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1.2 UM CARNAVALESCO CERCADO POR UMA SOCIEDADE HÍBRIDA E URBANA

1.2.5 Carnavalesco: um tradutor poliglota

A realidade do homem urbano isolado e individualizado não existe. O meio urbano apresenta uma complexidade que se reflete no ambiente e nas pessoas que fazem parte dele e se estende àquelas que atuam no carnaval.

O carnavalesco se torna muitas vezes, o protagonista dessa rede social. Ele capta as diversas influências e retransmite, através de sua criação, essa realidade. Mesmo envolvido e rodeado pelo coletivo, em alguns momentos de seu processo de criação, o profissional, aparentemente, permanece só. Lotman (1996, p.66, tradução nossa) reflete sobre tal questão. Para o autor, “são evidentes as dificuldades sócio-comunicativas ligadas à individualização das estruturas semióticas internas da pessoa isolada”.

No processo de criação, ocorre um conjunto complexo de mensagens que atua na consciência do criador. Ao recebê-las, o receptor pode codificá-las de forma diferente. No

desenvolvimento cultural, a estrutura semiótica das mensagens, quando apresentadas, é decifrada de forma diferenciada. Pode-se ter entendimento unívoco, mas há grandes riscos de ambigüidade. São as imperfeições técnicas do sistema. Para Lotman (1996, p.67, tradução nossa)

[...] a transmissão da mensagem não é a única função do mecanismo comunicativo, nem do mecanismo cultural em seu conjunto. Estes, ao mesmo tempo, realizam uma produção de novas mensagens, isto é, atuam ao mesmo tempo o papel da consciência criadora do indivíduo pensante.

A gama de pessoas que convivem com Diniz, com diversas narrações e ocupando os diferentes espaços, contribui para uma contínua interação que influencia na tradução do carnavalesco em sua criação. As suas leituras não são unívocas, o que leva a uma interpretação intersemiótica no seu resultado. Toda a complexidade comunicativa, vivida e colhida pelo profissional, passa a ser uma alavanca para a futura expressão de seus projetos, que serão singulares.

[...] ante à coletividade humana, onde cada unidade separada tem uma tendência, ao converter-se em um mundo pessoal independente e irrepetível que ao mesmo tempo se inserta em uma hierarquia de construções de níveis mais altos, formando em cada um deles uma pessoa semiótica grupal [...]” (ibid, p.69)

Logo, o carnaval, por ser uma festa cultural, funciona dessa forma. Raul Diniz não cria num sistema isolado e estático, e sim, na efervescência dos intercâmbios. Ele absorve informações complexas e heterogêneas e as transforma em signos, que muitas vezes, de forma aparentemente homogênea, comunicam todo o leque de sua experiência.

O carnavalesco, por partilhar do contato com o outro, deixa de ser ele mesmo. Existirá o processo de dialética e intercâmbio, com o incremento da cultura, para dar forma às suas experiências. Segundo Lotman (ibid, p. 75), é quando ocorre “[...] o papel do intercâmbio de valores culturais”. Diniz, como parte desse processo, se auto-organiza e se descreve por si mesmo. Suas criações são resultados de uma metalinguagem codificada e descrita no plano semiótico. O criador carrega memórias culturais coletivas, que são enriquecidas e atualizadas por ele. São integrações e tendências que convergem textos em contextos.

O resultado do trabalho do carnavalesco, desenvolvido na estrutura para um desfile de escola de samba, é fruto da leitura da cultura à sua volta e de sua história. Os textos,

absorvidos por ele, como imagens, audiovisuais, corporais, festas ou costumes, formam combinações semióticas que geram uma só representação. O carnaval, como cultura, tem um princípio poliglota. Segundo Lotman (1996, p.67, tradução nossa) “a cultura é um princípio poliglota, e seus textos sempre se realizam em um espaço de pelo menos dois sistemas semióticos”. Ainda neste sentido, o autor esclarece a questão da transformação do texto:

[...] o texto se apresenta diante de nós não como uma realização de uma mensagem de uma linguagem qualquer, mas como um complexo dispositivo que guarda variados códigos, capaz de transformar nas mensagens recebidas, um gerador informal que possui traços de uma pessoa com um intelecto altamente desenvolvido. (Ibid, p.82)

O ser humano se desenvolve e é ligado a um espaço, e cada um é ocupado por tipos diferentes de pessoas e características. Rituais do cotidiano marcam esses locais, e quando vivenciados por outros, eles se adaptam às novas memórias ali desenvolvidas. Essa relação cria um jogo intersemiótico, com constantes diálogos estruturais e quando desenvolvidas no carnaval, o carnavalesco constantemente as presencia.

II CAPÍTULO

DO ENREDO AO BARRACÃO

Para se colocar uma escola na rua, existem muitas etapas de trabalho; a criação de figurinos, a pesquisa de materiais para a confecção da fantasia, os trabalhos dentro de um barracão com esculturas, serralheria, marcenaria, decoração dos carros alegóricos enfim, todas as atribuições para se colocar uma escola na avenida, sem contar toda a psicologia que se tem que usar para lidar com os componentes, dirigentes, destaques e o pessoal que trabalha no barracão.

Tudo isso, com as chamadas adaptações no trabalho, mudanças nos materiais de decoração é uma constante para se abaixar o custo do carnaval, é um problema que existe em muitas escolas de samba principalmente por não se ter um planejamento, e de não se pensar muito nas conseqüências que a escolha de um mau enredo pode trazer. Quando se pensa em um novo trabalho, devemos imaginar que ele deve durar um ano e também se preocupar como devemos conduzir os trabalhos de uma forma que toda a escola possa se envolver com a idéia proposta.23

Através desse texto, podemos ter noção de parte das muitas funções do trabalho de um carnavalesco e o seu processo de criação para um desfile de uma escola de samba.

O primeiro aspecto a ser decidido pela estrutura administrativa de uma escola, na logística que cerca a organização e a criação de um desfile, é a escolha do tema de enredo que será desenvolvido. Posta a importância desta opção, o compromisso do carnavalesco é dar continuidade às etapas seguintes, para produzir um carnaval que narre o tema escolhido. Soares (1999, p. 144) expõe:

Podemos inferir que a importância de um enredo esteja em satisfazer os critérios competitivos do desfile, ou seja, existe a preocupação do carnavalesco em fazer com que as alegorias e fantasias sejam capazes de traduzir fielmente o tema escolhido. Portanto, quando o carnavalesco concebe o enredo, uma de suas maiores preocupações é atender aos requisitos exigidos pelos jurados, que tendo em mãos a sinopse e o roteiro, com o nome e o significado de cada carro alegórico, terão a possibilidade de perceber a complexidade do desfile

A descrição do tema pode ser sugerida pelo carnavalesco ou ser uma indicação da diretoria da escola. Em ambos os casos, há o interesse e a procura em fechar contrato com patrocinadores, dos quais depende o apoio financeiro necessa’rio para garantir uma maior estrutura para a escola desenvolver de forma viável o desfile. Com a concretização desse elo, o enredo passa a ser desenvolvido em função desse contrato firmado. Caso isso não ocorra, para não gerar futuros problemas em relação a prazos, o tema é decidido e a equipe de marketing da escola, junto com o presidente e o próprio carnavalesco, continuam a procurar patrocinadores que vinculem sua marca ao tema já escolhido. Diniz ressalta a importância da escolha do enredo:

[...] quando uma escola não tem idéias, não tem enredo, ela fica sem direção. A partir do momento que se dá esse ponto de partida, se esmiúça um enredo, uma história, que é passada para o compositor, chefes de alas, etc..Todo mundo passa a ter idéia formada para vir junto [...] é este o momento da materialização do enredo.24

O chamado “enredo” deve servir a quem vê a escola apenas como fonte de referência para a compreensão do que ela pretende comunicar. É a base para o desenvolvimento e a expressão de signos, que serão construídos e moldados em forma narrativa, base para a produção de um espetáculo, que será julgado. Para critérios de julgamento, não se concebe bons ou maus enredos, e sim, temas bem ou mal explorados.

O carnavalesco é cobrado por sua capacidade de explorar e inovar o enredo de forma que o traduza em uma grande representação. De acordo com as possibilidades que a escola irá proporcionar, a dificuldade pode ser maior ou menor em alcançar este objetivo. Um aspecto que interfere, de forma significativa, são os vínculos das escolas com os possíveis patrocinadores, que podem gerar temas desafiadores para serem desenvolvidos em um desfile de escola de samba.

A escolha do enredo é apenas uma entre os vários momentos do processo que acompanha o desenvolvimento do trabalho e criação de um carnavalesco. Essa decisão, junto aos membros da Escola de Samba, na qual o profissional atua, vem cercada de tendências, incertezas e acasos. Compreende um conceito de busca, com interferências coletivas, que interferem e transformam o movimento de um projeto. Uma realidade, entre várias outras, que

enredam a montagem de um desfile, e que podemos entender melhor com a ajuda da semiótica.

2.1 SINOPSE – PRIMEIRO DOCUMENTO CONCRETO DAS