principium individuationis, ERB.], formas da

ciência trabalha no terreno dos conceitos, das representações abstratas; o gênio não cria abstratamente, mas sim intuitivamente, até mesmo instintivamente, sem a necessidade do contato direto com as coisas, é o sol, luz inextinguível, rodeado pelos planetas, os imitadores, os quais procuram formar conceitos daquele, em vão procurando fórmulas garantidas para o sucesso artístico. Em vão, porque os conceitos são inférteis para a arte. Mas poder-se-ia perguntar: Como o gênio conhece fora do princípio de razão e, pior, antes da coisa, se só podemos conhecer pela experiência? Acontece que conhecemos apenas através do princípio de razão como indivíduos. Se não fossemos indivíduos, mas apenas olho cósmico puro, puro sujeito do conhecimento, não veríamos mais os objetos como fenômenos, perecíveis, mutantes, ou seja, manifestados sob o princípio de individuação e subordinados ao princípio de razão, mas teríamos uma noção da sua Idéia, o mundo inteiro se afiguraria como uma essência imutável, desprovido da ilusão e o sofrimento decorrentes do tempo, espaço e a matéria. Todas as formas do princípio de razão aqui elencadas, e com elas o princípio de razão, são anuladas na intuição genial, a intuição estética; já não importa se o objeto contemplado é o objeto de agora ou de um século atrás, se o objeto está aqui ou a centenas de quilômetros, se o objeto foi causado por tal ou qual estado, pois o gênio irá representar o que nele há de universal, essencial, o seu ser-objeto para um sujeito, a Idéia.

“A idéia apenas se despiu das formas subordinadas do

fenômeno, todas expressas pelo princípio de razão, ou, para dizer de maneira mais correta: ela ainda não entrou nessas formas”28 .

Afirmar que o conhecimento apenas se efetiva com a experiência e que o gênio concebe a unidade, ou idéia antes das coisas, ou seja, antes da experiência, pareceria contraditório se o gênio não estivesse livre das formas de conhecimento

nossa percepção intuitiva; o conceito, pelo contrário, é a unidade extraída da pluralidade, por meio da abstração que é um procedimento do nosso entendimento; o conceito pode ser chamado unitas post rem, a idéia, unitas ante rem.” SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo Como Vontade e Representação. § 49 p. 247.

dos fenômenos e, portanto, livre do conhecimento individual. Ainda, a acuidade de um espírito munido com um entendimento com grau de intuição mais intenso e sua maior capacidade para fantasiar29

permite que ele não só descubra novos fenômenos dentro da cadeia de causalidade até então tidos por inobserváveis, como também anteceda a idéia nas coisas com um mínimo de contato com elas, expandindo sua intuição para além dos fenômenos. Por isso é afirmado na Metafísica do Belo: “a fantasia põe o gênio na condição de, a partir do pouco que

chegou à sua apercepção efetiva, também construir todo o resto e assim deixar desfilar diante de si quase todas as imagens possíveis da vida”30

.

• Características do Gênio.

A natureza que nunca dá saltos, salta, mas de alegria quando seu abundante dispêndio de forças finalmente produz o gênio31. Agraciado por um poder de cognição muito forte e favorecido por uma boa sorte, a qual lhe permitira o desvio de todas as distrações do acaso, sem a qual ele jamais perceberia e manifestaria o seu próprio centro de gravidade, o filho preferido da terra consegue

“ver nas coisas não o que a natureza aí colocou efetivamente, mas o que ela se esforçava por aí realizar (…)”32

.

Sua capacidade única de ver os objetos faz com que ele raramente demonstre estar de corpo e mente presente pois sua ocupação mental direciona-o

29 Conferir: SCHOPENHAUER, Arthur. Metafísica do Belo . p. 64. Não só a grande capacidade para

fantasia é considerada essencial ao gênio como também os traços de loucura como ver-se-á mais a frente. Platão já o disse, além de considerar a concepção artística como um estado alheio à própria individualidade do gênio, sedução das musas (Ver, por exemplo, Platão. Fedro. 248 a p.56). Friedrich Schiller nos disse que a produção poética inicia-se muitas vezes como estado musical, onde não há palavras formadas ainda.(Ver: NIETZSCHE, Friedrich. Nascimento da Tragédia. p.43.)

30 SCHOPENHAUER, Arthur. Metafísica do Belo. p. 64 e Mundo Como Vontade e Representação § 34

p. 196.

31

Evoco aqui diretamente a concepção de gênio de Friedrich Nietzsche: Considerações Extemporâneas -

Schopenhauer como Educador. 32

muito mais àquilo vislumbrado por trás dos objetos do que efetivamente o quê os objetos aparentam.

Esse desprendimento do presente, essa descomunal compenetração no fundo das coisas, faz com que o homem em que o gênio encarna se esqueça de si mesmo e, não raro, raramente encontre seus pares. Por isso não é difícil encontrá- lo na companhia da solidão, sussurrando monólogos.

Por conceber o mundo aparente realidade adentro, ao contrário do “homem comum”, o qual vê apenas o mundo aparente, o homem munido de tal argúcia do espírito, comumente é considerado limítrofe, ou seja, situado na fronteira entre a genialidade e a loucura. Ele comunga com a loucura pois esta, quando não resultada de um pedido de socorro da razão diante de dor moral, quando é manifestação plena de um entendimento fora do comum e desprovida de exageradas fantasias, nada mais é do que a força imaginativa necessária para o vislumbre da realidade por trás do mundo aparente. O louco mesmo não conseguiu domá-la.

Como adenda à teoria de Arthur Schopenhauer, penso que talvez a diferença entre o louco e o gênio está em que o gênio transpôs suas concepções apuradas acerca da essência dos objetos desenvolvendo mecanismos e habilidades para moldá-las, dar forma a elas, expressá-las, mediante a arte. Assim, pôde delimitar apuradamente a realidade essencial e distingui-la do mundo fenomênico que, em verdade, contém aquela, mas não é o que parece, entretanto, aos olhos da imensa maioria dos homens que estão predispostos a amarrar quem balbucia visões diferentes. Hoje, como diz Friedrich Nietzsche no seu Zaratustra, nem é preciso mais amarrar quem pensa diferente. A própria ditadura dos padrões de conduta dos seres humanos e a ditadura de contenção de impulsos faz com que quem pensa diferente e não encontra meios de expressar isso, acabe ele próprio se internando no manicômio mais próximo.

Mesmo assim, não só o louco, como o gênio também não é bem visto pelos coetâneos. Isso porque a luz lançada pelo gênio à sua obra, direcionada para a beleza de sua concepção, e que permite ao mundo sua fusão para seu estado essencial, longe do princípio de individuação, ilumina despropositadamente os

defeitos das produções de seus contemporâneos e por isso é confundida com uma rajada forte de vento impetuosa ameaçando suas estruturas a longo tempo erigidas sob conceitos prontos, erigidas na surdina mediante plantas de outros, e que lhes proporcionaram tantas honras. Por isso eles constroem muralhas para isolar as influências daquele, esperando que, isolado, ele não abale mais suas vigas. Contudo, dentro em breve, elas se desmoronarão sozinhas enquanto as construções do gênio permanecerão firmes e vigorosas, servindo de modelo para as construções da posteridade.

A marca indelével do artista é o estilo. O gênio possui esta característica ainda mais acentuada e onde ele a crava sua própria identidade é perpetuada. É apenas um o ímpeto. É semelhante à expressão popular ‘estilo de vida’, este estilo a marcar o querer, o agir da pessoa o qual, como bem assinala Muriel Maia, não se esvanece mas tentativas de ‘ novas vidas’. O estilo não se ensina, não se aprende, é a identidade, a digital do espírito do artista. E, supondo que apareçam imitadores, como é comum acontecer posteriormente ao reconhecimento da obra do gênio, a imitação só vem a elevar a pureza do estilo único e a acusar, de portas abertas, a desfaçatez do imitador, chamando-se pastiche a cópia literária e cópia barata a cópia da pintura. Portanto, não há do que se preocupar o artista quando sua obra invade os saguões; se seu estilo é puro, para todo o sempre se perpetuará como inconfundível e, ainda que não reconhecido na contemporaneidade, terá o devido valor na posteridade.

A característica de imortalização do espírito mediante a arte também nos oferece o que pensar. Se ao homem foi oferecida a oportunidade de se perpetuar mediante o corpo, pela procriação, também lhe foi concedida a oportunidade de se perpetuar mediante o espírito, pela composição artística. Resta ao artista decidir se é oportuno ou não apresentar sua obra para o mundo, se é ou não este mundo bom lugar para perpetuar seu espírito. A. Schopenhauer desconsiderava seu tempo como digno de conhecer suas convicções, contudo, assim como apreciava os clássicos, assim também poderia surgir aqueles dignos de poderem contar com sua

produção para fugir da mediocridade no futuro, poderia haver cabeças pensantes merecedoras de conhecer seu trabalho. Sua época era tão medíocre no montante da filosofia, tão repleta de filosofastros que ele diz: “ Me consolo por não ser

homem de meu tempo.”33

O alívio da mediocridade é o resultado da obra genial. Por conta desse conhecimento alçado pelo engenho esforçado do gênio, por esse produto da labuta tão exigente de transpiração quanto de inspiração proporcionar ao público da arte um breve distanciamento do tempo e do espaço e de si mesmo, levando-o até o fundo essencial das coisas, por tudo isso, o conhecimento advindo da intuição estética é o conhecimento mais objetivo possível; cessa-se o conhecimento interessado, o conhecimento individual, subserviente da vontade e resultado refinado de todo um complicado e longo desenvolvimento dos tecidos nervosos e do cérebro, manifestados no mais perfeito grau de objetivação da vontade, o homem; cessa-se o conhecimento individual dependente das relações dos objetos manifestados pelo princípio de individuação sem as quais os objetos como fenômeno desapareceriam: pois ele apenas conhece-os mediante essas relações; cessa-se o conhecimento relativo da ciência, que também subsiste nas relações de tempo e por isso tanto pode ser chamado de existente como não-existente e assemelha-se ao conhecimento vulgar com a diferença que é sistematizado, e graças à subordinação por conceitos permite universalidade mediante a síntese dos casos particulares, mas limita-se aos particulares, lhe sendo vetado não só o

conhecimento das forças primitivas da natureza como toda a essência do mundo34.

A consciência solitária do gênio é contrária aos desígnios da Vontade, a saber, os desígnios de perpetuação da espécie, quando a própria natureza precisa

de reprodutores no sentido sexual da palavra mesma e não produtores35

. Ademais,

33

Schopenhauer, Arthur. Sobre La Voluntad en la Naturaleza. [tradução minha, ERB] p. 140.

34 A revolução permitida pela filosofia schopenhaueriana, juntamente com a kantiana: o reconhecimento

dos limites do conhecimento, jamais conheceremos os princípios ocultos da natureza tais como eles são.

35

“ (…) quanto mais alguém tem em si mesmo, tanto menos necessita de fora e tanto menos também podem os demais significar para ele. Por isto a eminência do espírito leva à solidão… Porque tem-se no mundo não muito mais do que a escolha entre a solidão e a vulgaridade.” Schopenhauer, Arthur. Parerga

quanto mais o povo se torna culto, menos propensão ele tem à perpetuação da espécie, mais calmo, mais sereno e mais idoso ele se torna alcançando até o patamar de déficit de jovens como já acontece em alguns países mais cultos da Europa. O gênio, do ponto de vista dos desígnios da Vontade, já não faria a “natureza saltar”, mas amargar mais um produtor artístico a revelar o fundo desta natureza e com ele a decisão de não continuá-la, a não ser na medida satisfatória. Neste quesito não apenas o ascetismo é o inimigo dos planos da Vontade como também a arte, mas esta desvincula-se do desgosto para com a afirmação da vida no sentido em que a torna mais desejável de modo prudente e , ao mesmo tempo, forma o caráter de seus apreciadores para apresentar à continuidade da vida solução inteligente, quando o eu querente é domado pelo eu cognoscente, pelo intelecto, pela intuição estética. Aqui é claro, intelecto não significa razão e está extremamente vinculado às representações intuitivas e não às representações abstratas. É o intelecto da infância, em um primeiro instante, quando o querer não está contamidado pelas conclusões abstratas trazidas com o tempo e as relações com o mundo são diretas. É o intelecto do artista e do apreciador da arte, em um segundo momento, quando os conceitos parecem incapazes de trazer, diante de suas incansáveis relações, veracidade e profundidade de interpretação do mundo. Sempre a intuição, seja a empírica e direta, como mantenedora do caráter empírico e individual, seja a estética, como reveladora das objetividades representativas primeiras, do fundo do mundo, as Idéias presentes e escondidas no imo dos objetos. Assim, mesmo que a sensibilidade tenha se enjeitado, tenha seu querer torporizado diante de múltiplas relações e conclusões errôneas durante a vida, mesmo que o sujeito tenha anestesiado seu querer com relações que aumentaram negativamente a carapaça de seu intelecto distanciando-o do real sentir dos objetos, mesmo assim, para todo sempre, está aberta a saída da formação estética e o acesso ao fundo translúcido dos fenômenos. Em vista disto, ignorando o ascetismo, quem ousaria chamar esta estética de negativa ou pessimista?

Embora o grau de genialidade presente no gênio seja muito elevado, todos os homens são imbuídos de capacidade para contemplação estética. A faculdade estética faz parte do aparato cognoscente do homem. Se assim não fosse, não seria possível aos homens apreciarem a arte. Todos os homens são capazes de contemplação estética. Este salto estético, como diz Muriel Maia, mediante o qual os homens acessam as idéias, é movimentado principalmente pela obra de arte. Mas, de maneira alguma essa contemplação é transcendente. Muriel Maia nos diz:

“Este “salto” no conhecimento significaria, acaso, um ocupar- se com a transcendência? A resposta é, sem dúvida, um não; pois, o sabemos, a metafísica de Schopenhauer é de caráter empírico. Não há, neste universo filosófico, a pretensão de atingir a transcendência, e nisto Schopenhauer mantém-se firmemente apoiado em Kant. Ainda que a metafísica schopenhaueriana ultrapasse o aparecer e alcance a essência do mundo, o faz a partir da natureza, para desvelar o que ‘nela ou atrás dela se oculta, considerando-o sempre apenas enquanto isto que nela aparece, não entretanto independentemente de todo o aparecimento’ “36 .

Mesmo assim, uma legião de homens não externou ou manteve essa capacidade de contemplação estética. O “homem comum” atrofiou ou não permitiu o desenvolvimento desta faculdade, porquanto seu conhecimento se prendeu ao princípio de razão. Quando no máximo, ele se porta diante da obra de arte como diante de um jogo de palavras cruzadas: tão logo encontre conceitos ou significados que preencham os quadros, abandona a obra. É que seu conhecimento é demasiado bruto, ou demasiado racional, e está demasiado preso ao serviço da vontade, serve incessantemente aos seus desígnios autofágicos, procurando encher com a satisfação de desejos sua caneca furada, para se prender ao objeto da arte e contemplar a beleza. “(…) ele só pode fazer incidir a sua atenção sobre as coisas

na medida em que elas têm uma certa relação com a sua própria vontade, por

mais longínqua que seja tal relação”37. Johann Goethe nos apresenta definição maravilhosa a respeito disto:

“Sim – replicou o abade -, e assim se formam reciprocamente o amador e o artista; o amador busca apenas um prazer e indeterminado; a obra de arte deva agradá-lo pouco mais ou menos como uma obra da natureza, e os homens crêem que os orgãos com que se desfruta uma obra de arte formaram-se por si mesmos, como a língua e o palato, que se julga uma obra de arte como se julga uma comida. Não compreendem que se carece de uma outra formação para se elevar até a verdadeira fruição artística. O mais difícil, penso eu, é essa espécie de distinção que o homem deve deixar agir dentro de si, caso queira mesmo cultivar-se; por isso encontramos tantas formações unilaterais das quais cada uma tem a pretensão de anular todas as outras ”38

Mesmo assim o ignorante de arte não protesta contra a obra de arte:

“Apesar de tudo, os mais tolos dos homens não confiam menos nas obras de arte consagradas, visto que não querem transparecer sua tolice, mas eles estão dispostos, no seu foro íntimo, a condenar essas mesmas obras de arte, desde que se lhes faça esperar que eles podem fazê-lo sem nenhum perigo de se revelarem; então descarregam com deleite esse ódio por muito tempo alimentado em segredo contra o belo e contra aqueles que o realizam; não podem perdoar às obras de arte o terem-vos humilhado não lhes dizendo nada ”39.

A beleza da natureza também não lhe diz nada. Mesmo tendo à disposição a mais deslumbrante paisagem, logo procurará algum livro, algo para mastigar, alguém para conversar, enfim, algum meio para se livrar do tédio e do horror à solidão.

Que o demasiado bruto não se preste à contemplação é facilmente compreensível. Aprendeu, coagido pela dor, às duras penas sobrepor sensibilidade

37

SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo Como Vontade e Representação. § 36 p. 196 .

38

GOETHE, Johann. Os Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meister. p. 553

39

sutil com a força, feito o ferido que, não encontrando remédio para a aflição causada pela urtiga – que nada mais é do que comichão intensificado, várias pequenas sarnas -, cauteriza a ferida. Quer se livrar de pronto de tudo que não apresente logo a que veio, de tudo que aparente não se definir, de tudo que exija compenetração, tempo, a dizer, sensibilidade e predisposição para ser compreendido. Mas que dizer do demasiado racional, aquele que precisa compartimentar significados para que a obra o agrade? Quem com certa formação cultural não se sentiu bem à vontade – e aqui emprego o uso popular da palavra – ao, com orgulho, atestar sua cultura com a ligação de significados antes mesmo de contemplar a obra? E inclusive tal agregação de significados, por vezes, leva mais rapidamente à contemplacão. Ao se deparar com a seguinte pintura40

:

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; a pessoa poderia velozmente arrebatar-se pela grandiosidade do contraste entre sombra e luz, pela sensação do odor acre do desespero trazido de imediato aos sentidos e a surrealidade dos corpos sob o barco atacado por homens irados, enfurecidos, apodrecidos, isto é, desesperados, com facilidade poderia remeter à panorâmica de um verdadeiro inferno. Mas quem não sentiria tanto ou mais prazer ou assombro ao perceber que os homens jogados sob a quilha, o irado a quase deslocar a mandíbula de raiva, o barqueiro já adaptado ao meio quase sem

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