• Nenhum resultado encontrado

No início do século XXI, quando as fronteiras econômicas entre as nações se desfazem, enfraquecendo a vigência de conceitos políticos e culturais clássicos em nome de certa “globalização”, pode parecer irrelevante interpretar um país e confrontá-lo aos demais, como se buscava fazer há algumas décadas. Para muitos dos que se orientam apenas pela perspectiva econômica, as diferenças fundamentais entre as nações podem resumir-se, hoje, à distância, em nível de desenvolvimento, que as separa do modelo norte-americano a ser alcançado. Afinal, o desaparecimento do bloco soviético marcou o fim da Guerra Fria e a configuração de um mundo unipolar. Mas é nesse ambiente que acontecem os ataques de 11 de setembro de 2001 e o governo dos Estados Unidos se sente levado a enfrentar, ou engendrar, um novo “outro”, um novo inimigo.

Os ataques terroristas aguçaram a curiosidade de políticos norte-americanos para o modo como o restante do mundo vê seu país e seu povo. Assim, não surpreende que se lancem, nos anos seguintes a 2001, estudos como America against the world: how we are

different and why we are disliked [Os Estados Unidos contra o mundo: como somos diferentes e por que não gostam de nós], de Andrew Kohut e Bruce Stokes, publicado em

2006. Mas não temos, aí, uma interpretação no sentido tradicional: esse livro, que reúne dados do Pew Global Attitudes Project, 2002-2005, promovido pelo conceituado Pew Research Center, baseia-se em pesquisas de opinião pública realizadas em países com diferentes graus de desenvolvimento, entre os quais o Brasil, e concentra-se na elaboração e descrição de dezenas de tabelas e gráficos. Esses elementos, que em interpretações sociológicas e econômicas mais vigorosas não passam de ferramentas, tornam-se aqui protagonistas, e a

questão principal dos autores consiste em descobrir, observando essas sequências de números, “como nossas atitudes alimentam o crescimento do antiamericanismo”.1

No Prefácio de America against the world, a ex-secretária de Estado e ex-embaixadora de seu país nas Nações Unidas Madeleine Albright lembra que ela mesma já foi uma imigrante nos Estados Unidos, que lhe abriram as portas quando o comunismo tomou o poder na Tchecoslováquia, onde nasceu. Albright afirma que, até poucos anos atrás, nunca teria imaginado prefaciar um livro com esse título, afinal, “os americanos haviam cruzado dois oceanos para ajudar a salvar a Europa e a Ásia do fascismo e do imperialismo” (em Kohut & Stokes, 2006, p.ix). Seria preciso investigar os motivos que levaram a existir, agora, um abismo entre “como nos vemos e como os outros nos veem”, a ponto de os americanos não mais poderem “estar seguros em relação ao respeito, apoio e, sim, afeição dos povos de outros países” (p.ix). Segundo a ex-secretária de Estado, um dos modos de analisar o problema consistiria em considerá-lo um “gigantesco mal-entendido”. Sem nenhum traço de ironia, sugere: “Se ao menos as pessoas soubessem que somos em geral religiosos, amamos nossos filhos, somos generosos e temos objetivos elevados, certamente voltariam a gostar de nós” (p.x). Tudo isso em torno da meta principal: “restaurar a imagem e a liderança dos Estados Unidos em todo o globo” (p.x).

Aos que questionam “o que podemos aprender com as pesquisas”, Madeleine Albright responde com um exemplo: uma grande pesquisa de opinião pública realizada na antiga União Soviética entre 1989 e 1991, às vésperas do seu colapso, apontou não só “um enorme entusiasmo pela democracia, vista como um conceito abstrato”, mas também “uma enorme ignorância acerca do que esse sistema de governo iria, na realidade, implicar” (p.x). Pesquisas como essa permitem, segundo Albright, conhecer algo a respeito das expectativas de outros povos e, assim, prever reações, o que certamente auxilia na definição de estratégias políticas e econômicas: para os autores do livro, os resultados do estudo realizado na União Soviética “anteciparam dificuldades a serem enfrentadas na transformação da vida política e econômica, do comunismo para a democracia e o capitalismo” (p.xvi).

Questões semelhantes a essas levaram à realização de outra grande pesquisa, em 2001, inicialmente voltada para o estudo “do impacto e das consequências da globalização”, mas seus objetivos foram ampliados e alterados após o 11 de setembro, e as respostas obtidas estão em America against the world. Segundo Albright, o importante agora é definir estratégias para que seu país não perca a hegemonia: se os Estados Unidos não conseguirem permanecer

como líderes, “um vácuo será criado e outros seguramente o preencherão, e é impossível prever as consequências disso” (p.xi).

As pesquisas de opinião pública desempenham papel fundamental na política americana há décadas, diferentemente da maioria dos outros países, mas só durante a Guerra do Vietnã seus resultados passaram a ser levados em conta “pelos que decidem a política externa dos Estados Unidos” (Kohut & Stokes, 2006, p.xv). Atualmente, esse comportamento vem sendo copiado “pela maior parte do mundo” (p.xv). Mas os autores de America against

the world não questionam as consequências da divulgação dessas estatísticas, tampouco a

possibilidade de sua manipulação. Na Conclusão do livro, afirmam ter “demonstrado, com dados, que os americanos apresentam padrões de pensamento e de valores que os distinguem dos europeus e de outros povos” (p.220). Embora “todos os povos sejam virtualmente excepcionais em alguns aspectos”, o excepcionalismo americano é importante apenas porque seu “poder e sua influência são excepcionais num mundo unipolar” (p.220). Algumas das conclusões, entretanto, parecem minimizar esse excepcionalismo: “os americanos não são mais religiosos que muitos muçulmanos do Oriente Médio ou católicos da América Latina” (p.221), ou “o nacionalismo americano é muito mais benigno que o imperialismo britânico do século XIX” (p.223), ou ainda “a intervenção no Iraque tornou-se uma guerra impopular não porque foi vista como uma ação incorreta, mas porque não funcionou” (p.223). De qualquer maneira, é o excepcionalismo americano que “define as atitudes em relação aos Estados Unidos por todo o mundo”, e está “inextricavelmente relacionado ao antiamericanismo” (p.225). Sobre todo o livro paira uma questão: por que o mundo inteiro não se uniu de imediato em torno dos Estados Unidos, após os ataques de 11 de setembro de 2001?

A análise dessa série de pesquisas que envolveu mais de 90 mil pessoas (como se lê na p.245 do livro), mil delas no Brasil, inclui a constatação de que o individualismo americano “não vai mudar”. Em todo caso, se os americanos querem “encontrar um modus vivendi com seus críticos, tanto o mundo como os americanos terão de se adaptar” (p.225). Essa expectativa pode parecer nova na voz dos autores de America against the world, mas já teve destaque em outras épocas, sobretudo no período anterior à Segunda Guerra Mundial, quando se instaurou a política da “Boa Vizinhança” e os Estados Unidos procuraram consolidar sua influência na América Latina diante da escalada do nazifascismo.2 Entre as estratégias de

2 A política da Boa Vizinhança foi proposta por Roosevelt em 1933, com o objetivo de “acabar com a

intervenção armada norte-americana na América Latina...” (Junqueira, 2000, p.149). Posteriormente transformou-se em instrumento para barrar a crescente influência alemã na região, mas “já sinalizava o lugar dominante que os Estados Unidos ocupariam depois da guerra. Certas políticas ... constituíram-se em bases das políticas do pós-guerra” (p.149).

aproximação, promoveu-se o intercâmbio de intelectuais para a realização de palestras, documentários e textos, jornalísticos ou não. Era preciso “mostrar o norte-americano como simpático e bem-intencionado, e ... mostrar aos norte-americanos que os latino-americanos não eram povos de culturas tão distantes da norte-americana” (Junqueira, 2000, p.150).

Mas não seria adequado esperar de intelectuais respostas simples, unívocas, ou conclusões semelhantes às das “pesquisas de opinião”, ainda mais quando pudessem gozar de liberdade na escrita. Um livro aparentemente despretensioso, mas revelador do relacionamento entre Brasil e Estados Unidos em meados do século XX, é Gato preto em

campo de neve (1941), de Érico Verissimo (1905-1975), escritor brasileiro que se beneficiou

da “Boa Vizinhança” e percorreu aquele país durante três meses, no início de 1941, fazendo em 14 cidades “quase trinta conferências” (p.417) programadas pelo Departamento de Estado norte-americano.3 Nas mais de quatrocentas páginas do livro, Verissimo segue a receita mas

não se restringe a um relatório inteiramente previsível: discute essa política de intercâmbio, descreve o desconhecimento mútuo de Estados Unidos e América Latina e reflete sobre a possibilidade e os meios de o estrangeiro interpretar um país vasto e contraditório.

Verissimo cita, por exemplo, o comentário que ouviu do escritor Hendrik van Loon, de origem holandesa: “Boa vizinhança é besteira. Você acredita em good will e em todas essas bobagens? Se você gosta de mim, vem à minha casa, conversa comigo, come à minha mesa. E amanhã eu faço o mesmo na sua casa. Tudo isso natural, sem discursos nem publicidade. Passamos a vida inteira ignorando a América do Sul. E agora, de repente, toca a fazer boa vizinhança a todo o vapor! É ridículo” (Verissimo, 1941, p.151). E o escritor britânico Aldous Huxley, entrevistado pelo brasileiro na Califórnia, comenta: “Não é mesmo curiosa a maneira como aqui em Hollywood eles interpretam o good-will? Põem o visitante entre duas moças bonitas em trajos de banho e batem fotografias... Não foi o que fizeram com o senhor?” (p.381).

Érico Verissimo descreve as contradições enfrentadas em seu papel de agente da boa vizinhança: um funcionário do Departamento de Estado providencia para que não se reviste sua bagagem na chegada aos Estados Unidos (p.34), mas o colega da alfândega promove um verdadeiro inquérito:

— Quem foi que lhe pagou a passagem? — indaga o funcionário, erguendo para mim um par de olhos azuis e aguados.

3 O mesmo programa levou aos Estados Unidos, entre outros, Sérgio Buarque de Holanda, Pedro Calmon e Luís

— O governo americano. — Por que motivo?

Hesito um instante e, para encurtar a história, resumo a duas palavras: — Boa vizinhança.

— Que veio fazer?

— Viajar, ver pessoas e coisas. E fazer conferências... se não houver outro remédio. — Tem passagem de volta garantida?

— Claro. — Onde está?

— Vou recebê-la mais tarde. — De quem?

— Do governo americano. (p.32-33)

Depois de percorrer milhares de quilômetros pelos Estados Unidos, Verissimo confessará ter sentido a impressão de que “somos pobres ‘nativos’, afilhados duma senhora muito rica e caritativa – madrinha América – que nos dá prêmios de viagem, bolsas de estudo e matrículas gratuitas, para que sejamos sempre bons meninos” (p.220). Os mexicanos, segundo ele, logo perceberam “a febre pan-americanista” que levava o país vizinho a procurar “palmeiras verdes, muchachos, señoritas, rumbas e congas”, e se organizaram “para explorar esses sentimentos. Abrem bazares ... abrem cabarés com nomes pitorescos...” (p.317). Segundo o escritor e roteirista James Hilton, também entrevistado, “por causa da política de boa vizinhança os ‘homens maus’ dos filmes não podem nunca ser brasileiros, peruanos, mexicanos, argentinos. Têm que ser necessariamente norte-americanos... ou ingleses” (p.312). Érico Verissimo viaja pelos Estados Unidos propondo-se a “ver tudo com imparcialidade” (p.413), e afirma, entre parênteses, não ter “o menor desejo ou intenção de incensar homens de governo do Brasil ou da América do Norte” (p.417).4 Tem em mãos uma

cine-Kodak e, em vez de paisagens naturais, prefere filmar os “companheiros de viagem”

(p.19). Após um jantar, quando é obrigado a “fazer um speech”, fala “com a Kodak na mão” e, invertendo os papéis, termina “com a objetiva no olho, filmando em cores naturais a pitoresca e variada sociedade que aqui temos hoje” (p.227).

Verissimo considera natural o fato de fazer anotações sobre o país que visita, uma vez que “a gente passa a vida comparando” (p.43). Não tem a pretensão de interpretar ou sintetizar o país, nem mesmo de “haver compreendido os Estados Unidos, nem de ser

4 No que se refere a outros governos, Verissimo limita-se a repetir, buscando não se posicionar, o que dizem seus

entrevistados. Por exemplo, Somerset Maugham sobre Portugal e seu ditador: “tem um bom governo. Salazar é indiscutivelmente um grande homem” (p.238).

portador de palavras, fórmulas ou imagens capazes de chegar a uma definição, a uma pintura completa” (p.392). Afinal, “como penetrar a alma dum povo tão complexo, como percorrer todo um território humano e geográfico tão tumultuosamente vasto, rico e vário – no curto espaço de três meses?” (p.7): “a simples e pura tentativa de descrever Nova York chega a ser de um ridículo doloroso” (p.124). Compara sua tarefa à montagem de um jogo-de-armar e conclui: “não será insensato tentar armar o jogo com elementos tão escassos?”. Seu objetivo é declaradamente modesto: “Se com estas páginas eu tiver dado a você alguns momentos de leitura agradável e a ilusão de que viajou comigo, declaro o meu alvo atingido e passo tranquilo ao próximo livro” (p.9).

De que adianta criar expectativas? Decepcionado com as “casas tristes” do bairro boêmio de Manhattan, que “está longe de ter a cor e o romance que eu imaginava” e onde é maltratado por um italiano, Verissimo confessa que “nem sempre ... a gente pode ajudar a realidade...” (p.161). Em Hollywood, confessa: “Manda a verdade que se diga, em prejuízo do pitoresco, que nem sempre estamos topando com coisas invulgares e que nem a todas as horas Hollywood é a animada feira das originalidades” (p.331). Os prédios de Nova York “na realidade são menos claros, menos limpos e menos novos” (p.39), confrontados à idealização de quem só os conhecia por fotografias. E o escritor não esconde a decepção diante do Mississippi, em Nova Orleans, “um feio rio de águas pardas” onde “o famoso cais não oferece o menor atrativo” (p.270). Horrorizado com a poluição de Chicago, espera que a cidade tenha “um lado poético” e completa: “tentar descobrir-lhe esse segredo não será acaso um ótimo divertimento para os dez dias que aqui vou passar?” (p.219). A tabuleta de uma estação ferroviária informa que o escritor está em “Newton”, mas, como a cidade não consta no seu mapa, “não tem existência oficial” (p.289). Ao descrever o interior luxuoso da Casa Branca, o ficcionista tem “a leve impressão de estar mentindo”, mesmo depois de “dez anos de romance” (p.48). Em outra ocasião, ao visitar uma feira livre no bairro judeu de Chicago, afirma:

Não creio possa eu dar em palavras uma ideia do que estou agora vendo. Descrição exige método, lógica, clareza, disposição harmoniosa dos períodos ... O escritor de ficção se alvoroça diante do material vivo que se lhe oferece tão fácil e abundante. Mas a criatura humana reage contra esse alvoroço. E dessa luta confusa fica apenas uma sensação de mal-estar, constrangimento e fria tristeza. (p.229)

Uma das qualidades que nos atraem em Gato preto em campo de neve 5 está na clareza com que Verissimo expõe as fontes em que se apoia ao construir seu livro: “os dados sobre famílias foram colhidos numa publicação do Ladies’ Home Journal” (p.403), e “muitas das informações” sobre cinema “tirei de um admirável livro de Margaret Thorp, America at the

movies” (p.323). O autor também confessa, em nota, sua intervenção posterior na transcrição

de entrevistas:

Este diálogo não foi taquigrafado, mas as palavras aqui reproduzidas são exatamente as de Mr. David Daiches [da Universidade de Chicago], pois tive o cuidado de mais tarde confrontar e enriquecer minhas notas com os escritos desse ensaísta. O mesmo se passou nas subsequentes entrevistas com W. Somerset Maugham, Thomas Mann e James Feibleman. (p.223)

Por todo o livro Verissimo quer informar seu leitor: faz longos levantamentos sobre o teatro norte-americano (p.171-179) e sobre a imprensa (p.180-182); ao falar do cinema, conta a história de Hollywood, e, quando se refere aos desenhos animados de Walt Disney, descreve as etapas de sua elaboração (p.365-366). Nos comentários sobre a censura no cinema, copia o Código criado em 1934 pela Legião Nacional da Decência, “amparada pela igreja Católica” (p.353-356).

Verissimo explica o significado de todos os termos que o leitor brasileiro, em sua opinião, desconhece: de pickets (“um tipo de greve”, p.128) a cops (“tiras”, p.130), por exemplo. A cafeteria aparece como “instituição representativa dos ideais americanos do

‘mind your own busines’ (cuide da sua vida), do ‘cash and carry’ (pague e leve), do ‘live and let live’ (vive e deixa que os outros vivam) e dum conceito esportivo de democracia” (p.50).

Para as damas bem vestidas, um verbo tem “um sentido quase sagrado: to shop – fazer compras, ir às lojas” (p.308). Por fim, “dating é uma instituição sagrada. Quebrar um date (encontro, entrevista) é cometer um pecado mortal” (p.400).

Tudo merece atenção e registro: as casas que “não têm muros, nem cercado de espécie alguma” (p.55) – tanto que os filhos de um brasileiro, em San Francisco, “deixam os brinquedos na rua durante a noite; no outro dia está tudo aí. Ninguém toca neles” (p.307). Verissimo espanta-se com as “lojas de 5 a 10 centavos” (p.330); com as mulheres “metidas

5 Logo de início, Verissimo explica que o título do livro “não tem nenhum sentido secreto ou simbólico. Refere-

se apenas a um gato preto e anônimo que atravessou um campo de neve no Colorado, quando eu passava de trem” (p.7). Quando descreve a cena, todavia, confessa a “fascinação” experimentada naquele momento: “Um misterioso alguém está procurando dizer-me alguma coisa por meio dessas imagens em negro e branco. Mas quem? Quê?” (p.298).

em calças compridas de homem, blusas de jersey e lenço na cabeça” (p.330); com a predileção pelas cores fortes, tanto na pintura das casas (p.55) como nos ingredientes dos sanduíches (“sempre o gosto pela cor!”, p.41), ou na “horrenda gelatina verde que sabe a menta” (p.89). Nas cidades, o brasileiro percebe a falta de “lugar para deixar o automóvel” (p.111, 247).6 No comportamento, o “gosto pelas abreviaturas familiares” (p.308) e o hábito das “paradas festivas” (p.180). Nesse país que “tem horror às coisas mórbidas” (p.414), os remédios são vendidos em drugstores alegres que nada têm a ver com nossas farmácias,7 e o escritor não encontra “durante toda a viagem uma única pessoa de luto fechado” (p.414).

As roupas “boas e limpas” do povo chamam a atenção do escritor brasileiro, pois revelam “um nível de vida bastante mais alto que aquele que estamos habituados a ver nas grandes cidades sul-americanas” (p.38): é difícil “encontrar-se uma criatura de aspecto sujo” (p.134). Além disso, Verissimo viu “operários fumando a mesma marca de cigarros que fumam os patrões” (p.402). Mesmo os raros homens que o abordaram para pedir dinheiro “trazem boas roupas e estão de barba feita” (p.134).

A ironia está presente no livro: o visitante lê que “as mulheres americanas enviúvam cedo porque matam os maridos com alimentos em conserva e interiores superaquecidos” (p.36); na festa de uma sociedade literária, “algumas damas me parecem tão antiquadas que lembram velhos álbuns de família ... diviso fisionomias fechadas, expressões eruditas...” (p.118); interrogado por uma antropóloga que vive “nos domínios da estatística”, encolhe-se, “perdido na mais absoluta das ignorâncias”, e conclui: “Ela deve ter alma, sim, mas é uma alma fria e eficiente de arquivo” (p.91-92). No Museu de História Natural, em Nova York, umas “duas dúzias de homens e mulheres, com ar douto, escutam em silêncio” a “voz brasileiríssima de Jararaca a gemer: Mamãe eu quero” (p.171). Se lhe pedissem para ilustrar a principal diferença entre os dois povos, responderia com base numa homenagem recebida: “os rotarianos do Brasil nunca teriam coragem de cantar uma canção em que os visitantes são comparados com as flores da primavera”, as “florinhas de maio” (p.374).

No final do livro, Verissimo utiliza um apêndice com mais de trinta páginas, “Diálogo sobre os Estados Unidos” (p.389-420), entre “o leitor” e “o autor”, para resumir sua apreciação das características mais gerais do país. Enumera, por exemplo, “costumes, gostos e preceitos de acordo com os quais eles pautam a sua vida”; o último da lista já foi citado várias

6 Quando Elizabeth Bishop volta aos Estados Unidos em 1968 e vai morar em San Francisco, comenta em carta:

“Agora ... como todos os membros da grande classe média baixa americana passo boa parte do tempo procurando vaga para estacionar” (Bishop, 1995, p.555).

7 Ver, por exemplo, o comentário de Bishop sobre uma farmácia de Manaus, na “Viagem pelo Amazonas”

vezes: o “amor às cores vivas”. E faz outros comentários: ali “não há a vergonha de ser operário” (p.398); “são um país de fundo religioso ... basta dizer que em inglês o uso da palavra hell (inferno), damn (maldição, danação) é blasfêmia; e o nome de Deus nunca é pronunciado em vão” (p.393); “procuram heróis – na história, no cinema, no teatro, nos livros, nos esportes, na vida cotidiana” (p.401). Os homens “não usam perfumes”, e as mulheres “se perfumam com discrição e com um certo mau gosto. O perfume que mais senti durante toda a minha viagem foi o de gardênia” (p.403). Ao comentar um concurso de chapéus femininos, Verissimo conclui que os americanos são “um povo quase totalmente destituído do senso de ridículo”, diferente dos latinos, entre os quais “a malícia, o espírito crítico e o horror ao ridículo nos tiram às vezes toda a espontaneidade” (p.393). E mais:

Os americanos são românticos, mas dum romantismo sem nenhum exagero

Documentos relacionados