• Nenhum resultado encontrado

Formas sociais do valor: o ponto zero

No documento MESTRADO DE ECONOMIA POLÍTICA (páginas 86-90)

PARTE II – INVESTIGAÇÕES A PARTIR DA TEORIA DO VALOR

2. DAS FORMAS SOCIAIS ÀS FORMAS FUNCIONAIS

2.1 Formas sociais do valor: o ponto zero

As formas sociais, conforme visto na seção anterior, se apresentam tanto a partir das relações diretas entre as classes, dessas com o Estado e, inclusive, das classes e do Estado como determinantes da ideologia e de demais aspectos superestruturais que compõem um modo de regulação. Todavia, as formas sociais também se apresentam de modo assemelhado ao conceito, abstrato, com movimento próprio, contradições internas e um funcionamento lógico do registro da necessidade e não da contingência. O desenvolvimento das formas do valor, da forma simples ao equivalente geral ilustra o desenvolvimento de uma forma social, logicamente partindo de relações diretas entre indivíduos, fortuitas e contingentes (como é o caso da forma simples do valor) até uma forma geral, capaz de operar no registro daquilo que é necessário, com substância, matéria e forma (como nos casos da forma equivalente geral e, sobretudo, do dinheiro e do capital).

A teoria do valor, nesse sentido, é uma teoria que parte da práxis do conjunto das classes. Embora o valor ocupe desta teoria o lugar de conceito, este não pode ser confundindo com conceitos que sejam fruto das ideias, do pensamento, mas como um algo derivado da análise de práticas sociais e históricas que, em seu modo de apresentação, se faz conceito:

Ora, a teoria de Marx é uma ‘teoria social do valor’, e não funda qualquer princípio de conservação em “metáforas naturais ou científicas”: o conceito de valor de Marx, como vimos, funda-se na prática social das classes sociais. (BORGES NETO, 2003, p. 10) O movimento dos quatro primeiros capítulos do livro I do Capital pode ser lido como um modo de apresentação do desenvolvimento de formas sociais básicas no interior da sociedade capitalista. Sumarizando esse movimento, Marx parte do dado imediato da experiência de que “A riqueza das sociedades onde reina o modo de produção capitalista aparece como uma ‘enorme coleção de mercadorias’” (MARX, 2013, p. 113). A partir daí, ainda no terreno da aparência, Marx procede uma primeira investigação sobre a natureza dessa riqueza, formada inicialmente pelos polos do valor de uso e do valor de troca.

Mas, os valores de uso vêm dos corpos objetivos de todos os bens úteis, sejam eles mercadorias ou não. O valor de uso dos objetos é algo que os permeia em qualquer modo de produção e, embora sejam historicamente determinados (urânio, por exemplo, é algo que só possui certos valores de uso após desenvolvimentos da física nuclear), não são restritos aos modos de produção nos quais existam mercadorias. Deste modo, o valor de uso não é o foco particular da riqueza na sociedade capitalista, embora tenha também um papel como suporte do valor:

os valores de uso formam o conteúdo material da riqueza, qualquer que seja a forma social desta. Nesta forma de sociedade que iremos analisar, eles constituem, ao mesmo tempo, os suportes materiais do valor de troca. (MARX, 2013, p. 114)

A substância do valor deve ser qualitativamente indiferenciada, posto que na troca se abstraem as diferenças qualitativas através da igualdade quantitativa da grandeza dessa substância comum. Além disso, deve ser algo comum, que exista em todas as mercadorias. O trabalho humano atende à demanda de ser a única substância comum em todas as mercadorias56; todavia, como trabalho ele ainda carrega diferenças qualitativas (o trabalho de um pedreiro é qualitativamente diferente do trabalho de um padeiro, de um professor ou de um gerente de empresa). Há então que se considerar que além de ser a atividade humana qualitativamente diferenciável, o trabalho pode ser considerado como o simples dispêndio de força de trabalho. Essa forma do trabalho é o trabalho abstraído de suas qualidades, portanto, é trabalho abstrato.

Todavia, não se trata de uma simples abstração do pensamento, uma abstração ideal, é uma abstração feita pela própria sociedade ao passo em que todos os mais diferentes trabalhos, no capitalismo, podem ser trocados pelo mesmo signo de valor, variando este somente em sua quantidade. Portanto, o trabalho é abstraído de suas qualidades específicas pelo conjunto da sociedade. Trata-se, neste caso, de uma abstração real. Real porque é posta pela práxis do conjunto da sociedade, orientando sua forma de produzir e reproduzir a vida, a riqueza, as relações de poder e de classe.

56 “Prescindindo do valor de uso dos corpos das mercadorias, resta nelas uma única propriedade: a

de serem produtos do trabalho.” (MARX, 2013, p. 116)

a “abstração” que conduz do trabalho concreto (ou, melhor dizendo, das diversas formas de trabalho concreto) ao trabalho abstrato não [...é] apenas uma abstração mental, mas sim uma abstração que se realiza na própria realidade. Se o “trabalho abstrato” fosse apenas uma abstração mental, não teria “densidade” social para constituir a “substância do valor”, ou seja, o valor seria reduzido a uma mera construção mental. (BORGES NETO, 2008, p. 115)

Este trabalho abstrato é, pois, uma substância social (BORGES NETO, 2008; 2003) e uma determinação do valor contido nas mercadorias; é, junto ao valor que ele determina, a expressão de uma relação social posta de maneira universal dentro do capitalismo. Dessa substância social, o valor emerge e se apresenta em distintas formas, igualmente sociais, de existir. O valor existe nas mercadorias à venda, na própria força de trabalho, no capital fixo imobilizado nas unidades produtivas, no dinheiro e em outras formas de propriedade. Essas são formas sociais de existir do valor.

o “valor” da mercadoria não faz outra coisa senão expressar numa forma historicamente progressiva o que já existia em todas as demais formas históricas de sociedade, ainda que sob outra forma, ou seja: o caráter social do trabalho, enquanto aplicação da força social do trabalho. (MARX, 2011, p. 178)

Como discutido no capítulo anterior, as formas sociais do valor (no livro I do

Capital) se desenvolvem, da forma simples e fortuita, à forma dinheiro e, desta, ao

capital como forma autônoma de existência do valor. Como capital, o valor ganha existência própria, passa a se reproduzir e a comandar o trabalho humano. Sob o capital, todo processo de trabalho humano não é senão processo de valorização do valor-capital, a produção e reprodução da vida humana e de parte da sociabilidade se dão sob a forma de um processo de acumulação de mais-valor através da exploração do trabalho. O capital é um fim em si mesmo, é valor em si e para si.

Com o capital a faceta conceitual do valor como forma social se mostra em sua forma mais clara. Existe algo na sociedade que responde pelo comando de todo o processo produtivo, acumula em si o excedente social, tendo como fim último o seu próprio crescimento, encerra contradições internas que determinam a própria crise, se torna desmedido, nega a si mesmo. No processo, essa força fantasmagórica distribui miséria; aparece como a responsável por construção de impérios; guerras; fome em territórios continentais; concentração de riquezas em pouquíssimas mãos; exaustão de recursos naturais; aquecimento global etc.. Com o

capital as mazelas sociais aparecem como responsabilidade de uma força de dominação impessoal.

Assemelha-se tanto a uma divindade, que vez ou outra se trata do capital, da riqueza ou do dinheiro como deuses, seja como o deus Mammon da avareza, seja como Moloch, que demanda sacrifícios humanos. Esse aspecto tão comum na ideologia não foi perdido nem por Marx, nem por Ricardo, nem mesmo pelo atual papa que condena o culto ao “deus-dinheiro” em seus discursos. As formas sociais no capitalismo usualmente guardam esse aspecto misterioso: como é possível que relações sociais entre seres humanos apareçam como se fossem algo exteriores aos seres humanos que se relacionam? No caso do dinheiro e do capital, como essa aparência pode chegar ao ponto em que sejam ambos percebidos (em um nível ideológico) como entidades metafísicas?

O misterioso que reside nessas formas sociais – desenvolvidas a partir da forma valor – são os desenvolvimentos do fetichismo da mercadoria. As formas sociais na sociedade capitalista são carregadas de fetichismo em graus crescentes, do fetiche da mercadoria ao fetiche do capital portador de juros somente se amplia aquilo que existe de misterioso e que porta, concretamente, a aparência de metafísico (FAUSTO, 1983). Por essa aparência, que não é um simples equívoco do entendimento, mas uma aparência real e que possui largo impacto na realidade social é que se torna possível tratar do valor, do dinheiro e do capital no nível do conceito.

Todavia, há que se elaborar também as ilusões do fetichismo e não perder de vista que, por detrás desses movimentos do conceito, existe a base material das relações sociais, existe a luta de classes, as relações de dominação e exploração e as disputas políticas entre frações da classe dominante. O segredo das formas sociais reside em que, ao mesmo tempo em que essas formas transformam o conteúdo (isto é, modificam e orientam as relações sociais em sua base material), elas são recriadas a todo momento pela práxis, pela ação histórica das classes e suas frações.

O misterioso dos objetos-fetiche (mercadoria, dinheiro, capital e, mais ainda, capital portador de juros e capital fictício) é seu caráter de fazer com que características que são sociais, altamente mediatizadas e complexas apareçam como se fossem imediatas e naturais. No caso do dinheiro esse processo é ainda

mais intenso do que na mercadoria pura e simples, pois se trata de uma objetividade que condensa em si a existência de todo trabalho: o trabalho vivo pode ser comprado no mercado como força de trabalho e o trabalho morto, vendido como mercadoria; em última instância, todo o trabalho social (vivo ou morto) existe para ser em algum momento convertido em dinheiro. Dito de outro modo, um objeto finito e limitado é o representante de toda a potencialidade de trabalho humano, que é potencialmente infinito e ilimitado.

No documento MESTRADO DE ECONOMIA POLÍTICA (páginas 86-90)