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1.4 Formando o capital

1.4.2 O capital cultural

O processo de divisão e especialização do trabalho, sintetizado na seção anterior, para demonstrar os caminhos percorridos pela transformação da atividade humana de produção e reprodução das condições de existência, trabalho, em ativos passíveis de existência material em uma relação de troca (capital) é, particularmente, importante para a interpretação da relação deste ativo (trabalho) com o objetivo educacional das famílias.

21 A menção aos autores refere-se à transição da Economia Clássica, focada nos fatores de produção, até

segunda metade do século XIX, para a Economia Marginalista, centrada na microeconomía, até a década de 30 do século XX, que depois se torna Economia Keynesiana, centrada na demanda agregada, macroeconômica. Nelas a mão-de-obra era entendida como fator de produção (categoria coletiva).

Tornando-se, inclusive, o trabalho razão social primordial, para justificar padrões e objetivos da ação educacional.

Esta transformação do trabalho humano em capital, para ser completamente compreendida, exige o entendimento da sua dimensão cultural.

O processo de formação e luta política associados às transformações econômicas e sociais da passagem da Era Medieval para a Era Moderna consolidaram o Iluminismo como expressão de um mundo novo guiado pela razão22 como contraponto às sociedades dominadas pelas crenças, pelas guerras e demais atitudes “selvagens e primitivas”. Neste contexto é que o dinamismo do meio de produção capitalista impõe uma supremacia material do homem ao seu meio e à natureza biológica em geral e que se conforma o processo de formação cultural, para uma sociedade altamente institucionalizada, urbana e civilizada.

Não obstante as diferenças étnicas e etimológicas entre os conceitos de civilização e cultura, a partir da visão alemã, francesa e inglesa em Elias (1993) e os debates de mudança e resistência cultural em Bourdieu e Sayad (2006), ou de universalização e localização em Mauss (1999), decorrentes destas diferenças, este processo de construir comportamentos sociais irradia uma nova sociedade, o que significa novos padrões de organização política:

A formação dos monopólios de tributação e força física, e das grandes cortes em volta dos mesmos, certamente não foi mais do que um de vários processos interdependentes, dos quais o processo civilizador constitui uma parte. Mas sem dúvida alguma aqui temos uma das chaves que nos faculta acesso as forças propulsoras desses processos. A grande corte real permanece durante certo período no centro da teia social que estabelece e mantém em movimento a civilização da conduta. Ao estudar a sociogênese da corte, encontramo-nos no centro de uma transformação civilizadora especialmente pronunciada e que é precondição insdispensável para todos os subseqüentes arrancos e recuos do processo civilizador. Vemos como, passo a passo, a nobreza belicosa é substituída por uma nobreza domada, com emoções abrandadas, uma nobreza de corte. Não só no processo civilizador ocidental, mas tanto quanto podemos compreender, em todos os grandes processos civilizadores, uma das transições mais decisivas é a de guerreiros para cortesãos. Dispensa dizer que há estágios e graus os mais diversos dessa transição, dessa pacificação interna da sociedade. No Ocidente a transformação dos guerreiros iniciou-se com grande lentidão no século XI e XII até que, devagar, chegou à sua conclusão nos séculos XVII e XVIII. (ELIAS, 1993, v.2, p. 216- 217).

22 Há um grande número de referências que podem descrever este processo de passagem. Ao conformar esta

síntese explicativa penso especificamente na razão kantiana que alimentou a concepção filosófica do iluminismo e instigou o debate hegeliano sobre a proeminência da razão e da ação. Nos debates entre as posições de Rosseau e Hobbes a respeito das motivações da vida em sociedade “contrato social” e do avanço das teorias evolucionistas e da construção social da ciência como a conhecemos hoje.

Esse processo de formação cultural tem na burocratização decorrente da formação do Estado (WEBER, 2004), mesmo que ainda na sua fase monárquica (ELIAS, 2001), buscando a unificação dos territórios e com acelerado progresso hegemônico da cultura escrita dinamizada pela invenção da tipografia de Johannes Gutemberg (no século XV), encontra na Educação e, particularmente no ensino escolar, um forte instrumento de socialização (DURKHEIM, 1995). Tal instrumento foi transformado em projeto político liberal (iluminista), na forma de uma instituição que pudesse levar a todos, igualmente, o conhecimento acumulado e a razão científica, conforme Saviani (2009), que criou um ritual de passagem da infância para a fase adulta a partir do isolamento (escola) conduzido tecnicamente (pedagogia) e não mais através do convívio da criança com o adulto (artífice), Ariès (1981).

A contradição desse movimento cultural / político é que ele não se completa plenamente em uma sociedade dividida pela desigualdade social e econômica23 que, aliás, se fundamenta nesta mesma desigualdade, conforme ainda Saviani (2009), nas suas relações de classificação, hierarquia e poder.

A partir desta base histórica é que podemos entender a construção e a importância sociológica do conceito de capital cultural de Pierre Bourdieu que associou a inculcação de um arbitrário cultural, por meio de um constante trabalho pedagógico, exercido por uma autoridade pedagógica (escola ou família), legitimamente reconhecida pelo Estado, aos processos de organização de uma sociedade dividida em classes, o que caracteriza a função de reprodução. Bourdieu e Passeron (1975) o fizeram a partir da observação do processo de ingresso (seleção) dos estudantes nos diferentes níveis e modalidades do sistema de ensino francês, na década de 60 do século passado, tendo como um dos seus objetos a linguagem.

Mas isto por si não dá conta de explicar o conceito. É fundamental entendermos o processo teórico e a experiência antropológica de campo de Bourdieu, no processo de re- socialização induzido pela modernização urbana em curso em sociedades, por meio da

23 Na sua origem epistemológica, a desigualdade social e econômica que será representada pelo conceito de

vulnerabilidade social, logo adiante, reflete não apenas o processo de construção do capital e, consequentemente, do nosso sistema de produção material como descrito na seção do capital financeiro ao humano, mas materializa uma importante concepção que está associada à fundamentação de uma linha de teoria econômica que defende ser esta área de conhecimento (Economia) a ciência da administração dos recursos escassos frente à insaciabilidade humana. Isto não apenas decorre de uma concepção filosófica da ação humana e de organização da sociedade, mas também implica em uma divisão do espaço social em estrutura de oportunidades que exige a disputa por ativos e, portanto, exige correlação de forças.

colonização argelina (BOURDIEU e SAYAD, 2006) ou da transformação do campo (rural), olhando para sua cidade natal (BOURDIEU, 2006; BOURDIEU e BOURDIEU, 2006). O que também acaba por originar o conceito de habitus que como explica Wacquant (2007) é “como a sociedade se torna depositada nas pessoas sob a forma de disposições duráveis, ou capacidades treinadas e propensões estruturadas para pensar, sentir e agir de modos determinados, que então as guiam nas suas respostas criativas aos constrangimentos e solicitações do seu meio social existente”. O que para nós é igualmente importante, nesta tese, pois cria uma mediação entre a concepção estruturalista e fenomenológica dentro da teoria da ação como processo da explicação sociológica.

Além disso, o conceito de capital cultural não encerra apenas o processo de dominação e controle dos aparelhos ideológicos em favor de uma determinada classe, Althusser (1998), mas também compreende os processos de distinção, Bourdieu (2008), originados nas posições estabelecidas em diferentes campos de poder, da propriedade e legitimação de bens simbólicos (BOURDIEU, 2009). Aqui se coloca a diferença entre uma concepção que determina uma luta econômica (material), portanto de poder político, em permanente disputa, cindida em duas classes, conformando o movimento dialético- histórico-material, e outra, que incorpora ativos disputáveis (capitais) não necessariamente materiais (simbólicos) que dão diferentes arranjos de disputas em diversas arenas (campos de poder), conferindo não apenas o objetivo da conquista dos bens em questão (economia das trocas simbólicas), mas essencialmente a legitimidade e a dominação concernente à sua posição.

Traduzido em nossa empreitada de entender o processo de objetivação da função educacional das famílias, o conceito de capital cultural cria, dentro do processo histórico de legitimação, um campo de poder em torno do conhecimento, que em nossa sociedade se delega na ação do Estado de atribuir à organização escolar função de detentora legítima deste conhecimento (BOURDIEU, 1989).

O poder simbólico do capital cultural transmite um patrimônio (ativos) que pode ser transformado em benefícios futuros (tal qual qualquer capital), e que possui duração determinada pela sua legitimidade, podendo ser geracional. Esta característica propicia um conflito entre o poder familiar de transmitir geracionalmente seus saberes e seu patrimônio material (capitais) na intenção de preservação, manutenção ou avanço da sua posição

social, e a legitimidade institucionalizada pela escola de transmitir os conhecimentos (capitais) que também são reconhecidos como necessários à realização plena do processo civilizatório (cidadania) e à produção e reprodução da vida cotidiana (trabalho).

Este conflito entre família e escola gera o mercado de disputas dos títulos e distinções escolares que, por meio de um processo de seleção, adequado ao padrão de classe social e de organização do sistema escolar, acaba por reforçar a divisão já estabelecida na sociedade (BOURDIEU e PASSERON, 1975). O que faz com que, para alguns estudantes, a cultura escolar seja reconhecível (familiar) e para outros seja estranha, incompreensível (geralmente os mais vulneráveis).

O que nos interessa salientar, além dos elementos que devem ser considerados na análise do capital cultural e do capital físico (financeiro) e humano, já descritos, é que estas

características, assumindo o papel de ativos conversíveis em determinado espaço (estrutura de oportunidades), melhorando ou não as condições de existência, são manifestamente individualizadas. Em que pese o argumento da estruturação desta

posição e condição social (a discussão do indivíduo e sociedade) é necessário que estes conceitos permitam demonstrar a dinâmica relacional destes fenômenos tanto no processo diacrônico geracional da transmissão dos ativos como no sentido sincrônico das relações estabelecidas no tempo histórico e social. O processo diacrônico está representado em diversos estudos antropológicos que demonstram as manifestações estruturadas do grupo familiar (LEVI-STRAUSS, 1980), ou ainda a transformação em bem conversível do capital cultural ao capital financeiro (BOURDIEU, 2003), ou em mercadoria (MARX, 1980). Todas estas assumem uma identificação direta com o sentido histórico e sociológico do processo educativo.

Esta dinâmica relacional dos fenômenos, na sua razão coletiva da construção dos ativos em sentido sincrônico e diacrônico, se expressa no conceito de capital social.