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CAPÍTULO XXXIV O prazer dos olhos

No documento agost conf (páginas 108-110)

Resta ainda falar do prazer destes olhos carnais. Oxalá que os ouvidos fraternos e piedosos de teu templo ouvissem a minha confissão! Encerrando assim as tentações da concupiscência que ainda me perseguem, apesar de meus gemidos e dos desejos de ser revestido de meu tabernáculo, que é o céu.

Meus olhos apreciam as formas belas e variadas, as cores brilhantes e amenas. Oxalá elas não me acorrentassem a alma! Oxalá ela só fosse presa pelo Deus que criou coisas tão boas: ele é meu bem, e não elas. Todos os dias, estando acordado, elas me importunam sem o descanso das vozes que se calam, e às vezes de tudo o que existe, quando silencia. A própria rainha das cores, a luz que inunda tudo o que vemos, e onde quer que eu esteja durante o dia, acaricia-me de mil modos, mesmo quando estou ocupado em outra coisa e não lhe dou atenção. E ela se insinua tão fortemente que, se de repente me for tirada, a desejo, a procuro e, se sua ausência se prolonga, a alma se entristece.

Ó luz que Tobias contemplava quando, cego, mostrava ao filho o caminho da vida, caminhando à sua frente com os passos da caridade, sem jamais se perder! Luz que via Isaac, quando seus olhos carnais, oprimidos e velados pela velhice, mereceram não abençoar os filhos reconhecendo-os, mas reconhecê-los ao abençoá-los! Luz que via Jacó, também cego pela idade provecta, irradiou os fulgores de seu coração iluminado sobre as gerações do povo futuro, representadas em seus filhos! E a seus netos, os filhos de José, impôs as mãos misticamente cruzadas, não na ordem em que queria dispô-los o pai, que via com os olhos corporais, mas de acordo com seu próprio discernimento interior! Eis a verdadeira luz; ela é uma, e todos os que a vêem e amam formam um único ser.

Quanto à luz corporal, de que falava, com sua doçura sedutora e perigosa, é um dos prazeres da vida para os cegos amantes do mundo. Mas os que nela sabem encontrar motivos para te louvar, Deus, criador de todas as coisas, convertem-na em hino em teu louvor, sem se deixarem dominar por ela no sono. é assim que desejo ser. Resisto às seduções dos olhos, para que meus pés, que começam a trilhar teus caminhos, não fiquem enredados. Elevo a ti olhos invisíveis, para que libertes meus pés de seus laços. Tu não cessa de livrá-los, porque sempre estão a se prender. Tu não cessas de me livrar, e eu me deixo cair a cada passo nas insídias espalhadas por toda parte, porque não dormirás, nem cochilarás, tu que guardas a Israel.

Quantos encantos os homens acrescentaram às seduções dos olhos, com a variedade de suas artes, com sua indústria de vestidos, de calçados, de vasos, de objetos de toda espécie, com pinturas e esculturas diversas que de longe ultrapassam os limites do necessário e moderado e da expressão piedosa. Exteriormente perseguem as produções de suas artes, e em seu interior abandonam Àquele que os criou, deturpando em si o que ele fez.

Quanto a mim, meu Deus e minha glória, encontro nisto razão para cantar-te um hino, e oferecer um sacrifício de louvor àquele que sacrificou por mim. As belezas que da alma do artista passam para suas mãos, provêm desta beleza, que é superior às nossas almas e pela qual minha alma suspira dia e noite.

Entretanto, os que geram e os amantes das belezas exteriores, tiram da beleza soberana apenas o critério para julgá-las, mas não uma regra para usá-las bem. Contudo, a norma ali está, mas eles não a vêem. Se a vissem, não se afastariam , e guardariam sua força para ti, e não a dissipariam em fatigantes delícias.

Mesmo eu, que exponho e compreendo essas verdades, deixo-me enredar nessas belezas; mas tu me livras de seu laço, tu me libertas, porque tua misericórdia está diante de meus olhos. Miseravelmente eu caio, e tu me levantas misericordiosamente, às vezes sem que eu o perceba, quando minha queda foi suave, e outras infligindo-me uma pena, por ter ficado preso ao chão.

CAPÍTULO XXXV

A curiosidade

Às anteriores acrescente-se outra tentação, que oferece maiores perigos. Além da concupiscência da carne, que consiste no deleite voluptuoso de todos os sentidos, e cuja servidão dana os que ela afasta de ti, insinua-se na alma um outro desejo, que se exerce pelos mesmos sentidos corporais, mas tende menos a uma satisfação carnal do que a tudo conhecer por meio da carne.

É a vã curiosidade, que se disfarça sob o nome de conhecimento e de ciência. Como nasce do apetite de tudo conhecer, e como entre os sentidos os olhos são os mais aptos para o conhecimento, a Sagrada Escritura chamou-a de concupiscência dos olhos.

De fato, ver é função própria dos olhos; mas muitas vezes nós usamos essa expressão mesmo quando se trata de outros sentidos, aplicados ao conhecimento. Nós não dizemos: “Ouve como isto brilha” – nem: “Sente como isso resplandece” – nem: “Apalpa como isto cintila”. – Para exprimir tudo isso dizemos “ver ou olhar”. E até não nos limitamos a dizer: “Olha que luz!”, pois apenas os olhos nos podem dar esta sensação – mas, dizemos ainda: “Olha que som! Olha que cheiro! Olha que gosto! Olha como é duro!” Por isso toda experiência que é obra dos sentidos é chamada, como disse, concupiscência dos olhos. Essa função da visão, que pertence aos olhos, é usurpada metaforicamente pelos outros sentidos, quando buscam conhecer alguma coisa.

Daqui podemos distinguir claramente o papel da volúpia e o da curiosidade na ação dos sentidos. O prazer procura o que é belo, melodioso, suave, saboroso, agradável ao todo; a curiosidade por sua vez deseja o contrário, não para se expor ao sofrimento, mas pela paixão de conhecer por meio da experiência. Que prazer pode ter na visão de um cadáver dilacerado, que causa horror? E todavia onde há um cadáver, para lá corre toda a gente para se entristecer e empalidecer. E temem depois revê-lo em sonhos, como se alguém os tivesse obrigado a contemplá-lo, ou como se a fama de alguma beleza os tivesse atraído. O mesmo acontece com os outros sentidos, o que seria enfadonho enumerar.

É esse quê de mórbido de curiosidade que faz com que se exibam monstruosidades nos espetáculos. É ela que nos induz a perscrutar os segredos da natureza exterior, cujo conhecimento de nada serve, mas que os homens buscam conhecer apenas pelo prazer de conhecer. É ela também que inspira o homem a pesquisar, com fim semelhante, a ciência perversa, que é a arte da magia.

E é ela, enfim, que, até na religião, nos induz a tentar a Deus, pedindo-lhe sinais e prodígios, não para a salvação da alma, mas apenas pela ânsia de vê-los.

Nessa imensa floresta, cheia de insídias e perigos, cortei e lancei para fora de meu coração muitos males, graças à força que me concedeste para tanto, Deus de minha salvação. Contudo, no turbilhão diário de tantas e tão variadas tentações que atormentam minha vida, quando ousarei dizer que nenhuma delas atrai mais minha atenção e não cativa minha vã curiosidade? Certamente que o teatro já não me atrai, nem me importo mais em conhecer o curso dos astros; jamais, para obter uma resposta, consultei as sombras, pois detesto todos os ritos sacrílegos.

Mas quantos artifícios inventa o inimigo para me tentar a que te peça algum milagre, a ti, Senhor, meu Deus, a quem devo servir humilde e simplesmente! Eu te suplico, por nosso Rei, por nossa pátria, a pura e casta Jerusalém, que o perigo de consentir nessas coisas, que até agora esteve longe de mim, se afaste cada vez mais! Mas quando te peço a salvação de uma alma, a

finalidade de meu intento é bem diferente: ouve-me pois, e concede-me a graça de seguir de bom grado tua vontade.

Mas incontáveis são as pequenas e desprezíveis bagatelas que tentam cada dia nossa curiosidade! E quem poderá contar nossas quedas? Quantas vezes ouvimos contar banalidades! Toleramo-las, de início, para não magoar os fracos, e depois, aos poucos, ouvimo-las com atenção sempre crescente!

Não vou mais ao circo, para ver um cão correr atrás de uma lebre; mas, passando casualmente pelo campo e vendo algo assim, eis-me interessado pela caçada, talvez até distraindo-me de algum pensamento profundo. E, se não chega a me fazer mudar o caminho do meu cavalo, desvio o curso do meu coração. Se após tal demonstração de minha fraqueza tu não me alertares para que abandone esse espetáculo, elevando-me a ti por meio de alguma reflexão, ou desprezando tudo e passando adiante, ficaria ali, absorvido como um bobo.

E que dizer quando, sentado em minha casa, observando uma lagartixa à caça de moscas, ou uma aranha que as enreda em sua teia? Acaso, por serem animais pequenos, a curiosidade que despertam em mim não é a mesma? É verdade que depois passo a te louvar; Criador admirável, ordenador do universo, mas não foi esse o pensamento que primeiro me moveu. Uma coisa é levantar-se depressa, e outra é não cair.

Dessas quedas está repleta minha vida, e minha única esperança está em tua infinita misericórdia. Nosso coração é o receptáculo de tais misérias, e traz em si grande quantidade de vaidades, que muitas vezes até interrompem e perturbam nossas orações; e enquanto em tua presença levantamos a voz de nossa alma até teus ouvidos, tais pensamentos fúteis, vindos não sei de onde, vêm perturbar um ato tão importante.

CAPÍTULO XXXVI

No documento agost conf (páginas 108-110)