• Nenhum resultado encontrado

SAGRADO E PROFANO NA FESTA CARNAVALESCA

A distinção entre sagrado e profano, desenvolvida em referência à noção de tempo, nos parece fecunda em Eliade (1996). Para o filósofo romeno, o tempo sagrado nas religiões arcaicas se apresenta circular, reversível, recuperável, possibilitando a volta ao eterno, a um tempo mítico primordial. Daí a circularidade do tempo. A cada ano, o homem se renova à medida que reencontra a santidade original. O homem religioso não avança no tempo, mas se atualiza periodicamente em sua nostalgia ontológica, torna-se contemporâneo dos deuses no tempo mítico. No mundo sagrado, o homem vive

no tempo primordial santificado pela presença e atividades de deuses. O calendário sagrado regenera periodicamente o tempo, porque o faz coincidir com o tempo da origem, o tempo ‘forte’ e ‘puro’. A experiência religiosa da festa, quer dizer, a participação no sagrado, permite aos homens viver periodicamente na presença dos deuses [...]. Ao imitar seus deuses, o homem religioso passa a viver no Tempo da origem, o Tempo mítico. Em outras palavras, ‘sai’ da duração profana para reunir-se a um tempo ‘imóvel’, à ‘eternidade’ (ELIADE, 1996, p. 93).

No mundo profano do homem não-religioso das sociedades modernas, o tempo se apresenta linear, irrepetível e irrerversível, podendo-se dizer que ele decorre. Não se constitui num eterno presente indefinidamente recuperável. Essas características estão ligadas à finitude humana. Nos

diversos ritmos temporais da vida cotidiana, não há espaço para “mistérios” nem para o divino. Por isso, o tempo flui num presente histórico, com começo, meio e fim.

Mas a história humana não constitui um reduto exclusivo do profano. Para Eliade, o judaísmo inovou em relação às religiões arcaicas e paleorientais na ultrapassagem de um tempo cíclico. Cada manifestação de Jeová na história mostra que o tempo tem um começo e terá um fim. Uma etapa não é redutível à anterior. “A queda de Jerusalém exprime a cólera de Jeová contra seu povo, mas não é a mesma que Jeová exprimiria no momento da queda de Samaria” (ELIADE, 1996. p. 97). Nessa valorização do tempo histórico, o cristianismo foi ainda mais longe. Continua Eliade:

Visto que Deus encarnou, isto é, que assumiu uma existência humana historicamente condicionada, a história torna-se suscetível de ser santificada. O illud tempus evocado pelos evangelhos é um tempo histórico claramente delimitado – o tempo em que Pôncio Pilatos era governador da Judéia –, mas santificado pela presença de Cristo. Quando um cristão de nossos dias participa do tempo litúrgico, volta a unir-se illud tempus em que Jesus vivera, agonizara e ressucitara – mas já não se trata de um tempo mítico, mas do tempo em que Pôncio Pilatos governava a Judéia [...] . Em resumo, a história se revela como uma nova dimensão da presença de Deus no mundo. A História volta a ser a História sagrada – tal como foi concebida dentro de uma perspectiva mítica, nas religiões primitivas e arcaicas (ELIADE, 1996, p. 97-98).

Na medida em que o sagrado se revela na História, deixa de se estabelecer uma dualidade radical em relação ao profano. Ambos têm suas peculiaridades, mas também estabelecem interseções. Através de festas e ritos, um se interpenetra no outro. Na concepção durkheimeana, o profano (desregramento) se coloca como uma mera “válvula de escape” para o conservadorismo do mundo sagrado (ritualismo), ou seja, as atividades profanas, tecidas ao longo dos dias comuns, caracterizam-se pela observância de regras sociais, visando à reprodução social e não apenas se opõem àquelas, visto serem mesmo incompatíveis. Nesse esquema analítico, as festas assumem uma função de escape indispensável, por meio dos desregramentos a que dá origem, para a manutenção da vida social. A frase

latina smel in anno licet insanir (uma vez por ano é lícito endoidecer) exprime a idéia do profano como um desvio momentâneo e socialmente útil6.

A teorização de Durkheim precisa ser revista, ainda que continue válida em termos gerais. Isambert (1982), por exemplo, não foge à regra durkheimeana, mas amplia a noção de sagrado ao propor que as festas profanas, como o carnaval, caracterizam-se pelo princípio do sagrado de que falara Durkheim e têm função semelhante às comemorações religiosas. Assim, ainda que se diferenciando em sua fenomenologia, as festas representam uma ligação com o sagrado e desempenham a mesma função de liberação geral dos instintos após a fase das coerções e das regulamentações que as haviam precedido. Assim, o tempo da festa adquire também as qualidades do sagrado.

No entanto, Isambert parece extrapolar em suas idéias quando afirma que a racionalização da sociedade moderna, industrializada, esvazia a esfera do sagrado e conduz ao desaparecimento da festa carnavalesca, como já acontecera com tantas outras festas e costumes. É verdade que certas festas ligadas a rituais agrários tendem a ser infirmadas na medida em que avança a dessacralização da natureza nas sociedades modernas. Mas, aqui, trata-se apenas de uma tendência, haja vista a popularidade de muitos festejos tipicamente rurais no mundo urbano. Vejam-se também as festas nascidas em um contexto sócio-histórico específico, mas transmudadas e resistentes ao tempo7.

6 A analogia ao texto de Lin Yutang “se um ato de virtude não é virtude” leva a “três dias de

vício não é vício”, que foi usada para defender a realização do carnaval em Fortaleza em 1943 (O Povo, 18/02/1943).

7 No Ceará e demais estados do Nordeste do Brasil, as festas juninas pontuam o tempo da

colheita. Nascidas no ambiente rural, elas foram assimiladas pelo ambiente urbano e se inscrevem dentre as festas de maior popularidade nesta região. As festas se articulam, portanto, em torno de diferentes motivações, assumindo diversos aspectos simbólicos. Outras festas exaltam o grupo em si, baseando-se na comemoração de acontecimentos que marcaram o passado comum. Para ilustrar isso, ainda que mostrando a dissensão entre os grupos, temos o dia 25 de março que, no Ceará, marca a abolição dos escravos ocorrida em 1884, enquanto no Brasil a abolição é comemorada em 13 de maio, visto ter sido nesta data, no ano de 1888, assinada a Lei Áurea. Na década de 1980, o movimento negro contesta a data oficial e propõe o dia 20 de novembro, dia da morte do herói negro Zumbi, o Dia da Consciência Negra, como a data comemorativa da luta contra a escravidão no Brasil. Eis, portanto, três grupos, comemorando em diferentes datas os acontecimentos que lhes são mais significativos, consoante a interpretação de suas experiências históricas. Há também festividades que exaltam personagens tidos pelo grupo como fundadores ou benfeitores, figurando em primeira linha os heróis, míticos ou lendários, a que facilmente são associados os antepassados ou mesmo, por contigüidade, pessoas recentemente falecidas. No Ceará, o Padre Cícero Romão Batista é festejado por uma multidão de fiéis na segunda maior romaria do país, de 13 a 15 de

No caso específico do carnaval, não se pode falar em

desaparecimento ou decadência, mas em mudanças, ainda que problemáticas.

A questão se assemelha à permanência do sagrado nas sociedades (pós)modernas, apesar do progressivo domínio do profano com o processo de desencantamento do mundo e dessacralização da natureza. Eliade nos parece percuciente quando discorre sobre o assunto. Em princípio, ele constata que a modernidade forja um homem tipicamente arreligioso, que tende a negar toda transcendência e dogmas absolutos, colocando-se como sujeito e agente da história, aceitando, por isso mesmo, a relatividade da “realidade”. A negação de uma realidade absoluta ocorre em função do domínio progressivo da razão instrumental, da tecnificação da natureza e da sociedade, que coloca o homem como centro do mundo. Assim,

o homem faz-se a si próprio, e só consegue fazer-se completamente na medida que se dessacraliza e dessacraliza o mundo. O sagrado é obstáculo por excelência à sua liberdade. O homem só se tornará ele próprio quando estiver radicalmente desmistificado. Só será verdadeiramente livre quando tiver matado o último Deus (ELIADE, 1996, p. 165).

Por mais que o homem arreligioso da modernidade se “liberte” e se “purifique” das “supertições” de seus antepassados, continua Eliade, ele é um herdeiro da religiosidade antiga. Ele nega o passado, mas é um produto desse passado. Nesse jogo de negações e recusas, ele se mantém preso e assediado pelo mundo que tenta renegar. Inconscientemente, comporta-se de modo religioso. Isso ocorre não apenas na “mitologia camuflada e numerosos ritualismos degradados”, mas sobretudo “em festejos que acompanham o Ano Novo, a instalação de uma casa nova” ou ainda “júbilos que acompanham um casamento ou o nascimento de uma criança, a obtenção de um novo emprego ou uma ascensão social etc”. Em todos esses casos, constata-se a estrutura laicizada de um ritual de renovação na qual

a grande maioria dos “sem religião” não está, propriamente falando, livre dos comportamentos religiosos, das teologias e mitologias. Estão às vezes entulhados por todo um amontoado mágico-religioso, mas degradado até a caricatura e, por esta razão, dificilmente reconhecível. O processo de dessacralização da existência humana

setembro na cidade de Juazeiro do Norte. Essas cerimônias, que dizem respeito a todos os membros do grupo - tanto aos mortos quanto aos vivos, para que todos nelas tenham sua parte, podem ser graves ou burlescas, calmas ou descabeladas, ou começar num registro e terminar noutro, deslizando, em geral, do recolhimento para a exuberância.

atingiu muitas vezes formas híbridas de baixa magia e de religiosidade simiesca (ELIADE, 1996, p. 165).

Eliade não faz referência direta ao carnaval, mas esse festejo nos parece um caso exemplar da dialética de negação e permanência do sagrado na modernidade. Como analisamos, não se trata de uma festa laica que se põe em oposição inconciliável com festejos sagrados, como a Páscoa. Não por acaso, essas duas cerimônias estão entremeadas pela Quaresma. Os 40 dias que transcorrem da Quarta-Feira de Cinzas até domingo de Páscoa na tradição cristã constitui uma quarentena de expiação dos pecados de penitência. Do carnaval à Páscoa, há descontinuidades e rupturas, mas no interior de um processo dialético em que cabe também continuidade e reiteração.

Desse modo, parece-nos simplista e arbitrário explicar a festa carnavalesca a partir de um rígido dualismo sagrado/profano. Opor radicalmente um ao outro constitui até um contra-senso histórico, haja vista as raízes medievais (cristãs) do carnaval moderno. Essa nuança não deixa de se colocar no cancioneiro popular, que diz “o Carnaval é invenção do Diabo que Deus abençoou".8 Para Heers (1983) e Rodrigues (1999), a convergência entre o sagrado e o profano é intrínseca à experiência cotidiana. Os autores negam a oposição e a irredutibilidade entre o sagrado e o profano, bem como a diferenciação entre os dois com base na forma dos dois fenômenos. Para eles, essas duas ordens se mesclam e se alimentam reciprocamente, muito embora reconheçam e relatem os esforços empreendidos pelo clero romano na Idade Média para apartar essas duas ordens de fatos, o que vingou em grande parte, fazendo com que predominasse a visão pagã, para uns, demoníaca, das festas não-confessionais, como o carnaval.

O excurso histórico acerca das origens do carnaval e de sua função ritual leva-nos a negar a idéia ou referência a um festejo único, vindo da Antigüidade e atualizado em sua origem profana ou pagã. Pelo menos no que se refere ao carnaval brasileiro, sua herança está profundamente enraizada na cultura cristã medieval. É este carnaval oriundo da península ibérica, de tradição católica, autoritária e antiliberal que tomamos como referência no estabelecimento do quadro categorial para o presente trabalho.