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Os corpos de São Gervásio e de São Protásio

No documento agost conf (páginas 84-86)

Não havia muito tempo que a igreja de Milão começara a adotar essa prática consoladora e edificante do canto, com grande regozijo dos fiéis, que uniam em um só coro as vozes e o coração. Havia um ano, ou pouco mais, que Justina, mãe do imperador Valentiniano, ainda menor, seduzida pelos arianos, perseguia, por causa de sua heresia, teu servo Ambrósio. O povo fiel passava as noites na igreja, disposto a morrer com seu bispo.

Nesse meio estava minha mãe, tua serva, uma das primeiras no zelo dessas inquietações e vigílias, não vivendo senão de orações. Nós, apensar de ainda frios, sem o calor de teu Espírito, nos sentíamos comovidos pela perturbação e consternação da cidade.

Foi então que se fixou o costume de cantar hinos e salmos, como se faz no Oriente, para que os fiéis não se consumissem no tédio e na tristeza. Desde esse dia esse costume manteve- se, e no resto do mundo, quase todas as tuas comunidades de fiéis passaram a adotá-lo.

Foi também nessa época que revelaste em sonho ao bispo Ambrósio o lugar em que jaziam ocultos os corpos dos mártires Gervásio e Protásio, que durante muito tempo, conservastes intactos no tesouro de teus segredos, a fim de revelá-los no momento oportuno para refrear o furor de uma mulher, embora imperatriz.

Com efeito, depois de descobertos e desenterrados, ao serem transladados com as honras convenientes para a basílica ambrosiana, alguns possessos, atormentados pelos espíritos imundos, foram curados, conforme confissão dos próprios demônios. Também um cidadão, cego

havia muitos anos, e muito conhecido na cidade, perguntou a razão daquele alvoroço e alegria populares; informado, pediu a seu guia que o levasse até ás relíquias. Lá chegando, obteve permissão para tocar com um lenço o ataúde de teus santos, cuja morte havia sido preciosa a teus olhos. Feito isto, aplicou o lenço aos olhos, que imediatamente se abriram.

A noticia do milagre logo se propagou, e imediatamente se ouviram teus louvores com fervor, e o coração de tua inimiga, sem se converter à tua fé, reprimiu contudo o furor da perseguição.

Graças te dou, meu Deus! De onde e para onde guiaste minha memória, para que também te confessasse estes acontecimentos que, embora grandes, eu já havia esquecido e omitido?

Todavia, quando assim exalava o odor de teus perfumes, eu ainda não corria atrás de ti. Eis que redobrava minhas lágrimas ao ouvir teus cânticos. Outrora eu suspirava por ti, e enfim respirava o pouco ar de uma choça de feno (alusão ao profeta Isaias,40,6)

CAPÍTULO VIII

Mônica

Tu, que fazes morar na mesma casa os que têm coração unânime, trouxeste pra junto de nós Evódio, jovem de nosso município que, militando como agente de negócios do imperador, se convertera e recebera o batismo antes de nós, abandonara a milícia do século, alistando-se na tua.

Estávamos juntos, e juntos pensávamos viver nosso santo propósito. Buscávamos um lugar onde nos pudéssemos instalar mais comodamente para te servir e juntos rumávamos para a África quando, chegando a Óstia, na foz do Tibre, faleceu minha mãe.

Muitas coisas passo em silêncio, porque tenho pressa. Recebe minhas confissões e ações de graças, meu Deus, pelas inúmeras bondades que não menciono aqui. Mas não quero calar o que brota de minha alma a respeito desta tua serva, que me gerou na carne para a luz temporal, e no coração para a luz eterna. Não referirei suas qualidades, nem a si mesma se havia educado. Foste tu quem a educaste, nem seu pai, nem sua mãe sabiam o que viriam a ser aquela a quem geraram. A disciplina de teu Cristo, a doutrina de teu Filho único educaram-na em teu temor em uma família fiel, digno membro de tua Igreja.

Nem ela mesma enaltecia o zelo da mãe em educá-la, quanto o de uma velha serva, que carregara seu pai quando menino, como hoje as meninas maiores costumam carregar as crianças, às costas.

Estas recordações, sua idade avançada e hábitos exemplares lhe asseguravam naquela casa cristã o respeito de seus amos. Ela própria cuidava solicitamente das meninas que lhe haviam sido confiadas, ora repreendendo-as quando fosse o caso, com santa e enérgica severidade, ora instruindo-as com discreta prudência. Afora do horário em que tomavam uma sóbria refeição à mesa de seus pais, ainda que tivessem muita sede, nem água permitia que elas bebessem, precavendo com isso um mau costume. E acrescentava este sábio aviso: “Agora bebeis água, porque não tendes como beber vinho; mas quando estiverdes casadas, donas da despensa e da adega, deixareis a água, mas continuará o hábito de beber”.

E unindo assim o conselho à autoridade, refreava os apetites daquela tenra idade, e acostumava aquelas jovens à temperança, para que não tivesse desejo do que não lhes convinha. No entanto – como tua serva me contou a mim, seu filho – insinuou-se nela certo gosto pelo vinho. Julgando-a menina sóbria, seus pais a escolheram, como era costume, para tirar o vinho do tonel. Mergulhava a caneca pela parte superior do recipiente e, antes de passar o vinho para a garrafa, sorvia com a ponta dos lábios um pouquinho; era-lhe impossível beber mais, porque o vinho lhe repugnava. Não fazia isto movida pela inclinação à embriaguez, mas pela exuberância juvenil, que se manifestava em movimentos, em brincadeiras, e que na meninice costumam ser reprimidos pela autoridade severa dos mais velhos. Mas, acrescentando todos os dias uns goles àqueles goles – pois quem descuida das coisas pequenas pouco a pouco cai nas maiores – acostumou-se a esvaziar avidamente copos quase cheios de vinho puro.

Onde estava então a prudente anciã, e sua severa proibição? Mas que remédio curaria um mal oculto se tua medicina, Senhor, não velasse sobre nós? Na ausência do pai, da mãe e das amas, estavas lá tu que nos criaste, que nos chamas, e que por meio dos que nos educam fazes o bem para a salvação das almas. Que fizeste então, meu Deus? Como a socorreste? Como a

curaste? Fizeste sair de outra pessoa, segundo tuas secretas providências, um sarcasmo duro e pungente como ferro medicinal, para curar de um só golpe aquela gangrena.

A criada que costumava acompanhá-la à adega, discutindo com sua jovem senhora, como às vezes acontece, estando as duas a sós, lançou-lhe em rosto sua intemperança, chamando-a insultuosamente de bêbada. Ferida por esse sarcasmo, a jovem reconheceu a fealdade daquele hábito, reprovou-o, e no mesmo instante o abandonou.

Assim como muitas vezes as lisonjas dos amigos nos pervertem, assim os insultos dos inimigos nos corrigem. Mas não é o bem que nos fazem por seu intermédio que retribuis, mas a intenção com que o fazem. Aquela criada zangada pretendia ofender sua jovem senhora, e não corrigi-la; e se o fez às escondidas foi só por força da circunstância do lugar e tempo, ou para que não viesse a sofrer por denunciar tão tarde o costume de sua senhora.

Mas, tu, Senhor, governador do céu e da terra, que desvias para teus desígnios as águas da torrente e regulas o curso turbulento dos séculos, curaste a loucura de uma alma com a insânia de outra. Por isso ninguém, ao considerar o caso, atribua a seu poder pessoal o mérito de ter corrigido com suas palavras a alguém cuja emenda deseja conseguir.

CAPÍTULO IX

No documento agost conf (páginas 84-86)