• Nenhum resultado encontrado

PARTE II: O PRIMADO E A INSUFICIÊNCIA DA LINGUAGEM

77. Carl André Poems (1959-2004) Máquina de escrever sobre papel 27,9x21cm

Quando André coloca os seus poemas nas paredes, estes adquirem um caráter de ilegibilidade, uma vez que estando muito longe para serem lidos (…) convertem-se num

certo padrão, quase como quando eu era pequeno.206 Contudo, André recusa esta produção de poemas que não são para ser lidos e que funcionam como padrões: Penso

que não comporia poemas de palavras onde as palavras se tornariam somente padrões

205

DELAHUNTY, 2014: 212. Tradução livre a partir de: The books that interested me were the books of poetry, not because I would read them, but because the shape of the poems on the page was much more interesting than the shape of the dull gray prose in solid blocks. I used to love to look at the poems of Whitman, because one could see the reoccurrence of form without being able to read.

206

Idem, p. 214. Tradução livre a partir de: They are too far away to read (…) so they become a kind of a pattern almost as they were when I was a young child.

como o são nas pinturas.207 O artista concede importância à junção das palavras e a esta junção (que tem sentido fora da vertente decorativa) é produtora de formas.

78. Filipa Cruz. Cartas para ontem (2013). 2 folhas de papel com texto gravado a branco no interior de duas caixas de luz lacadas a alumínio

André continua dizendo que nos poemas – para lá do seu caráter físico, de gravação da máquina para o papel, e para lá desta massa visual criada -, a sonoridade é, também, um elemento preponderante. Tal é o caso das Óperas, já que estas, tal como André explica, surtem um efeito nos intérpretes diferente do que surtem no público: A

troca de voz e de palavras não é verdadeiramente para quem escuta como o é para os performers. 208

Estas palavras, estes poemas ecoam no espaço, nos corpos dos intérpretes e no papel para lá da tinta. A poesia da sua obra afirma-se no sensível:

para mim, o interesse da linguagem é exactamente a palpabilidade, o sentido tátil das palavras. Fui acusado de tentar tratar as palavras como coisas, mesmo

207

Idem, p. 214. Tradução livre a partir de: I would not, I think, compose poems of words where the words would just become patterns as they are in paintings.

208

Idem, p. 214. Tradução livre a partir de: The interchange of voices and words is not really so apparent to someone listening as to the performers themselves.

se eu sei muito bem que as palavras não são coisas. Mas as palavras têm qualidades palpáveis que sentimos quando falamos, quando as escrevemos, ou quando as escutamos, e isso é o verdadeiro tema da minha poesia.209

79. Filipa Cruz. Detalhe de Cartas para ontem (2013). 2 folhas de papel com texto gravado a branco no interior de duas caixas de luz lacadas a alumínio

André conclui a sua reflexão argumentando que na poesia, não é a frase a forma dominante, mas a palavra. A atenção às palavras e ao modo como ecoam no espaço e se manifestam na palavra escrita também se faz sentir no poema chinês The Lion-Eating

Poet in the Stone Den.210 Chao Yuen Ren escolheu deliberadamente as palavras com diferentes significações, mas com a mesma pronunciação. A estrutura rítmica é o elemento que se modifica na pronunciação e nas variações tonais. Este poema permanece, assim, unicamente acessível pela leitura, uma vez que, em alta voz, escutamos 92 caracteres baseados na mesma unidade sonora: shì.

209

Idem, p. 214.Tradução livre a partir de: for me, the poetic interest in language is exactly the palpability, the tactile sense of the words themselves. I have been accused of trying to treat words as things, thought I know very well that words are not things. But words do have palpable tactile qualities that we feel when we speak them, when we write them, or when we hear them, and that is the real subject of my poetry.

210

Lion-Eating Poet in the Stone Den [on-line]. [Consultado a 10/09/2015]. Disponível no endereço: https://www.youtube.com/watch?v=vExjnn_3ep4

Shī Shì shí shī shǐ” Shíshì shīshì Shī Shì, shì shī, shì shí shí shī. Shì shíshí shì shì shì shī. Shí shí, shì shí shī shì shì. Shì shí, shì Shī Shì shì shì. Shì shì shì shí shī, shì shǐ shì, shǐ shì shí shī shìshì. Shì shí shì shí shī shī, shì shíshì. Shíshì shī, Shì shǐ shì shì shíshì. Shíshì shì, Shì shǐ shì shí shì shí shī. Shí shí, shǐ shí shì shí shī shī, shí shí shí shī shī. Shì shì shì shì.

O surrealista Ghérasim Luca é um outro autor cujo trabalho se centra na leitura em alta voz e na disposição dos poemas na página de papel.

pas pas paspaspas pas / pasppas ppas pas paspas / le pas pas le faux pas le pas / paspaspas le pas le mau / le mauve le mauvais pas / paspas pas le pas le papa / le mauvais papa le mauve le pas / paspas passe paspaspasse / passe passe il passe il pas pas / il passe le pas du pas du pape / du pape sur le pape du pas du passe / passepasse passi le sur le / le pas le passi passi passi pissez sur / le pape sur papa sur le sur la sur / la pipe du papa du pape pissez en masse / passe passe passi passepassi la passe / la basse passi passepassi la / passio passiobasson le bas / le pas passion le basson et / et pas le basso do pas / paspas do passe passiopassion do / ne do ne domi ne passi ne dominez pas / ne dominez pas vos passions passives ne / ne domino vos passio vos vos / ssis vos passio ne dodo vos / vos dominos d’or / c’est domdommage do dodor / do pas pas ne domi / pas paspasse passio / vos pas ne do ne do ne dominez pas / vos passes passions vos pas vos / vos pas dévo dévorants ne do / ne dominez pas vos rats / pas vos rats / ne do dévorants ne do ne dominez pas / vos rats vos rations vos rats rations ne ne / ne dominez pas vos passions rations vos / ne dominez pas vos ne vos ne do do / minez minez vos nations ni mais do / minez ne do ne mi pas pas vos rats / vos passionnantes rations de rats de pas / pas passe passio minez pas / minez pas vos passions vos / vos rationnants ragoûts de rats dévo / dévorez-les dévo dédo do

domi / dominez pas cet a cet avant-goût / de ragoût de pas de passe de / passi de pasigraphie gra phiphie / graphie phie de phie / phiphie phéna phénakiki / phénakisti coco / phénakisticope phiphie / phopho phiphie photo do do / dominez do photo mimez phiphie / photomicrographiez vos goûts / ces poux chorégraphiques phiphie / de vos dégoûts de vos dégâts pas / pas ça passio passion de ga / coco kistico ga les dégâts pas / le pas pas passiopas passion / passion passioné né né / il est né de la né / de la néga ga de la néga / de la négation passion gra cra / crachez cra crachez sur vos nations cra / de la neige il est il est né / passioné né il est né / à la nage à la rage il / est né à la né à la nécronage cra rage il / il est né de la né de la néga / néga ga cra crachez de la né / de la ga pas néga négation passion / passionné nez pasionném je / je t’ai je t’aime je / je je jet je t’ai jetez / je t’aime passionném t’aime / je t’aime je je jeu passion j’aime / passionné éé ém émer / émerger aimer je je j’aime / émer émerger é é pas / passi passi éééé ém / éme émersion passion / passionné é je / je t’ai je t’aime je t’aime / passe passio ô passio / passio ô ma gr / ma gra cra crachez sur les rations / ma grande ma gra ma té / ma té ma gra / ma grande ma té / ma terrible passion passionnée / je t’ai je terri terrible passio je / je je t’aime / je t’aime je t’ai je / t’aime aime aime je t’aime / passionné é aime je / t’aime passioném / je t’aime / passionnément aimante je / t’aime je t’aime passionnément / je t’ai je t’aime passionné né / je t’aime passionné / je t’aime passionnément je t’aime / je t’aime passio passionnément211

Toda a questão das invisibilidades ocorre também nas peças sonoras, uma vez que estas não são visíveis, mas audíveis. Estas acabam por se relacionar com a hipótese de André quanto à palpabilidade, uma vez que o som tem, deveras, impacto no corpo. O som projeta-se em ondas, embate em objetos, embate-nos, bate-nos, toca-nos, beija-nos. Num dos seus extremos, apesar de o projeto autoral versar sobre um embate em termos de conteúdo, as peças sonoras de Mika Vainio são sintoma desse quase abuso do som com interferência no corpo humano e no espaço arquitetónico.

Retomando a problemática da entoação, voltamos a salientar Artaud: as palavras [têm esta faculdade] de criar uma música seguindo o modo como são pronunciadas,

211

LUCA, Ghérasim. Passionément [on-line]. [Consultado a 25/06/2015]. Disponível no endereço: http://editions- hache.com/luca/luca1.html

independentemente do seu sentido concreto, e que pode mesmo ir contra este sentido, - de criar sob a linguagem uma corrente subterrânea de impressões, de correspondências, de analogias.212 De facto, para o poema Passionnément (1973), Luca leu o poema em alta voz de modo a conceder justiça a cada palavra, a cada tempo, a cada ritmo, a cada passagem de uma palavra a outra, a cada palavra que se dilui ou que se converte numa outra. De igual modo, denota-se no modo como a entoação e a projeção de voz têm uma ação no e pelo corpo. Quer isto dizer que o corpo, no momento de leitura, não se encontra estático, ele é estimulado pela leitura, tal como estimula a própria leitura. Há uma componente performativa na sua leitura: os olhos, a boca, a garganta, os pulmões, os braços, as mãos e, ainda, os olhos trabalham sinfonicamente no sensível pela intensidade, aceleração, desaceleração, ritmo, duração e sonoridade dos poemas. Com Ghérasim Luca compreendemos muito bem as propriedades físicas e esta música criada, como dizia Artaud, pela pronunciação e pela mutação que sofre.

Sem dúvida que a palavra escrita possui uma presença sensível que ultrapassa em larga escala o seu conceito: a escrita tem uma certa espessura de linha ou uma certa cor e pode mesmo afirmar-se como massa textual – o que André recusava, mas que encontramos em algumas obras de Stefan Brüggemann (Fig. 80) e de Huan Zang (Fig. 84) nas quais massas de texto sobrepostas convertem-nas em ilegíveis em determinados locais e existentes verdadeiramente como negrume textual significativo (Fig. 81, 82 e 83).

80. Stefan Brüggemann. 12 Texte pieces on top of each other (2008).