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A construção da realidade social deve passar pela inferência para se tornar objeto sociológico, o que exige da análise social a organização dos dados por meio de um processo empírico (FERNANDES, 1980).

Até o momento, descrevemos no trabalho um grande número de ativos que, mobilizados na forma de capitais, em uma estrutura de oportunidades, permitem identificar uma série de conexões causais e relacionais que podem orientar a função educacional das famílias

Agora, a partir das variáveis relacionadas à visão das mães, sobre a função educacional que apresentamos até o momento, sob a perspectiva de apresentar expressões do capital cultural, vamos tentar reproduzir, por meio de agregação de algumas variáveis, o tipo idealizado (inclusive pelas questões da pesquisa domiciliar) da mãe que tem as atitudes mais “positivas” frente à sua função educacional.

A função educacional é uma ação social que une a produção e reprodução da existência biológica e social da condição humana aos aspectos socioculturais da racionalidade que dão sentido a esta mesma ação. Por isso, o feito desta construção teórica do tipo ideal orienta a articulação da estrutura com a conjuntura por meio da construção dos sentidos sociais que se confere à ação.

Para tal vamos considerar como tipo ideal, todas as mães de estudantes do Ensino Fundamental, que responderam afirmativamente às seguintes questões: acompanha a lição de casa diariamente; pergunta sobre o que acontece na escola sempre e conhece todos os professores.

As três variáveis selecionadas e agregadas representam um indicador de intenso acompanhamento com que vamos distinguir, a partir de suas características, as mães de estudantes do Ensino Fundamental que acompanham os filhos com menor intensidade e o conjunto geral das mães da região (que tenham filhos estudando ou não). O indicador do tipo ideal foi cruzado com todas as outras variáveis da pesquisa e passaremos a apresentar aquelas que geram distinções entre este grupo e as características gerais.

O Ensino Fundamental foi escolhido porque é reconhecidamente a fase na qual as mães mais acompanham a vida escolar dos filhos. Acompanhamento, geralmente, mais intenso por parte das mães dos estudantes do primeiro ciclo do Ensino Fundamental (até dez anos de idade). Cabe destacar que a proporção de mães, nesta condição, não é a mesma entre os grupos comparados. No grupo ideal, mães com filhos até 10 anos representam 76,7% do grupo, no grupo não ideal (mães com filhos no Ensino Fundamental que não respondem ao indicador) representam 63,2% e, no grupo de mães em geral da região, representam 39,4%.

Porém, como as características comparadas não sofrem grande impacto da diferença entre a proporção de mães com filhos até 10 anos no grupo, a comparação é significativa, além do que, quando comparando os três grupos, isolando apenas as mães com filhos até 10 anos, ainda assim, há uma forte distinção de comportamento entre o grupo de tipo ideal e os outros dois como mostra a distribuição da Tabela 35, em relação à responsabilidade dos cuidados com as crianças ser sempre ou, geralmente, da mãe.

Tabela 35 – Mães que possuem filhos com menos de 10 anos segundo tipos de cuidados, em números relativos, por grupos de mães, RMC, 2007.

Fonte: Pesquisa domiciliar do Projeto Vulnerabilidade FAPESP/CNPq, NEPO/UNICAMP (2007).

A primeira informação, o que é esperado do ponto de vista material e simbólico, é que das mães de estudantes do Ensino Fundamental que estão entre as menos vulneráveis (ZV 3 e ZV 4) 55% são do tipo ideal. Enquanto entre as mais vulneráveis (ZV 1 e ZV 2) apenas 37% são do tipo ideal. Os dados reforçam a relação do tipo de comportamento

ideal com as condições materiais das famílias que já apresentamos nas seções do capítulo anterior. Não devemos esquecer, porém, que esta caracterização do tipo ideal é

ratificada pela área e pelas pesquisas educacionais, sendo amplamente aceita pelos profissionais da educação, nas escolas, o que revela o arbitrário cultural legitimado que se espera dos estudantes.

As mães do tipo ideal estão distribuídas de forma muita parecida em relação à distribuição da população da RMC nos municípios. Moram em Campinas 37,1% das mães do grupo ideal, enquanto a proporção para mães com filhos no Ensino Fundamental é 40,1% de moradoras em Campinas e a proporção para mães em geral é de 41,2% de moradoras em Campinas.

Quanto ao papel no arranjo familiar, há uma distinção importante que marca a característica do grupo tipo ideal. Para este grupo 80,9% são cônjuges do chefe do domicílio, enquanto a proporção na condição de cônjuge para mães com filhos no Ensino Fundamental é de 66,7% e a proporção para mães em geral é de 66%. Isto demonstra uma forte associação entre o papel de cônjuge, no arranjo familiar, e as condições de acompanhamento dos filhos na escola, aspecto reforçado pelas características da divisão do trabalho doméstico destes arranjos familiares que, como já havíamos informado, é assumido, majoritariamente, pelas mulheres dos domicílios. Quando perguntadas sobre

Mães em

geral Mães EF

Tipo ideal Cuida (alimentação, higiene, brinca...) 59,64% 59,65% 77,71% Ajuda nos deveres escolares 60,68% 60,51% 76,47%

quem se responsabiliza pelas atividades domésticas, as mães responderam serem elas ou, geralmente, elas as responsáveis, Tabela 36:

Tabela 36 – Trabalhos domésticos, em números relativos, por grupos de mães, RMC, 2007.

Fonte: Pesquisa domiciliar do Projeto Vulnerabilidade FAPESP/CNPq, NEPO/UNICAMP (2007).

Também, nas atividades e responsabilidades que se apresentaram mais compartilhadas entre os cônjuges, na região, as mães do tipo ideal se distinguem. A responsabilidade de educar, segundo estas mães respondentes, é compartilhada com o cônjuge em 77,7% dos casos, enquanto a proporção para mães com filhos no Ensino Fundamental é de 63,2% e a proporção para mães em geral é de 64,4% de responsabilidade compartilhada. O mesmo se repete para a decisão sobre o que fazer no fim de semana (tipo ideal 71%; outras mães EF 64,5% e mães em geral 62,7%) e a decisão sobre compras grandes como eletrodomésticos e automóveis (tipo ideal 68,8%; outras mães EF 61,8% e mães em geral 56,7%).

A escolaridade destas mães também difere bastante, com tendência de maior escolarização para as mães do tipo ideal, como vemos na Tabela 37, abaixo.

Mães em geral Mães EF Tipo ideal Lavar a roupa 48,2% 48% 60,8% Limpar a casa 44,9% 44% 56% Cozinhar 48,3% 49,5% 59,1%

Tabela 37 – Escolaridade das mães, em números relativos, por grupos de mães, RMC, 2007. Mães em geral Mães EF Tipo ideal Primeiro ciclo do Ensino Fundamental 32,2% 29,2% 18% Segundo ciclo do Ensino Fundamental 26,2% 35,6% 29,6%

Ensino Médio 26,5% 26,2% 38%

Ensino Superior * * 11,8%

Fonte: Pesquisa domiciliar do Projeto Vulnerabilidade FAPESP/CNPq, NEPO/UNICAMP (2007). * n. amostral insuficiente.

Quando demonstramos as características do capital social da RMC, dentre elas destacamos a significativa quantidade de migrantes da região. Quando perguntamos às mães os motivos que levaram o chefe do domicílio a migrar para outro município há uma acentuada proporção do “motivo família” para o tipo ideal. Isto pode significar que se mudaram, quando ainda eram crianças (acompanhando seus pais), ou que se mudaram para juntar-se a parentes já estabelecidos na cidade. Interessante imaginar uma possível relação entre este fato e a formação de uma identidade com o núcleo familiar que está se associando, nesta variável, com o acompanhamento educacional dos filhos.

Tabela 38 – Motivos pelos quais o responsável pelo domicílio mudou de município, em números relativos, por grupos de mães, RMC, 2007.

Mães em geral Mães EF Tipo ideal Motivo emprego 31,2% 38,1% 22,6% Motivo familia 45,5% 40,4% 57,7%

Fonte: Pesquisa domiciliar do Projeto Vulnerabilidade FAPESP/CNPq, NEPO/UNICAMP (2007).

Em relação ao trabalho as mães do tipo ideal que possuem um emprego regular somam 43% do grupo (outras mães EF 53% e mães em geral 47,7%). Entre as que trabalham, estão no mesmo emprego há mais de 2 anos 70,8% (outras mães EF 56,5% e

mães em geral 68,1%), aspecto que, além de mostrar uma estabilidade maior no emprego do grupo tipo ideal, também mostra a menor estabilidade das outras mães que possuem filhos pequenos. Quanto à jornada de trabalho também há diferenças que demonstram jornadas de trabalho menor para o grupo tipo ideal, Tabela 39:

Tabela 39 – Jornada semanal dos trabalhadores regulares, em números relativos, por grupos de mães, RMC, 2007. Mães em geral Mães EF Tipo ideal Menos 30 horas 10,1% 12,1% 22,7% De 31 a 40 horas 36,9% 36% 35% De 41 a 44 horas 15% 21,3% 13% Mais de 44 horas 37,5% 29,3% 28,7%

Fonte: Pesquisa domiciliar do Projeto Vulnerabilidade FAPESP/CNPq, NEPO/UNICAMP (2007).

O conjunto de características conformadas aqui, na comparação com o grupo de tipo ideal, mostra um padrão de organização familiar nuclear em que a mãe, no domicílio, assume a condição de dona de casa (já que ela na maioria dos casos não é a chefe do domicílio), assumindo as responsabilidades de cuidar da casa e dos filhos, mesmo considerando que uma parte significativa destas mães também trabalha em empregos remunerados.

Assim a posição das mães de tipo ideal é diferenciada, pois possuem uma escolaridade um pouco maior que a média geral das mães e, quando têm emprego remunerado, este é mais estável e possui jornada menor que a média geral.

Portanto, o que temos aqui é um modelo de papel atribuído às mães, na sua função educacional, operado como tipo ideal que, por um lado, reproduz o arranjo familiar nuclear tradicional, que assume, na sua condição simbólica, o papel idealizado pelas campanhas educativas pelo sucesso escolar, em que não podemos distinguir se este papel estrutura a condição (idealizada) ou se é estruturado por ela, já que, tanto a escola, a comunicação de massa e como algumas pesquisas indicam ser este o comportamento mais eficaz.

Reafirmando esta idealização, quando as mães foram questionadas sobre a possibilidade de escolherem outra escola para seus filhos estudarem, para 93% das mães do

grupo do tipo ideal a escola escolhida seria a mesma escola pública na qual os filhos já frequentam (outras mães EF 85,8% e mães em geral 88,9%).

Do outro lado, está à contradição desta idealização, que se estabelece porque há uma condição material para que ela se desenvolva, o que, portanto, gera uma inviabilidade desta idealização se concretizar nos domicílios das famílias mais vulneráveis. É importante assinalar que tanto nas características comparadas do grupo do tipo ideal, como dos outros ativos do capital cultural, social, humano e econômico há sempre uma distinção, uma diferença de condição que, possivelmente, uma campanha de conscientização, para que mães acompanhem a vida escolar dos filhos, não poderá mudar.

Também em relação à importância que os programas e políticas educacionais têm dado a esta questão Carvalho (2000; 2004a; 2004b) nos lembra que cobra-se das mães participação nas escolas sem que se leve em consideração as condições materiais e as diferenças de gênero, nos cuidados com a casa e com as crianças.

Estas diferenças se configuram, tanto na dimensão simbólica, o que pode ser interpretado como comportamento de grupo, status de classe, disposição ou diferenças de estratégias e interesses, como na expressão material das características de diferentes posições sociais, aqui estratificadas pelo conceito de vulnerabilidade social, acabando por determinar o sentido que se dá ao ensino, na produção e reprodução da vida cotidiana. Os mesmos sentidos que fazem grande diferença, quando as variáveis apresentadas se tornam ativos de enfrentamento da vulnerabilidade social, particularmente no enfrentamento do risco a pobreza.