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CAPÍTULO XXVIII Divergências

No documento agost conf (páginas 140-142)

Para outros essas palavras não são um ninho, mas um vergel (jardim) ensombreado onde descobrem frutos ocultos que procuram e colhem, voando e cantando alegremente.

Quando lêem ou ouvem as palavras de Moisés, vêem que tua estável e eterna permanência, ó Deus, domina todos os tempos passados e futuros, e por isso não existe criatura corpórea que não seja obra tua. Vêem que tua vontade, confundindo-se com teu ser, criou todas as coisas sem sofrer modificação, sem que nasça nela uma decisão nova, que não existisse

antes; que criaste o mundo, não tirando de tua substância uma imagem tua, forma substancial de toda realidade, mas tirando do nada uma matéria informe, diferente de ti mesmo; e esta poderia ser formada à tua imagem pela volta à tua Unidade, segundo a medida previamente estabelecida e concedida a cada ser, de acordo com sua espécie. Vêem assim que todas as obras da criação são excelentes, ou porque permanecem próximas a ti, ou porque, afastadas de ti no tempo e no espaço, fazem ou sofrem as admiráveis variedades do mundo. Reconhecem essas coisas, e por isso se alegram na luz de tua verdade, à medida que o podem com suas forças terrenas.

Outros, refletindo o sentido destas palavras: “No princípio criou Deus...” – vê no princípio a Sabedoria, porque também ela nos fala.

Outro, ao considerar as mesmas palavras, entende por princípio o começo da criação, e a expressão: “Deus criou no princípio” significa para ele: “Deus primeiramente fez”. E entre os mesmos que por princípio entendem que Deus criou em sua Sabedoria o céu e a terra, um acredita que céu e terra designam a matéria da qual o céu e a terra foram criados; outro pensa que a expressão se aplica a naturezas já formadas e distintas; outro sustenta que a palavra céu significa natureza formada e espiritual, a terra, a natureza informe e material.

Aqueles porém que entendem por céu e terra a matéria ainda informe, com a qual viriam a ser formados o céu e a terra, não têm unanimidade: um concebe essa matéria como origem comum das criaturas sensíveis e espirituais, outro apenas como fonte de massa sensível e corpórea, contendo em seu vasto seio todas as realidades visíveis, oferecidas a nossos sentidos.

Tampouco são unânimes os que crêem que nesse texto céu e terra se referem às criaturas já formadas e dispostas; um acredita que se trata do mundo invisível e visível; outro, apenas do mundo visível, onde se contempla o céu luminoso e a terra tenebrosa, com tudo o que eles contêm.

CAPÍTULO XXIX

Dificuldades

Mas quem interpreta a palavra: “No princípio criou...” como se ela quisesse dizer: “Primeiramente Deus criou...” – apenas pode entender, por céu e terra, se quiser se manter coerente à verdade, a matéria do céu e da terra, isto é, da criação universal, tanto espiritual como material.

Pois, se quiser referir-se com isso a um universo já inteiramente formado, seríamos levados a indagar-lhe: “Se Deus criou isso antes, o que criou depois?” – Depois de ter criado tudo, não encontrará mais nada para criar e, gostando ou não, ouvirá a pergunta: “Como é possível que Deus tenha criado isso primeiro, se nada criou depois?”

Se ele quer significar que Deus criou primeiro a matéria informe, e depois lhe deu forma, já não é uma tese absurda, desde que seja capaz de discernir a prioridade na eternidade, no tempo, na escolha, na origem. Na eternidade: Deus antecede todas as coisas; no tempo: a flor precede o fruto; na escolha: o fruto vale mais do que a flor; na origem: o som precede o canto.

Dessas quatro prioridades, a primeira e a última dificilmente se compreendem, enquanto é bem fácil entender as outras duas. É de fato raro e dificultoso conceber a tua eternidade criando, mas conservando-se imutável, as coisas mutáveis e, por isso, antecedendo-as. E precisa ter uma inteligência penetrante para compreender, sem grande esforço, como o som antecede o canto, uma vez que o canto é o som organizado; e uma coisa pode muito bem existir sem forma, mas o que não existe não pode receber forma. Assim, a matéria é anterior ao que dela se forma. e não porque seja sua causa eficiente, pois também é objeto da criação; nem tampouco porque lhe seja anterior no tempo. De fato, não emitimos em um primeiro instante, sons desarticulados e informes, para depois os ligarmos e formar uma melodia e um canto, como se faz com a madeira e a prata ao fabricarmos uma arca ou um vaso.

Com efeito, essas matérias precedem no tempo os objetos que delas são feitos. Mas com o canto não é assim. Quando se canta ouve-se o som do canto: não há em primeiro lugar sons desorganizados, que depois assumem a forma de canto. Logo que ele soa, o som se desvanece, e não deixa de si nada que se possa coordenar com arte. Por conseguinte, o canto é formado de sons: o som é sua matéria e, para se transformar em canto, recebe uma forma. A prioridade não se fundamenta em um poder criador, porque o som não é o artífice do canto, mas é apenas posto pelo corpo à disposição da alma do cantor, para que dele faça um canto. Nem se trata de

prioridade temporal: o som é produzido ao mesmo tempo que o canto. Tampouco se trata de prioridade de escolha: o som não é superior ao canto, pois o canto nada mais é que som, mas um som bonito. Trata-se apenas de uma prioridade de origem, pois o canto não recebe forma para se tornar som, mas o som para se tornar canto.

Compreende-se por esse exemplo, que a matéria das coisas foi criada antes, e chamada de céu e terra, porque dela foram formados o céu e a terá. Não foi criada antes em sentido cronológico, porque o tempo só tem início com a forma das coisas; ora, a matéria era informe, e se tornou perceptível juntamente com o tempo. Todavia, nada se pode mencionar dessa matéria a não ser alguma prioridade temporal, embora ocupe a última posição na escala de valores, pois o que tem forma é evidentemente superior ao que é informe. Ou que foi precedida pela eternidade do Criador, que a fez para que fossem feitas do nada todas as coisas.

CAPÍTULO XXX

No documento agost conf (páginas 140-142)