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capital por ações

No documento MESTRADO DE ECONOMIA POLÍTICA (páginas 154-161)

PARTE II – INVESTIGAÇÕES A PARTIR DA TEORIA DO VALOR

3. AUTONOMIZAÇÃO DO CAPITAL-DINHEIRO: AUTONOMIA E DOMINÂNCIA

3.3 O sistema de crédito e o capital fictício: ou a efetividade do conceito

3.3.1 capital por ações

Cabe agora abandonar um pouco a generalidade do capital-dinheiro em suas formas autonomizadas mais gerais e adentrar a especificidade do capital por ações. A expansão da capacidade de acumulação de capitais já foi tratada ao longo desta seção, bem como a ampliação do comportamento especulativo e a potencialização das crises. Restam, então, três traços fundamentais dessa forma de propriedade que podem contribuir para o objeto geral deste estudo: 1) o caráter social assumido pelo capital por ações, que reforça seu aspecto de capital em geral e a impessoalidade de seus movimentos; 2) a delimitação mais precisa entre função e propriedade do capital, de modo que, efetivamente, a função se dê por uma fração assalariada enquanto a propriedade por simples proprietários de capital-dinheiro, processo fundamental para se compreender a autonomia e a dominância qualitativa da finança; 3) o parasitismo particular da classe de capitalistas envolvidos nos

8686 “Num sistema de produção em que toda a conexão do processo de reprodução repousa sobre o

crédito, quando então o crédito subitamente cessa e passa apenas a valer pagamento em espécie, tem de sobrevir evidentemente uma crise, uma corrida violenta aos meios de pagamento. À primeira vista, a crise toda se apresenta portanto apenas como crise de crédito e crise monetária. E de fato trata-se apenas da conversibilidade das letras em dinheiro. Mas essas letras representam em sua maioria compras e vendas reais, cuja extensão, que ultrapassa de longe as necessidades sociais, está, em última instância, na base de toda a crise.” (MARX, 1988c, p. 21)

movimentos de especulação com essa forma de capital (e com todo o capital fictício, de modo mais geral), esse último ponto permitirá discutir a pertinência do termo “capital especulativo parasitário” utilizado pela Escola de Vitória.

Segundo Marx (1988b, p. 315):

O capital, que em si repousa sobre um modo social de produção e pressupõe uma concentração social de meios de produção e forças de trabalho, recebe aqui [no capital por ações] diretamente a forma de capital social (capital de indivíduos diretamente associados) em antítese ao capital privado [individual], e suas empresas se apresentam como empresas sociais em antítese às empresas privadas. É a [suprassunção]87 do capital como propriedade privada,

dentro dos limites do próprio modo de produção capitalista.

Como Leda Paulani (2011), compreende-se aqui que o capitalismo carrega consigo uma tendência à autonomização das formas puramente sociais. Formas cada vez mais distantes de seus representantes físicos. Em seu artigo, Paulani trata de uma tendência a que a moeda (e mesmo o dinheiro mundial) viesse, de fato, a assumir a forma de moeda fiduciária. Essa forma possui uma existência que é puramente social, a moeda de curso forçado não possui outro valor de uso que não seja funcionar como dinheiro. Seu corpo é somente um signo de valor impresso e assegurado pelo Estado, nada mais.

A forma da moeda-mercadoria, que carrega o valor de seu suporte no valor de uma mercadoria, como o ouro, não deixa de ser uma forma social, todavia, ela precisa de um suporte que possua, ele próprio, um valor. Esse suporte, além de possuir valor, possui (como as demais mercadorias) um valor de uso que não consiste somente no valor de uso de funcionar como dinheiro. Portanto, não se trata de uma forma puramente social, sua objetividade está calcada em uma existência física de mercadoria. A moeda fiduciária, por sua vez, não possui qualquer valor de uso além de funcionar como dinheiro (e poder ser transformada em capital), seu corpo não foi produzido custando o tempo de trabalho socialmente necessário que

87 Na tradução utilizada aparece, no lugar de suprassunção, o termo abolição seguido de uma nota de

rodapé explicando se tratar do termo em alemão aufhebung. Atualmente, este termo tem sido usualmente traduzido como suprassunção, como tentativa de ser mais fiel aos usos e sentidos do termo original em alemão. O termo original guarda três sentidos centrais: 1) abolem-se traços daquilo que passou pela afhebung e alcançou uma nova forma; 2) mantêm-se traços do anterior no novo; 3) eleva-se o anterior a um estágio mais desenvolvido e complexo em suas determinações. Acredita-se aqui que, de fato, suprassunção cumpre melhor a tarefa de traduzir este termo do que os demais termos utilizados em seu lugar, até por destacar o fato de ser este um importante momento da dialética, não simplesmente uma palavra, como abolição parece ser. As traduções atuais da obra de Marx publicadas pela editora Boitempo têm, em geral, preferido a utilização do termo suprassunção.

está cunhado em seu valor de face. Esse tempo mesmo não lhe importa, uma nota de cem reais é produzida custando um valor em magnitude muito similar a uma nota de dois reais, a magnitude de valor contida nessa forma do dinheiro é irrelevante. A relevância é dada exclusivamente ao valor que a sociedade lhe atribui, com o aval do Estado, sua forma é puramente social.

As formas puramente sociais são formas de apresentação das formas sociais que expressam mais adequadamente um conteúdo que é, ele mesmo, puramente social. Ao observar o capital por ações, conforme Marx descreveu na citação acima, pode-se avaliar este como uma forma puramente social de apresentação da relação de capital. Nesta forma, a propriedade do capital não possui mais nenhuma vinculação com o processo de trabalho, pois o proprietário já não possui mais a aparência de ser um “trabalhador qualificado” que exerce função de comando da produção. A remuneração do acionista decorre diretamente de sua propriedade, não carrega sequer a semelhança com qualquer forma de trabalho. A propriedade do capital aparece, neste modo, diretamente com a sua face real: a propriedade dos meios de produção (embora essa esteja supervalorizada pela capitalização).

O capital por ações, expressa com uma forma puramente social (“capital social” ou “propriedade social” são termos utilizados por Marx para descrevê-lo) uma relação social com base em “um modo social de produção e [que] pressupõe uma concentração social de meios de produção e forças de trabalho”. Em outros termos, existe uma perfeita correlação de forma e conteúdo: uma forma puramente social para expressar conteúdos de mesma natureza. É a forma acabada de existência do capital.

Não é, então, sem propósito que Marx diz ser esta uma suprassunção “do capital como propriedade privada, dentro dos limites do próprio modo de produção capitalista” (MARX, 1988b, p. 315). O capital em geral aqui se mostra do modo mais conceitual e impessoal, ele suprassume a própria forma da propriedade privada dos meios de produção, sem sair do capitalismo. A propriedade social das ações é uma propriedade privada social, o proprietário efetivo das ações é desimportante, ele não exerce nenhum papel direto na exploração, é somente o destinatário ocioso dos fluxos de mais-valor transformados em uma forma de renda a juros (o que se vincula ao ponto “3” desta subseção, sobre o parasitismo de uma classe ociosa de

capitalistas).

A propriedade efetiva das ações é distribuída entre diversos indivíduos, pode ser divida em diversas partes alíquotas, encontrar novos donos, ser reunida nas mãos de poucos, de um grupo fechado, de vários grupos fechados, inclusive pode ser de propriedade de sindicatos de trabalhadores e diversos outros arranjos imagináveis. Chega-se ao ponto em que o capital se torna uma existência tão fantasmagórica que a sua propriedade se perde de vista. Todavia, é justamente quando a aparência de ser com vida própria do capital se torna mais forte que se torna mais ampla e puramente social sua existência. Quanto mais ele esconde sua face social, mais ele se constitui e se apresenta com formas puramente sociais. Como em “A carta roubada” de Edgar Allan Poe, a face social do capital se esconde por sua evidência.

A combinação do sistema de crédito com a propriedade acionária coloca, dentro de certos limites, todo o capital social disponível para utilização pelas unidades capitalistas. Essa “disposição sobre capital social, não próprio, dá-lhe disposição sobre trabalho social” (MARX, 1988b, p. 316-317). Todo o trabalho socialmente existente se encontra à disposição dos capitais, cada vez mais despersonalizados, e de fato aparece como um trabalho a serviço de uma força invisível, a propriedade do capital por ações muda de mãos com bastante rapidez, os donos desse trabalho social podem ser quaisquer uns, desde que estes possuam capital-dinheiro suficiente para adquirir essas propriedades. É poder de um grupo (de uma classe inteira) comandar o destino dos recursos do trabalho social existente, não de indivíduos específicos, capitalistas específicos.

A forma monetária de reprodução do capital monetário é uma forma autônoma e pura de apropriação de trabalho alheio, o caráter puro de um capital em geral que se porta como conceito é elevado ao seu mais alto grau. Essa forma se apresenta como o puro e simples direito do capitalista monetário se apropriar de trabalho não pago. A estrutura do capital existe aqui em sua forma mais imediata de simples apropriação, sem a mediação do controle sobre o processo de produção (relegado aos quadros). “Na medida em que observamos a forma peculiar da acumulação do capital monetário [capital-dinheiro] e da riqueza monetária em geral, até agora, ela se reduziu à acumulação de direitos da propriedade sobre o trabalho” (MARX, 1988c, p. 12).

O capital-dinheiro em suas formas autonomizadas é mais que uma forma de acúmulo de riquezas, é um acúmulo (fetichizado pela forma portadora de juros) de relações de poder, na forma de direitos privados de apropriação do trabalho social. O mecanismo autômato aqui está azeitado em seu mais alto grau, sua eficiência de expropriação chega ao ponto de expropriar até mesmo os antigos capitalistas, comandantes diretos do processo de exploração. A divisão entre proprietários e administradores do processo de exploração segue até a expropriação dos pequenos e médios capitalistas, transformados em quadros gestores.

O sucesso e o insucesso levam aqui simultaneamente à centralização dos capitais e, portanto, à expropriação na escala mais alta. A expropriação extende-se aqui dos seus produtores diretos até os próprios capitalistas pequenos e médios. Essa expropriação constitui o ponto de partida do modo de produção capitalista; sua realização é seu objetivo; trata-se em última intância de expropriar todos os indivíduos de seus meios de produção, os quais, com o desenvolvimento da produção social, deixam de ser meios da produção privada e produtos da produção privada e só podem ser meios de produção nas mãos dos produtores associados, por conseguinte sua propriedade social, como já são seu produto social. Essa expropriação apresenta-se, porém, no interior do próprio sistema capitalista como figura antitética, como apropriação da propriedade social por poucos; e o crédito dá a esses poucos cada vez mais o caráter de aventureiros puros. Uma vez que a propriedade existe aqui na forma de ação, seu movimento e transferência tornam-se resultado puro do jogo da bolsa [...] (MARX, 1988b, p. 317)

Esse processo, que Marx chamou de suprassunção da propriedade capitalista dentro do modo de produção capitalista, retira do comando do processo direto de exploração a figura do capitalista industrial. Ao fazer isso, necessariamente deve colocar algo no lugar, pois o processo de acumulação não pode ocorrer sem olhos especializados na tarefa de explorar trabalho humano. Por esse motivo que a difusão da propriedade por ações como forma principal de propriedade do capital cria, necessariamente, uma fração (sem meio de produção, ao menos em grande escala) de classe responsabilizada por exercer a gestão técnica da exploração. Esses são os quadros tratados por Duménil e Lévy no primeiro capítulo, são os olhos, ouvidos e chicotes dos capitalistas dentro do processo produtivo, eles garantem o afluxo de rendas para os acionistas, garantindo a constante e ampliada extração de mais-valor.

responsáveis por comandar as tarefas produtivas (pelo menos nos grandes capitais, divididos por ações), estes podem, agora, serem chamados de classe ociosa. A burguesia passa a imitar a velha aristocracia, após ter sido responsável por destituí- la de seu lugar de classe dominante.

[A fração dos capitalistas acionistas] reproduz uma nova aristocracia financeira, uma nova espécie de parasitas na figura de fazedores de projetos, fundadores e diretores meramente nominais; todo o sistema de embuste e de fraude no tocante à incorporação de sociedades, lançamentos de ações e comércio de ações. É a propriedade privada sem o controle da propriedade privada (MARX, 1988b, p. 316)

Essa separação completa entre função e propriedade do capital, sendo que esta última se identifica à propriedade de simples capital-dinheiro, dá à fração monetária do capital seu grau mais elevado de autonomia. A propriedade do capital se identifica à propriedade financeira do mesmo, os interesses dessa fração de classe são, a partir desses processos, os interesses predominantes dentro da classe capitalista, pois estes são os maiores e mais poderosos dentro de sua classe. Os demais, médios e pequenos proprietários, tendem a serem subordinados aos grandes proprietários do capital-dinheiro ou a falirem e serem transformados em quadros assalariados dos grandes capitalistas.

A dominância dos capitais na forma dinheiro, sobretudo do capital fictício e acionário, é elevada ao grau de dominância qualitativa. Os interesses desta fração ganham dominância dentro da classe dominante. A separação do controle e da propriedade é capaz de efetivar o capital-dinheiro (capital enquanto capital, capital em geral em sua forma pura) como força predominante dentro do modo de produção capitalista.

Completa-se assim a análise dos movimentos das formas monetárias do capital a partir da perspectiva destas como formas sociais. Justamente o desenvolvimento ímpar das relações sociais capitalistas, o caráter mais e mais puramente social de suas formas de apresentação (como é o caso da propriedade do capital por ações e da moeda fiduciária) emerge em conjunto com a aparição cada vez mais fetichista e assemelhada ao funcionamento de um conceito que se move por sua própria lógica de contradições internas. Neste sentido, poder-se-ia dizer, nunca fez tanto sentido a análise do capital em geral como um conceito quanto faz hoje, quando as relações sociais se impõem com uma estrutura mais bem acabada, coercitiva e associada entre Estado, forma jurídica, ideologia e

capital. O fetiche se torna tão maior quanto maior se torna a estrutura de relações sociais que é mistificada pela apresentação das formas sociais.

No documento MESTRADO DE ECONOMIA POLÍTICA (páginas 154-161)