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Capítulo 1 | Desenho humorístico

1.2 Metodologia de análise

1.3.3 Caricatura pessoal

Amadeo percebera, desde cedo, o arreigamento da imprensa estrangeira para a caricatura social, tendencialmente política, que se praticava por esta altura em Portugal, decalcada dos modelos bordalinos, como, aliás, Cristiano Cruz referira em 1912, em entrevista citada anteriormente. E, ao contrário, de Cristiano Cruz, que defendia uma caricatura impessoal, Amadeo vai destacar-se na prática de uma caricatura pessoal, a tipologia mais abundante da sua obra humorística.

É em Espinho, durante a temporada de verão do ano de 1906, pouco antes de partir para Paris, que Amadeo inicia o retrato deturpado ou exagerado das pessoas próximas. Deste conjunto destacamos as caricaturas de Guerra Junqueiro (figura 32), Ramalho Ortigão (figura 33), Ramiro Mourão (figura 34)e Manuel Laranjeira (figura 35), todas com semelhanças ao nível da composição e das características plásticas.

379 Parâmetros simultâneos, necessários à criação de uma caricatura, segundo Bergson. MORGADO, Paulo.

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Nos casos da caricatura de Guerra Junqueiro, escritor muito apreciado pelo pintor, e de Manuel Laranjeira, o seu muito estimado amigo e principal incentivador da sua caricatura, Amadeo recorre a uma perspetiva oblíqua, desenhando apenas o busto das figuras, que coloca de perfil. Utiliza unicamente tinta-da-china que é aplicada em traços curtos e em volumosas manchas coloristas, sendo os pormenores e as texturas concedidos pelo contraste com os espaçamentos brancos. O mesmo acontece na caricatura de Ramalho Ortigão. A figura, com a cara mais visível que as anteriores e em meio corpo, é delineada por um traçado firme e negro, sem preenchimento. Já na representação de Ramiro Mourão, um outro amigo do círculo de Espinho, Amadeo parece interligar o processo compositivo das duas primeiras: utiliza manchas negras para conceber o cabelo, o bigode e a sombra, traços curtos e entrecruzados sobre fundo branco para criar contrastes e, consequentemente, texturas e um delineamento mais espesso para a produção de volumes. A persistência dos negros é atenuada no branco do pescoço e no

Figura 33. Amadeo de Souza-Cardoso.

Caricatura de Ramalho Ortigão (S/d). Tinta-da-

china sobre papel, 18,5 cm x 13 cm. Caricatura

observada no Catálogo Centenário do

Nascimento de Amadeo de Souza Cardoso 1887- 1987, CAM-FCG, 1987.

Figura 32. Amadeo de Souza-Cardoso. Caricatura

de Guerra Junqueiro (S/d). Tinta-da-china sobre

papel, 13,5 cm x 8,5 cm. Caricatura observada no

Catálogo Raisonné Fotobiografia, CAM-FCG,

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espaço que vai de entre as pernas até à sombra. A figura é idealizada de corpo inteiro e surge de perfil tal como os caricaturados anteriores.

Apesar de todas estas semelhanças existe entre estes dois pares de caricaturas (Guerra Junqueiro/Ramalho Ortigão e Ramiro Mourão/Manuel Laranjeira) uma diferença substancial, notada, aliás, pelo próprio Laranjeira. Trata-se de, neste estágio de desenvolvimento da sua caricatura, Amadeo ainda não fazer a distinção correta entre “retrato-desenho” e “retrato-caricatura”. Sobre o assunto, o médico de Espinho tenta esclarecê-lo, sustentando a sua apreciação com alguns exemplos concretos:

“O retrato-desenho é a expressão artisticamente exacta do que o individuo é. O retrato-caricatura é mais restrito porque é apenas a expressão artisticamente exacta do que existe de grotesco num dado individuo. Permita-me a imagem

Figura 35. Amadeo de Souza-Cardoso. Caricatura

de Manuel Laranjeira (1906). Publicada em Ilustração Popular: Semanário de vulgarização artística, litteraria e scientífica. Porto, 1.º Ano, n.º

7 (13 Dez. 1908), p. 4.

Figura 34. Amadeo de Souza-Cardoso.

Caricatura de Ramiro Mourão (1906). Tinta-da-

china e tinta azul sobre papel, 13,5 cm x 8,5 cm. Coleção MMASC, Amarante.

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literária e por exemplo Hamlet é um desenho, D. Quijote é uma caricatura. A caricatura ocupa-se apenas do lodo cómico das coisas. Servindo-me ainda duma imagem literária, D. Quijote é, por exemplo, a caricatura do lado espiritual e crente da personalidade humana; Sancho Panza a caricatura da mesma personalidade pelo seu lado material e egoísta.

E, quando eu digo que a caricatura apenas vê o lado cómico das coisas, não vá supor que eu quero dizer que ela seja exclusivamente ofensiva. Às vezes acontece o contrário: em vez de nos fazer rir, põe-nos sérios. É o que acontece, por exemplo, com o D. Quijote, com essa caricatural figura de cavaleiro que, na expressão dum escritor francês, «nos faz rir em crianças e quando homens nos faz pensar». Às vezes como processo de arte a caricatura é de mais efeito, porque põe em realce uma virtude. É o que acontece com D. Quijote, e é o que acontece com muitas personagens do nosso Camilo, é o que acontece em Ibsen, por exemplo, que é uma das figuras da arte contemporânea que mais violentamente se tem revoltado em nome do ideal. É até neste sentido que Goethe dizia que a maior das virtudes tinha o seu aspecto cómico. Tem na verdade. E muitas vezes o artista, como processo de arte de mais seguro efeito, recorre à sátira, que é a caricatura literária, e, para mais violentamente reivindicar o ideal, apresenta-o pelo seu lado cómico. Por exemplo, Ibsen ao Ideal de verdade contrapõe o ideal da mentira-vital. E julga que é para dizer que a verdade é uma futilidade grotesca? – É precisamente para dizer o contrário. Vítor Hugo ainda exprimiu isto duma maneira mais sensível naquela simbólica e estranha figura do Homem que ri, fazendo essa figura grotesca, que fazia rir o mundo, dizer as coisas mais trágicas e mais sérias do mundo. A caricatura, como processo de arte, tem a sua razão de ser e baseia-se essencialmente no contraste. É como a pintura rembrandtesca a claro-escuro, que se serve da sombra para fazer avultar mais o lado sério dessa coisa. É o que acontece com o D. Quijote, repito.380

380 Carta enviada por Manuel Laranjeira a Amadeo, Espinho, 24 de Abril de 1909. LARANJEIRA, Manuel.

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Posto isto, rapidamente observamos que tanto a representação de Guerra Junqueiro, como a de Ramalho Ortigão obedecem mais ao critério retrato-desenho, do que propriamente ao retrato-caricatura. Guerra Junqueiro não possui qualquer idealização ou sugestão cómica. No caso de Ramalho Ortigão, embora tente esboçar uma figura de características mais humorísticas, Amadeo não o consegue pelo traçado, mas sim pela inscrição que coloca ao lado da figura “Caricatura mania casi Zarzuela”, isto é, conotando o autor com um estilo lírico-dramático muito popular em Espanha.

Na mesma carta, vemos como o médico incentiva Amadeo a caricaturá-lo, na verdadeira aceção do termo:

“Diz-me V. que, quando vê o meu retrato, tem a impressão de estar vendo «uma caricatura que dolorosamente se estorce dentro de si mesma». Assim é na verdade e nem V. imagina quanto. Mas esse lado, que eu chamaria o lado trágico de mim mesmo, ainda até hoje só o vi exprimir com uma genial pujança pelo pintor António Carneiro. Havia V. de ver o retrato que ele me fez! Se você visse um retrato, que é a expressão real e vivida de quanto em mim há de dramático e escondido, talvez você pudesse fazer a caricatura melhor, visto que um aspecto do meu modo de ser há-de ser, como tudo quanto existe, caricaturável. Tente-o V., meu amigo, porque eu desejava possuir uma caricatura minha feita por você. E não me faça bonito (ainda bem que o não sou!), e, se em mim encontra qualidades más, ponha-as à luz francamente, que me não magoa com isso, creia. Eu hei-de ter defeitos como todos os mais: tenho-os. (…) É por isso que lhe peço, meu amigo, que tente, que ponha todos os seus recursos à prova até consegui-lo – que o há-de conseguir, porque tem talento para isso e para mais.”381

É neste contexto que nascerá a caricatura de Laranjeira em análise. Nela o artista esboça uma figura de aspeto zangado, com bigodes espetados sobre lábios carnudos, nariz curto, chapéu alto, cuja aba conflui com as sobrancelhas serradas e os olhos desconfiados, cabelo pouco aparado, meio despenteado. Pela primeira vez, Amadeo, ao recriar

381 Carta enviada por Manuel Laranjeira a Amadeo, Espinho, 24 de Abril de 1909. Idem, Ibidem, Op. cit.,

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caricatamente o médico, terá em especial atenção os aspetos psicológicos que o caracterizam (observador, semblante pouco simpático e quase irado).

Esta caricatura viria a ser publicada somente dois anos depois, no jornal portuense

Ilustração Popular: semanário de vulgarização artística, litteraria e scientifica, quando

Amadeo já estava em Paris, muito provavelmente por indicação de Laranjeira, o que depreendemos mais uma vez das suas palavras dirigidas ao pintor, em dois momentos distintos:

“Talvez eu faça publicar a caricatura que você me fez. Essa caricatura, como portrait-charge, à parte umas pequeníssimas incorrecções, é uma das melhores coisas que você tem feito. Quando me ponho a examinar essa caricatura, lembro- me imediatamente do retrato que me fez o António Carneiro. É que retrato e caricatura são a mesmíssima coisa, claramente, vistas por duas retinas diferentes – a do pintor e a do caricaturista. Não envergonha ninguém aquela caricatura e nunca o envergonhará a você, mesmo quando você se sentir possuído até à plenitude duma técnica perfeita”. 382

«Pediram-me hoje a photographia do “portrait-charge”, que você me fez, salvo erro, para publicar na mesma revista [Ilustração Popular]. Creio que você não se zanga com isso»383.

Também a caricatura que Amadeo faz de Ramiro Mourão obedece ao critério desenho-caricatura, pois trata-se de uma representação muito risível, pela forma como o artista estrutura a composição. A cabeça excessivamente inclinada para trás, o bigode espetado e o queixo levantado dão a Mourão um ar altivo, atenuado por um chapéu baixo e enterrado pela cabeça que quase não permite ver os seus olhos. O pescoço largo, onde um laço se inscreve, contrasta em termos de dimensão com o casaco elegantemente

382 Carta enviada por Manuel Laranjeira a Amadeo, Espinho, 26 de Janeiro de 1907. Idem, Ibidem, Op. cit.,

p. 94-97.

383 Carta enviada por Manuel Laranjeira a Amadeo, Espinho, 6 de dezembro de 1908. SILVA, Orlando da.

Manuel Laranjeira, 1877 – 1912: vivências e imagens de uma época, Santa Maria da Feira: Edição do

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vestido e com as pernas curtas, arqueadas para a frente. Estes constituintes físicos, juntamente com os sapatos pontiagudos, bem como a sombra projetada concorrem para uma impressão de vaidade. Podemos dizer que, do conjunto, esta é a caricatura mais bem conseguida por parte de Amadeo. Captando as características físicas e psicológicas gerais do amigo de forma muito divertida, o artista demonstra ter compreendido, na perfeição, a crítica de Laranjeira, o que lhe permite progredir no sentido de dotar as suas caricaturas de uma comicidade muito própria.

Na transição entre o período de Lisboa/Espinho e o período de Paris encontramos, no que às caricaturas pessoais concerne, um núcleo com particularidades interessantes. A persistente utilização da tinta-da-china e da grafite como técnicas ou a autocaricatura em conjunto com outras personalidades são exemplos disso.

Na figura 36, o pintor surge a conduzir uma bicicleta de dois lugares384, seguido pelo amigo Manuel Laranjeira. Amadeo enverga um grande casaco, calças arregaçadas para escaparem à corrente da bicicleta, e um chapéu estilo homburg. Os seus traços faceais são pouco exagerados, no entanto, é possível observar um subtil engrossamento

384 Este tipo de bicicleta começa a ser comercializado, na Europa, por volta de 1985. Figura 36. Amadeo de Souza-Cardoso. Caricatura de Amadeo de Souza-

Cardoso e Manuel Laranjeira (1906). Tinta-da-china sobre papel, 11,5 cm x

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dos lábios, um serramento das sobrancelhas e um maior distanciamento a nível do queixo. Já Laranjeira surge representado com formas mais peculiares e grotescas: roupa amarrotada, cabelo despenteado e encimado por um chapéu estilo coco, barba serrada, olhos mortiços, costas excessivamente curvadas, segurando com a mão esquerda o casaco de Amadeo e com a direita, colocada atrás das costas, uma carta. Esta caricatura alude claramente ao que esta amizade significava para ambos: Amadeo era para Laranjeira um espírito jovem e impulsionador, cheio de força de vontade, sedento de criatividade e modernidade, que tenta por diversas vezes incentivar o amigo a partir para Paris, por isso, ocupa a dianteira da bicicleta; Laranjeira é o principal crítico e incentivador da caricatura de Amadeo, seguindo à distância o seu encalço, isto é, o seu progresso artístico, através das cartas que lhe envia. A técnica pictórica continua a ser a tinta-da-china, aplicada num traçado que alterna na espessura, mas que serve essencialmente para modelar as figuras, causando a impressão de texturas e tridimensionalidades.

Uma outra caricatura de Laranjeira (figura 37) pode corresponder, igualmente, aos primeiros tempos de Amadeo em Paris, tanto pelo delineamento suave do traço, sem

Figura 37. Amadeo de Souza-Cardoso. Caricatura de Manuel

Laranjeira (1906). Caricatura observada em

http://humorgrafe.blogspot.com/2006/11/amadeo-de-souza- cardoso-caricaturista.html.

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preenchimento, como pelas parecenças físicas ao desenho anterior. Este aparece, agora, recostado numa mesa de café (possivelmente o Café Chinez, onde os dois se encontravam pelo verão) de costas para o observador. O braço esquerdo apoia-se na mesa e a mão segura a bengala, um adereço da época. O braço direito está colocado sobre a cadeira e a mão apoia-se nela. As pernas finas estão cruzadas no lado direito. Sobre elas surge a descoberto uma parte, sem pormenores, da enorme face de Laranjeira. Distinguem-se, a custo, um olho, o nariz, o bigode e o lábio inferior. Apenas o chapéu das representações anteriores se mantem sobre o cabelo despenteado e volumoso. Sem dúvida que, tanto pela forma invertida como Amadeo compõe a figura do amigo, como pela precisão do traço, esta é uma das suas caricaturas mais originais até à data.

Figura 38. Amadeo de Souza-Cardoso. Ementa do jantar

oferecido a A. de Sousa (1906). Caricatura publicada em O Primeiro de Janeiro, 13 de Janeiro de 1907, p. 1.

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Estes primeiros meses de Amadeo em Paris são também marcados por um convite que porá à prova as suas habilidades de caricaturista. Trata-se da ilustração do menu do jantar promovido em honra ao jornalista A. De Sousa (figura 38), em que participava um grupo considerável de rapazes, estudantes em Paris. Amadeo irá optar pela tinta-da-china, uma técnica que dominava e por elaborar a caricatura individual de cada um dos intervenientes, dispondo-os de forma muito original e aumentando o seu potencial humorístico com pequenas frases ou poemas. Analisemos formal e conceptualmente esta ementa.

De modo a evidenciar a relevância do homenageado, Amadeo coloca a caricatura deste ao centro da composição. O rosto preenche-se de pequenos traços simuladores de rugas. O nariz é desenhado em formato pontiagudo, sobressaindo-se à barba farta que torna a boca impercetível. Num enorme laço inscreve-se, à esquerda, Primeiro de Janeiro, e, à direita, O Mundo Elegante, jornais onde A. de Sousa colaborava. Esta figura encabeça o menu que o artista cuidadosamente elabora, numa letra oblíqua e estilizada.

Os restantes convidados são introduzidos pelo artista nas margens e cabeçalho da folha. Na coluna da esquerda identificamos, de cima para baixo, a autocaricatura de Amadeo (que não difere muito da anterior, junto a Manuel Laranjeira), seguindo-se Acácio Lino, depois Arthur Alves Cardoso e Emmerico Nunos, Manuel Bentes e o Dr. Braga Júnior. Na coluna da direita, o primeiro rosto é o do Dr. José Gomes Ferreira da Costa, seguido do Dr. João Severo Duarte da Silveira, posteriormente do Dr. Óscar Moreno (não mencionado pelo jornal onde a ementa foi reproduzida), do Dr. Eduardo da Silva Torres, do Dr. Carlos Balbino Dias e do Dr. Sousa Feiteira Júnior. Ao centro, de corpo inteiro e sobre um guardanapo que vai do pescoço de Acácio Lino ao do Dr. João Severo Duarte da Silveira, surgem-nos o arquiteto Afonso Ferraz e José Pedro Cruz. Intensionalmente ou não Amadeo parece fazer uma separação entre os médicos e os não- médicos (isto é, os artistas, o único arquiteto presente e o único político), distribuindo-os por secções separadas: o primeiro grupo sobre a direita; o segundo à esquerda e ao centro. Destacamos, ainda, as figuras colocadas na base da composição. À esquerda, uma pequena figura masculina empoleira-se num escadote, firme na colossal barriga que

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Amadeo desenha ao Dr. Braga Júnior. O pequeno homem parece hastear um pano, em que o artista escrevera, em letras minúsculas e com graça, a quadra: “BARRIGA, barriga, barriga! / barriga de conselheiro! / barriga sem ter comilança / assombra o mundo inteiro!”. Ao centro, figuras curiosas surgem como sombras: as três primeiras da esquerda são, pela estilização dos corpos, inequivocamente bailarinas, o que a juntar à palavra que lhe fora colocada como uma espécie de legenda, “Champagne”, alude à festa que será o jantar; depois, a silhueta de um leão em pé, como símbolo de sabedoria dos convidados, que, em Paris, pretendiam ascender a estados mais elevados de erudição moderna;a seguir dois pequenos anjos são colocados por cima da palavra “portugaise”, atribuindo uma certa virtude a tudo quanto é português; imediatamente por baixo do leão e ao lado da palavra “champagne”, duas figurinhas, igualmente muito pequenas, escrevem uma carta, desproporcional ao seu tamanho, com um enorme pincel, representando todos aqueles que estão fora da sua pátria e que, tal como os caricaturados, têm o hábito de escrever aos seus; finalmente, uma outra figura, colocada sobre umas escadas, pinta, no nariz do Dr. Sousa Feiteira Júnior, as palavras “AFFICHES” de baixo para cima, e, em sentido inverso, “Lusitano Portuguez”.

Sobre esta caricatura em particular também Manuel Laranjeira esboça a sua opinião, em carta datada de 26 de Janeiro de 1907:

“Vi no Janeiro a sua caricatura. Aparte duas ou três caras, de que gostei muito, não gostei. O arranjo era um pouco vulgar e, francamente, amigo, dava direito ao M. dizer que também era capaz de fazer o mesmo e que tinha tanto talento como você. Ora esta suposição nem a brincar se lhe deve consentir”385.

Talvez devido ao comentário do seu principal crítico, os trabalhos caricaturais de Amadeo que se vão seguir evidenciam novas características pictóricas, compositivas e iconográficas. Os principais modelos da sua caricatura pessoal serão agora os seus companheiros de Paris, o que confirma a sua preferência pela observação direta.

385 Carta enviada por Manuel Laranjeira a Amadeo, Espinho, 26 de Janeiro de 1907. LARANJEIRA, Ma-

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Encontramos no desenho caricatural intitulado “Grupo com autorretrato” (figura 39) outra cena de convívio, mas com particulares distintas da caricatura anterior. Realizado a carvão e com menor grau de formalidade, o artista revela preocupações com a perspetiva, dispondo as figuras em três planos principais. Identificamos, no plano de fundo, o sorridente Manuel Bentes, Amadeo, que se autorretrata novamente de sobrancelhas cerradas e expressão carregada, e Emmérico Nunes, o mais alto do grupo; no centro da composição está Francisco Carneiro, de testa quadrada e lisa, orelhas ampliadas e barba à guise; e no plano mais avançado, Alberto Cardoso, de nariz comprido e pontiagudo, está a tocar viola, enquanto Acácio Lino, de nariz proeminente como o de uma ave, e de boca aberta, parece estar a cantar. Uma varanda frontal enquadra o grupo e a composição. Reconhecemos, ainda, à direita, uma estrutura retangular com uma figura desenhada que simula um quadro e nos permite associar os representados à profissão de pintores. Quanto à técnica, utiliza um contorno mais marcado na conceção das figuras e mais solto e claro no preenchimento, que é feito de forma mais esparsa e na oblíqua. É

Figura 39. Amadeo de Souza-Cardoso. Grupo com

autorretrato (1908). Grafite sobre papel, 16 cm x 14,5 cm.

Caricatura observada no Catálogo Centenário do

Nascimento de Amadeo de Souza Cardoso 1887-1987,

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interessante reparar que, apesar de ser um desenho pouco pormenorizado, Amadeo consegue, por meio de linhas gerais, captar os traços particulares de cada um dos amigos e de si próprio, permitindo um imediato reconhecimento de todos.

Nestes dois grupos estão representados uma boa parte dos modelos que Amadeo considera mais interessantes, seja do ponto de vista do desafio fisionómico, seja pelos laços de afetividade que o ligam a essas personalidades. O Dr. Braga Júnior, por exemplo, volta a ser caricaturado (figura 40)por Amadeo a grafite, com um traçado rápido, definido e texturado, captando de forma singela mas cuidada as principais características físicas da figura. A composição evidencia semelhanças com o menu do jantar, na medida em que o caricaturado volta a surgir de busto perfilado, com a sua iconográfica barriga proeminente e chapéu estreito, enfiado pela cabeça arredondada. A diferença reside agora no rosto, mais pormenorizado e nítido: perfil côncavo convexo, olhos pequenos e escondidos atrás dos óculos, nariz e as orelhas pequeníssimos e excessivo avanço das mandíbulas e do queixo.

Figura 40. Amadeo de Souza-Cardoso. O Conselheiro

– O Braga (1906). Caricatura publicada em Ilustração Popular: Semanário de vulgarização artística, litteraria e scientífica. Porto, 1.º Ano, n.º 7 (13 Dez.

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