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CARNAVAL E TRADIÇÃO CRISTÃ

O carnaval é considerado uma das festas mais antigas da história humana e também uma das mais difundidas entre diferentes culturas no Ocidente e no Oriente. Uma discussão sintética de suas origens nos permite entrever algumas das principais teorizações dessa festa e definir o quadro teórico que baliza esta investigação.

Não é unânime a idéia de continuidade das festas desde os albores da sociedade humana em diferentes latitudes, como Egito, Grécia e Roma do período clássico, ao carnaval configurado na Europa medieval e moderna, de onde teria sido trazido para as Américas pelos navegadores e conquistadores dessas paragens, vindo a se tornar «o maior espetáculo da terra», mais precisamente no Brasil.

Fabre (1992) remete a origem do carnaval à Mesopotâmia, há cerca de 4000 anos antes de nossa era, de onde teria se alastrado para o continente europeu, e daí à denominada cultura ocidental, constituindo uma extemporânea manifestação pagã, que, por sua força simbólica e existencial, teria "sobrevivido" em meio a uma constelação de festas religiosas que compõem o calendário cristão. 1

Nessa tradição, inscreve-se Bakhtin para quem, na Europa medieval, a festa popular por excelência era o carnaval, cuja espontaneidade e alegria contrastavam com as festas oficiais, modalidades de comemoração voltadas para o passado, para a justificação dos valores e normas vigentes. O festejo carnavalesco ligava-se ao que havia de renovável na natureza, como a semeadura e a colheita. Apesar de o cristianismo ter se apropriado do ideal utópico de renovação do carnaval, Bakhtin considera que essa festa situa-se para além da cultura cristã. Sua idéia de renovação, de liberdade é universal e aponta sempre para o futuro e não para a manutenção ou justificação do status

quo. Para Bakhtin o carnaval guarda características libertárias de uma época

em que não havia divisões entre o sagrado e o profano, povo e Estado, pois sintetiza os princípios da arte e da vida que o espetáculo teatral separa:

O Carnaval ignora toda distinção entre atores e espectadores. Também ignora o palco mesmo na sua forma embrionária. Pois o palco teria destruído o Carnaval (e inversamente, a destruição do palco teria destruído o espetáculo teatral). Os espectadores não assistem ao carnaval, eles o vivem, uma vez que o carnaval, pela sua própria natureza, existe para todo o povo (BAKHTIN, 1999).

1 É elucidativo, por exemplo, que a cultura medieval cristã tenha pontuado ao longo do ano o

que Baroja (1979) chama de ordem passional, firmando uma tradição que se repete ao longo dos séculos. A alegria familiar do Natal é sucedida pelo decaimento do carnaval e este pela tristeza obrigatória da Semana Santa (depois da repressão da Quaresma). No oposto da triste e outonal festa dos Mortos (Finados), encontram-se as festas da primavera e do verão. O ano, com suas estações, suas fases marcadas pelo Sol e pela Lua, tem servido fundamentalmente para fixar esta ordem à qual é submetido o indivíduo no interior da sociedade.

O suposto paganismo do carnaval suscitou em muitos pensadores a idéia metafísica de uma tradição carnavalesca, capaz de unir num mesmo elo a remota antigüidade com a modernidade tardia. Para Baroja (1979) e Heers (1983), a tentativa de estabelecer uma linha de continuidade entre festas de diferentes origens e motivações induz o estudioso a um erro metodológico que consiste, basicamente, em tentar explicar as tradições, ritos e costumes atuais pela definição das supostas raízes de tais eventos, isolando-os de seu contexto político e social e negligenciando as características que cada época impõe a todas as expressões da vida coletiva. Heers identifica nos sermões dos reformadores dos séculos XVII e XVIII o recurso de atribuir uma herança pagã ao carnaval, como argumento para condená-lo e censurá-lo. A abordagem folclórica, que busca identificar usos e costumes fundamentais, comuns às mais diferentes e distantes sociedades, adotou esse argumento, mas no sentido de atribuir-lhe uma onipresença, graças à sua capacidade de sobreviver ao longo dos séculos. Ainda que as datas das festas favoreçam a tese da continuidade, Heers não identificou uma implicação de continuidade entre as tradições pagãs e cristãs no carnaval.

Baroja considera que as características do carnaval moderno foram estabelecidas na Idade Média, em plena vigência do pensamento cristão. Sem a idéia de checada do jejum, de entrada na Quaresma (Quadragésima), ele não existiria. A própria etimologia do termo é esclarecedora. Provém da expressão latina carnem leváre, que quer dizer 'abstenção de carne'. A palavra carnaval, que aparece pela primeira vez num dicionário espanhol em 1942, deve derivar de um italianismo, vez que as palavras italianas carnevale e

carnovale são bem mais antigas do que carnaval (BAROJA, 1979, p. 34).2 O historiador não nega que o carnaval exalta os valores pagãos (“demoníacos”) da vida, em contraste com o sofrimento e luto vivenciados pelos cristãos na Quaresma. No entanto, não se pode deduzir uma teoria das sobrevivências que perpassaria grandes festejos em diversas épocas e lugares, como fazem Fabre (1992) e os folcloristas. Portanto, o carnaval resulta sim de sincretismos,

2 “Finalmente a força expressiva do vocábulo de origem italiana, utilizado mais freqüentemente

nos séculos XIX e XX, suplantou Carnestolendas quase arcaizante ou camponês frente ao citadino carnaval; desde o fim do séc. XVIII, ele será tido por muitos como a única palavra familiar popularizada pelos jornais, revistas, brochuras e livros de toda sorte” (BAROJA, 1979, p.35).

de fusão de diferentes tradições, ritos e costumes. Mas não haveria uma essência a perpassar todas essas épocas e tradições, a qual estaria ainda presente no carnaval atual. Endossando essa proposição, Heers considera o carnaval europeu como um divertimento ligado ao ciclo litúrgico, tendo herdado ou simplesmente imitado determinados aspectos já presentes nas festas religiosas e se tornado, com a transformação dos poderes sociais, políticos e econômicos, uma festa burguesa, a partir da qual se podia criticar e ridicularizar os abusos da sociedade, como também do clero3. De início, foi uma procissão como tantas outras, uma dança da primavera, que certamente teria incorporado ingredientes ligados aos cultos pagãos e de renovação, dos deuses campestres e das forças da natureza4.

Sendo o carnaval fixado pela Igreja em relação à Páscoa, definida em função da primeira lua da primavera, ele é revestido de uma simbologia associada às próprias características atribuídas a esse astro e também delas derivadas. A admitida influência da Lua sobre os fenômenos naturais terrestres é estendida aos fenômenos sociais que ela ordena, como o carnaval. No domínio da natureza, a Lua simboliza a mudança, o crescimento, a variação dos humores, a fecundidade e a degenerescência dos seres perecíveis, alimentando uma visão cíclica do mundo, que integra a sucessão e a síntese dos contrários e das características comunicadas ao carnaval (RIBARD, 1999, p.113).

No campo do imaginário dessa festa, a influência dos ciclos naturais regidos pela Lua adquire implicações sexuais, sendo um dos ingredientes renovados a alimentar uma predisposição coletiva, por ocasião do carnaval, à abolição das convenções ordinárias de interdição, à promiscuidade entre os sexos, à liberalidade das relações sexuais e aos desregramentos. Deriva daí também a recorrente referência à fecundidade e mesmo à fecundação fabulosa, representada por homens grávidos e por bebês monstruosos. A ocorrência cíclica do carnaval assume um conteúdo de naturalização e também

3 Esta linha de raciocínio é desenvolvida por Natalie Zimon Davis (1990) acerca dos Charivari. 4 Lombard-Jourdan (2005) filia-se à tese de Baroja de que o carnaval europeu não provém da

cultura greco-latina, como é afirmado pela Igreja Católica, mas que, no caso da França, o carnaval provém da herança gaulesa que estaria nas origens desse país e de sua realeza e que, no transcurso dos séculos, foi incorporada ao calendário cristão (Cf.LOMBARD- JOURDAN, 2005).

de renovação não só dos indivíduos, mas, por sua perenidade, da própria sociedade que o celebra.

Baroja (1979) e Heers (1983) inscrevem o carnaval no calendário cristão, como um dos antípodas de uma concepção passional do tempo. O carnaval pontua um tempo de desfrute, exagero e sátira, oposto à Quaresma, tempo de contrição e penitência. Essa oposição subjaz ao imaginário das populações hodiernas que realizam tais festividades no Ocidente. Os autores criticam a atribuição de uma origem profana e de uma essência subversiva ao carnaval e a outras festividades como a dos Loucos, do Asno, dos Inocentes, definidas como festas da inversão da ordem por excelência. Quem assim procede, baseando-se unicamente no nome e sem relacioná-las ao contexto, desconhece suas filiações à religiosidade cristã. Com a transformação dos costumes, o carnaval assumiu aspectos mais políticos, de demonstração do poder, tornando-se mesmo elitista, atraindo concursos de cantores e de poetas, mostrando obras de arte efêmeras, como carros, indumentária e decoração5.

A perspectiva da origem do carnaval na Antigüidade enumera, entre os seus folguedos, o entrudo. Do vocábulo latino introitu, o entrudo quer dizer literalmente entrada. Em sociedades tipicamente agrárias, a festa está ligada à

entrada da primavera, ou a entrada do ano, que simboliza a renovação da

natureza. Representando a purificação e renovação, o entrudo se tornou uma festa nacional em Portugal, em que os indivíduos se mascaravam e aspergiam uns nos outros materiais como cinza e lama.

Desse modo, o carnaval pode ser visto como uma festa cujas origens situam-se para além da cultura cristã, como analisam Bakhtin e Fabre.

5 Para demonstrar como a historiografia contemporânea se equivoca ao opor as festividades

populares, nas quais havia divertimento desenfreado, alegria e deboche, às festas religiosas, Heers analisa as festas dos Loucos, do Asno, dos Inocentes e demonstra sua origem religiosa e as extravagâncias que elas comportavam. Isso porque a Igreja não conseguira extirpar os jogos e comemorações populares, ainda que tivesse intentado, como forma de combater seus próprios desregramentos internos. Analisando a festa dos Loucos, Heers enfatiza que ela não se inscreve ao longo dos séculos numa continuidade dentro do registro do burlesco. Apesar do nome, a sua origem não está na exaltação do louco nem da loucura. Trata-se de uma celebração litúrgica segundo as regras da Igreja. A historiografia recente se engana ao fazer derivações a partir do nome da festa e depois misturar diferentes festas a partir de alguns elementos em comum como as mascaradas. Apoiados em dados históricos, esses e outros autores situam as origens do carnaval no contexto de sociedades deístas, seja integrando o calendário cristão, no qual o carnaval constitui um dos pares reflexivos de uma concepção passional do tempo, seja dentro de uma tradição de resistência ao cristianismo, como proposto por Lombard-Jourdain (2005).

É possível constatar reminiscências pagãs no entrudo, em sua celebração das forças vitais e naturais do homem. No entanto, o carnaval que emerge na modernidade compõe uma das díades da concepção passional do tempo, subjacente à cultura cristã. Apesar do processo de dessacralização da natureza e desencantamento do mundo, a festa carnavalesca nas sociedades urbano-industriais acha-se inteiramente assimilada ideologicamente pelo cristianismo e por ele dominada. O seu caráter profano guarda sempre uma referência lógica (e ontológica) ao sagrado, a uma temporalidade circular e cósmica típica do mundo cristão que se distingue – mas também assimila – o tempo linear e cumulativo das sociedades secularizadas.