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Parte II Maquiavel e Calvino: Domínio Político e Construto Ético

CAPÍTULO 5 MAQUIAVEL:

5.2 CONSTRUTO ÉTICO

5.2.5 Características Da Ética

A mudança paradigmática das teorias constitui-se, em Maquiavel, voltar sua reflexão da especulação filosófica para uma reflexão empírica, o que o levou a refletir, nos assuntos de governo, não mais partindo da abstração, mas da realidade factual. Assim, há algumas características distintivas de seu construto ético. Entre elas, destacam-se as questões de

utilidade, elasticidade e aparência.

5.2.5.1 Utilidade

Já que a ética parte da realidade das coisas no Estado, ela precisa ser útil (Skinner, pp.154,158). Ela deve colaborar no sentido em que o dominador alcance seu alvo supremo: dominar, e manter seu Estado. Desta forma, a utilidade é preferível aos assuntos de dever. Maquiavel, delineando as razões pelas quais os homens e especialmente os príncipes são louvados ou vituperados, afirma com que tipo de motivação intenta escrever:

Resta examinar agora como deve um príncipe comportar-se com os seus súditos e seus amigos [...] Todavia, como é meu intento escrever coisa útil para os que se interessarem, pareceu-me mais conveniente procurar a verdade pelo efeito das coisas, do que pelo que delas se possa imaginar (Maquiavel, p.91).

Aqui se percebe que sua preocupação não é tratar de abstrações, antes anseia lidar com a concretude, com a realidade, e apresentar algo para que os governantes usem ao comportar- se com seus súditos. Mais adiante, este mesmo aspecto se apresenta como fundamentado na lei natural.

Vai tanta diferença entre como se vive e como se deveria viver, que quem se ocupar com o que se deveria fazer em vez do que se faz aprende antes a ruína própria, do que o modo de se preservar [...] Assim, é necessário a um príncipe, para se manter, que aprenda a poder ser mau e que se valha ou deixe de valer-se disso segundo a necessidade (Maquiavel, p.91).

A estipulação aqui reafirma a necessidade da preservação, bem como a necessidade do governante pôr de lado abstrações para lidar prontamente com a realidade que se lhe apresenta. A abstração não apresenta utilidade, mas lidar com a realidade é um principio que é apresentado como útil no comportamento do príncipe. A condição da natureza humana o

requer e impede ao dominador tanto possuir as qualidades virtuosas chamadas de boas quanto menos praticá-las de forma consistente.

E eu sei que cada qual reconhecerá que seria muito de louvar que um príncipe possuísse, entre todas as qualidades referidas, as que são tidas como boas; mas a condição humana é tal, que não consente a posse completa de todas elas, nem ao menos a sua prática consistente; é necessário que o príncipe seja tão prudente que saiba evitar os defeitos que lhe arrebatariam o governo e praticar qualidades próprias para lhe assegurar a posse deste, se lhe é possível (Maquiavel, p.92).

Assim, aquilo que é tido por ético, virtuoso para uns, para o governo pode ser um defeito, uma armadilha que lhe arranca o domínio. Desta forma, o bem deve ser tido como mal, ou seja, as boas qualidades devem ser tidas como defeito, e refutadas como inutilidades. Quando Maquiavel observa se é melhor o Príncipe ser temido ou amado, conclui que o melhor é aquilo que é útil para dar resultados:

Se desejaria ser uma e outra coisa; mas como é difícil reunir ao mesmo tempo as qualidades que dão aqueles resultados, é muito mais seguro ser temido que amado, quando se tenha que falar numa das duas (Maquiavel, p.9).

Concluo, pois [...] que um príncipe sábio, amando os homens como eles querem e sendo por eles temido como ele quer, deve basear-se sobre o que é seu e não sobre o que é dos outros. Enfim, deve somente procurar evitar ser odiado, como foi dito (Maquiavel, p.100).

5.2.5.2 Elasticidade

Martins lê este aspecto em Maquiavel, e pontua na abertura de O Príncipe, afirmando que no “uso do instrumental dos mecanismos de poder, a neutralidade moral decorreria da adequação do agir à realidade. O homem político deve estar sempre atento aos sinais da fortuna, pois conhecerá a ruína se, mudando o tempo e as coisas, não alterar seu comportamento” (Maquiavel, p.17).

Neutralidade moral não é inatividade, mas acomodação ao tempo, às circunstâncias que se apresentam pela fortuna, diante do dominador. Sua prudência está na virtude de mudar sua ética, seu comportamento de acordo com as circunstâncias. Isto caracteriza uma elasticidade ética. Embora Maquiavel fale de sua fé no final de seu livro, sem caracterizá-la, e postule que o príncipe deva aparentar possuí-la, todavia, lançando mão da ótica histórica lembra aos príncipes, que embora sejam desejáveis, há impossibilidade de manter fé e integridade no comando do Estado. Não seria possível ao rei manter sua palavra empenhada.

Quando seja possível a um príncipe manter a fé e viver com integridade, não com astúcia, todos compreendem; contudo, observa-se, pela experiência, em nossos tempos, que houve príncipes que fizeram grandes coisas, mas em pouca conta tiveram

a palavra dada, e souberam, pela astúcia, transformar a cabeça dos homens, superando, enfim, os que foram leais (Maquiavel, p.101).

Mais uma vez se faz presente seu paradigma, trabalhar com a realidade e não com abstração filosófica. Em razão disso, dirá ele, é que para conduzir-se em prudência, um príncipe “não pode, nem deve guardar a palavra dada quando isso se lhe torne prejudicial e quando as cousas que o determinaram cessem de existir” (Maquiavel, p.102). Seu argumento para esta elasticidade ética deve-se a própria condição má da natureza humana. “Se os homens todos fossem bons, este preceito seria mau. Mas, dado que são pérfidos e que não a observariam a teu respeito, também não és obrigado a cumpri-la para com eles. Jamais faltaram aos príncipes razões para dissimular quebra da fé jurada” (Maquiavel, p.102). Em virtude da condição da natureza humana, o príncipe deve aprender as artes da simulação e dissimulação: “Mas é necessário disfarçar muito bem esta qualidade e ser bom simulador e dissimulador. E tão simples são os homens, e obedecem tanto às necessidades presentes, que aquele que engana sempre encontrará quem se deixe enganar” (Maquiavel, p.102). A elasticidade bem como a utilidade ética são irmãs, caminham circunstancialmente. “A prudência está justamente em saber conhecer a natureza dos inconvenientes e adotar o menos prejudicial como sendo bom” (Maquiavel, p.123).

5.2.5.3 Aparência

Devido à flexibilidade ética, fragilidade de cumprir palavra empenhada, o príncipe há de aprender a arte da simulação, ou seja, a arte de encobrir, ocultar ou disfarçar os verdadeiros propósitos que tem. Por isso, a questão de manter a aparência, de possuir certas virtudes valorizadas pelos súditos o favorecerá (Skinner, pp.144,152). Quando Maquiavel trata no capítulo XVII acerca da crueldade e da piedade, declara que o príncipe deve ter a aparência de piedoso, e manusear convenientemente a piedade (Maquiavel, p.97). Esta falta de correspondência com a verdade é evidenciada em sua orientação sobre o assunto: “O príncipe não precisa possuir todas as qualidades citadas acima, bastando que aparente possuí-las [...] aparentando possuí-las, são benéficas; por exemplo: de um lado, parecer ser efetivamente piedoso, fiel, humano, íntegro, religioso” (Maquiavel, p.102). Não é postulado como condição necessária ao exercício do principado ter consistência nas palavras e na vida prática. O que se faz necessário é ter e manter a aparência de possuir certas virtudes. Embora, fosse comum naqueles tempos se requerer que os homens de vida comum fossem possuidores de virtudes

consideradas como boas, no entanto, em O Príncipe é dito que o dominador não pode observar estas coisas.

Há de se entender o seguinte: que um príncipe, e especialmente um príncipe novo, não pode observar todas as coisas a que são obrigados os homens considerar bons, sendo freqüentemente forçado, para manter o governo, a agir contra a caridade, a fé, a humanidade, a religião (Maquiavel, p.102).

A mesma distinção ética observada anteriormente se apresenta aqui. Os homens de vida comum devem observar aquelas virtudes tidas como boas, no entanto, ao dominador, basta-lhe aparência de deter estas virtudes em seu caráter. Portanto, evidencia-se o zelo que deve manter o príncipe em aparentar, não somente à vistas dos homens, mas também aos seus ouvidos, ser guardador fiel de virtudes como a piedade, a fé, a integridade de caráter, a humanidade, a religião. Como se verificará, Maquiavel dá ênfase na aparência da religião.

O príncipe deve, no entanto, ter muito cuidado em não deixar escapar da boca expressões que não revelem as cinco qualidades acima mencionadas, devendo aparentar, à vista e ao ouvido, ser todo piedoso, fé, integridade, humanidade, religião. Não há qualidade de que mais careça do que está última. [...] É que os homens, em geral, julgam mais pelos olhos do que pelas mãos, pois todos podem ver, mas poucos são os que sabem sentir (Maquiavel, p.103).

Se a preocupação do governante for a consistência ética isto o levará à ruína. Basta-lhe simular a virtude para que seja bem sucedido. Maquiavel cita vultos políticos que por se inclinarem para a consistência moral caíram em desgraça. “Por estas causas referidas é que Marco, Pertinaz e Alexandre, homens de vida modesta, amantes da justiça, inimigos da crueldade, humanos e benignos, todos, com exceção de Marco, tiveram triste fim” (p.109). O que realmente importa não é a consistência das promessas do príncipe, ou de sua vida cotidiana, mas o seu êxito. O povo o julgará pelos seus feitos a despeito dos meios usados: “O que importa é o êxito [...] Os meios que empregar serão sempre julgados honrosos e louvados por todos, porque o vulgo é levado pelas aparências e pelos resultados dos fatos consumados, e o mundo é constituído pelo vulgo” (Maquiavel, p. 103).

A mudança paradigmática das teorias éticas-políticas assumida, não mais partindo da abstração, mas da realidade factual, apresenta características distintivas: o senso de utilidade,

a elasticidade, a aparência. Estes são componentes da virtú no dominador maquiaveliano. O

príncipe prudente será aquele que manifesta aquelas virtudes diante das ocasiões que lhe são favorecidas pela deusa Fortuna.

Feitas estas considerações pode-se estruturar, nas próximas páginas, a seguinte percepção de Domínio político e Construto ético:

5.3 DOMÍNIO POLÍTICO: ESTRUTURA