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DIARY 1900-1999 (2007). Impressão digital sobre

tela de vinil. 400 x 600 cm. 54ª Bienal de Veneza: Pavilhão da República de San Marino. San Marino

Neste sentido de experimentação de identidades múltiplas (multiplicação do sujeito), e se revisitarmos a ideia de Antonin Artaud a propósito de que o poeta inventa intempestivamente personagens, torna-se fulcral ressalvar o papel de Fernando Pessoa. Pensando a questão da identidade, Pessoa multiplica-se: Vivem em nós inúmeros. O Eu deixa de se assumir enquanto uma entidade singular, para comportar a pluralidade. Há

mais eus que eu mesmo62 e Não sei quantas almas tenho63 são versos de Fernando Pessoa que testemunham esta multiplicação ocorrida no cerne de um mesmo sujeito.

O projeto do poeta português consistiu no desdobramento em Fernando Pessoa ortónimo e em heterónimos - personalidades fictícias e autónomas, construídas com tal grau de precisão que se constituíram com traços e com um fundo vivencial próprios: Alberto Caeiro, o guardador de rebanhos, o médico Ricardo Reis, Álvaro de Campos o futurista e Bernardo Soares, para citar quatro dos seus heterónimos.

Esse trabalho de criação de inúmeros é-lhe possível, uma vez que O poeta é um

fingidor.

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COMANI, Daniela. IT WAS ME. DIARY 1900-1999 [on-line]. [Consultado a 22/08/2015]. Disponível no endereço: http://www.danielacomani.net/biennale_ve.html. Tradução livre a partir de: … En effet, Comani a écrit un journal du 20e siècle, comme si tous les événements se sont effectivement produits à elle. D'un jour à l'autre, d'un rapport à l'autre, elle est un témoin passif, puis une militante, puis victime, puis agresseur. De cette façon, elle est apparemment à l'origine de ces événements historiques du XXe siècle.

62

REIS, Ricardo (1935). Vivem em nós números. [on-line]. [Consultado a 22/08/2015]. Disponível no endereço: http://arquivopessoa.net/textos/1823

63

PESSOA, Fernando (1930). Não sei quantas almas tenho. [on-line]. [Consultado a 22/08/2015]. Disponível no endereço: http://arquivopessoa.net/textos/277

O poeta é um fingidor / O poeta é um fingidor. / Finge tão completamente Que chega a fingir que é dor / A dor que deveras sente. / E os que lêem o que escreve, / Na dor lida sentem bem, / Não as duas que ele teve, / Mas só a que eles não têm. / E assim nas calhas de roda / Gira, a entreter a razão, / Esse comboio de corda / Que se chama coração.64

De acordo com Fernando Pessoa, o poeta experiencia uma emoção/um sentimento. A emoção sentida deve-se elevar à linguagem poética. Isto quer dizer que a emoção experimentada serve de motor para a produção e quer, ainda, dizer que vai, no processo literário, sofrer uma transformação.

A construção poética, de acordo com Pessoa, não ocorre no momento da emoção, mas no momento da recordação dessa emoção. Isto faz-se sentir quando o poeta escreve: Tudo o que sonho ou passo, / O que me falha ou finda, / É como que um

terraço / Sobre outra coisa ainda. / Essa coisa é que é linda.65

Neste caso, a emoção é atravessada pela ação da inteligência e da imaginação criadora. Por isso mesmo, Pessoa escreve em Isto: Dizem que finjo ou minto / Tudo que

escrevo. Não. / Eu simplesmente sinto / Com a imaginação. Não uso o coração.66 Para o poeta português, a base da arte é a sensação. Todavia, esta sensação deve ser intelectualizada. O poema, neste caso, é um produto intelectual, porque não é criado no momento da emoção, mas na recordação da emoção. Para intelectualizar a emoção é preciso: ter consciência da sensação e, depois, ter consciência da consciência, que se liga, por sua vez, ao poder de expressão: Por isso escrevo em meio / Do que não está ao

pé, / Livre do meu enleio, / Sério do que não é. / Sentir? Sinta quem lê!67

A propósito do supramencionado, exaltamos, aqui, o eu lírico, um eu que não tem necessariamente de coincidir com o autor. Deste modo, este eu lírico sente as coisas mesmo sem o autor as ter sentido com a mesma intensidade ou mesmo sem o autor as ter sentido de todo. Por isso mesmo, O poeta é um fingidor./ Finge tão completamente /

Que chega a fingir que é dor /A dor que deveras sente.68

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PESSOA, Fernando (1942). Autopsicografia. [on-line]. [Consultado a 22/08/2015]. Disponível no endereço: http://arquivopessoa.net/textos/4234

65

PESSOA, Fernando (1933). Isto. [on-line]. [Consultado a 22/08/2015]. Disponível no endereço: http://arquivopessoa.net/textos/4250 66 Idem 67 Idem 68

PESSOA, Fernando (1942). Autopsicografia. [on-line]. [Consultado a 22/08/2015]. Disponível no endereço: http://arquivopessoa.net/textos/4234

A indefinição do sujeito

Normalmente, a segunda parte da estrutura de um poema épico é destinada à invocação, do latim invocātĭō. Nesta parte, o poeta invoca uma musa ou uma divindade, a fim de que esta lhe conceda inspiração ou ajuda para a construção do poema épico69. Podemos verificar a existência da parte concernente à invocação das Musas nas Epopeias: em Ilíada, em Odisseia de Homero e/ou em Os Lusíadas de Luís Vaz de Camões.

Na Estrofe IV de Os Lusíadas, Luís Vaz de Camões invoca o auxílio das Tágides, as ninfas do rio Tejo, a fim de que, assumindo-se como musas, o inspirassem na construção da obra e no, consequente, relato dos grandes feitos do povo Lusitano.

E vós, Tágides minhas, pois criado / Tendes em mim um novo engenho ardente, / Se sempre em verso humilde celebrado / Foi de mim vosso rio alegremente, / Dai-me agora um som alto e sublimado, / Um estilo grandíloquo e corrente, / Porque de vossas águas, Febo ordene / Que não tenham inveja às de Hipocrene.70

Considera-se pertinente pensar a invocação, uma vez que é um momento da estrutura de uma epopeia, ou mesmo de um mecanismo do discurso, onde o eu lírico, um personagem de um romance ou um interlocutor, apela, pelo discurso, a uma entidade sobrenatural, aos Deuses, ao mundo, ao outro ou à natureza. Fora do contexto da epopeia, encontramos a invocação na poesia de Rainer Maria Rilke. Esse tu-outro a quem o eu lírico se dirige, tem a particularidade de ser todo o mundo e de ter diferentes significações para lá da referência da musa: esse tu-outro pode-se constituir como um ser humano (um amor, um amigo, um desconhecido, um familiar, etc. e, nesse sentido, o leitor pode-se projetar no momento de experimentação do poema) como pode ser a natureza num sentido mais lato (uma montanha, um rio e/ou uma árvore).

É isso que sentimos, por exemplo, em Rainer Maria Rilke:

Tu, a que me rescende: doce, como as próprias tílias:

II

Uma e outra vez do vidro espelhado voltas a buscar-te de novo até ti;

69

O poeta pode, igualmente, pedir ajuda a esta entidade noutras partes da estrutura do poema 70

agora que te saúdo de novo, esperarei prender-te?

Ou seja, libertar-te, com a minha saudação?... Sonha-o apenas, ou fá-lo _: ambas as coisas são ser.71

ordenas em ti, como numa jarra, as imagens tuas. Chamas-lhe Tu,

a esse despontar dos teus reflexos que por momentos ao de leve estudas antes de, vencida pela felicidade deles, voltares a ofertá-los ao teu corpo.72

Como se teve a oportunidade de ver, o Tu pode-se assumir, no caso das epopeias, como uma musa, uma vez que esse tu-musa se constitui como uma força que inspira, que reclama magia e que evoca uma força adormecida. Todavia, na literatura e na arte em geral, o Tu não se assume necessariamente enquanto tal, uma vez que se pode definir como uma força que inspira, mas que se afasta da Musa. Neste caso, o Tu não provém de um fundo mitológico. O Tu constitui-se enquanto entidade assexuada e enquanto imagem poética (Fig. 31).

Os detalhes que nos são próximos permitem-nos (re)criar um outro exterior, mas suficientemente próximo - como se de uma extensão de nós mesmos se tratasse. Um outro-musa que se constitui sem corpo, uma entidade fantasmática, não necessariamente coincidente com o real. Um outro que se pode assumir como um sintoma do que não somos, mas do que, talvez, devêssemos ser; um outro que nos propõe uma auto- compreensão, que nos propõe uma reflexão quanto à nossa condição; um outro invocado que se pode assumir como fonte de inspiração.

Esse tu-musa constitui-se como uma quimera, como capaz de libertar as palavras num sonho que reconstrói a realidade particular: um tu-musa fantasmático, imaginado, sem corpo, que funciona como motor no processo de criação, de recriação de histórias e de possibilidades de diálogo/monólogo mais ou menos ficcionados.

Neste ponto, mais do que uma simples fonte de inspiração, crê-se essencial exaltar a atenção aqui concedida ao detalhe presente na relação Eu-Tu e no número reduzido de intervenientes. O Eu e o Tu rejeitam o individualismo para abarcar a Humanidade pela sua indefinição. Referimo-nos a identidade na qual os intervenientes são suficientemente indefinidos de modo que é possível a nossa projeção (Fig. 31).

71

RILKE, Rainer Maria e RODIN, Auguste (2008): 49 72

Pensas-te dó menor, porque te esqueces desse corpo sem corpo que não perece, que não se prende, que não se esgota. És livre, não há moral, não há desgaste, não há pressão. És invisível e livre; és visível e verdade. És livre de corpo, és livre, és antes de corpo.

És antes de ser. És livre de mim, de ti, de nós, dos outros. Não deves nem esperas. És. Tens. Estás. Respiras sem que te enchas. És. Tens. Estás.

Não me deves, não me tens, não me gastas. És. Tens. Estás. Não te prendes, não te escapas, não esperas. És. Tens. Estás.

Não te repetes, não exiges, não esperas. Porque és, porque tens e porque estás.

O teu desejo flutua num ritmado rumo inesperado, pousa em mim quando o queres, quando me tens, quando me queres. E, de cada vez, libertas-te do que crês que te prende e do que te faço. E dás-te como pássaros, dizes-me. Mas migras. Por isso, todos os meus dias são teus e todas as tuas noites são tuas. És noites notívagas e não pernoitas por mim. És. Tens. Estás.

Mas não por mim, mas não em mim.

31. Filipa Cruz. Pensas-te dó menor em Parce que les mots ont aussi un dos #1 (2015). 1/1. Caracteres de