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CARPINTEIROS E PEDREIROS EM MARIANA NO SÉCULO XVIII:

HIERARQUIAS E TRABALHO

Fabrício Luiz Pereira1 No mundo moderno europeu, ainda moldado por heranças medie- vais, os ofi ciais mecânicos possuíam uma representatividade política limitada, geralmente fi cando aos encargos das corporações de ofício, disseminadas em cidades importantes. Na América portuguesa, com uma breve exceção ocorrida em Salvador na virada dos Seiscentos para o Setecentos, não houve agremiações desse porte.2 Nesse sentido, a

representação política de artífi ces e artistas era delimitada pelo corpo camarário das vilas e cidades.

No jogo de hierarquias sociais de cunho excludente, típicos das socie- dades de Antigo Regime, a casa de vereança estabelecia, através da norma, maneiras de eliminar privilégios aos artífi ces de seus termos. Na Vila de Nossa Senhora do Ribeirão do Carmo, por exemplo, no ano de 1719, os ofi ciais da Câmara redigiram um “Registro de Privilégios de Nobreza” desti- nado ao Rei, solicitando prerrogativas especiais para o caso de cometerem crimes, além de garantirem o direito do uso de armas e cavalos, entre ou- tras questões. No fi m do Registro, os camaristas ressaltavam;

E será que justamente se concedam estes privilégios, aos

1 Mestre em História pelo PPGHIS da Universidade Federal de Ouro Preto. Esse texto é uma

versão revisada do capítulo “Arrematantes, mestres, jornaleiros e escravos: a dinâmica das obras e o universo dos ofi ciais mecânicos na cidade de Mariana” In. PEREIRA, Fabrício Luiz. “Offi cios

necessários para a vida humana”: a inserção social dos ofi ciais da construção em Mariana e seu ter-

mo (1730 – 1808). Universidade Federal de Ouro Preto. Instituto de Ciências Humanas e Sociais. Departamento de História. Programa de Pós-graduação em História, 2014. Disponível em: http:// www.repositorio.ufop.br

2 Conferir: FLEXOR, Maria Helena Ochi. Mobiliário Bahiano. Brasília, DF: IPHAN/ Programa Mo-

[que] logrem com merecimento as pessoas que servirem protestam, a que não entrem a servir os ditos lugares, se não pessoas e homens bons, livres de notas, e vis condi- ções, e que jamais servissem ofícios mecânicos, nem fi lhos de tais.3

Desse modo, seguindo uma prática recorrente a todo o reino, inclu- sive disposto nas Ordenações Filipinas e Manuelinas, os privilégios de nobreza não deveriam recair aos mecânicos, tampouco aos seus herdei- ros, o que de certo favorecia a manutenção de uma ordem social, pau- tada no modelo de uma monarquia polissional.4 Nessa sociedade, “o

humilde deveria ser mantido na posição subordinada e de tutela que lhe corresponde, designadamente na ordem e governo políticos”.5

As sociedades de Antigo Regime na Europa, durante a Idade Moder- na, ainda que não conformassem uma uniformidade, possuíam certos aspectos em comum. Algumas práticas parecem cruzar entre os vários Estados em formação, uma delas é a divisão de ordens sociais resguarda- das e delimitadas por códigos jurídicos. Podemos dividi-las de maneira didática em três principais ordens que possuíam funções específi cas: ao clero cabia a oração, à nobreza proteger e combater e, ao terceiro estado, o trabalho. No entanto, no interior de cada estado haveria hierarquias que lhes eram próprias. Dessa forma, entre um bispo e um padre, em- bora religiosos, havia uma distinção própria da ordem religiosa. Já no interior do terceiro estado ocorria, por exemplo, a diferenciação entre artes liberais e artes mecânicas.6

3 AHCSM: I livro de Registro da Câmara Municipal de Mariana, folhas: 171 – 171v.

4 De acordo com António Manuel Hespanha, o caráter “descerebrado”, das monarquias modernas

e o seu modelo polissinodal era mantido através de um sistema de imensas relações de pactos, que permitiam a manutenção da ordem social. O rei aparecia como uma cabeça coordenando os diferentes corpos sociais, no entanto não se tratava de uma cabeça burocrática e absoluta, e sim delegadora de justiça e de mercês. HESPANHA, António Manuel. Imbecilitas. As bem-aventuranças da inferioridade nas sociedades de Antigo Regime. São Paulo: Annablume, 2010.

5 HESPANHA, António Manuel. Op. Cit., p. 56.

6 René Rémond apresenta um panorama sobre as sociedades de Antigo Regime europeias. Embora

o próprio autor faça questão de destacar as múltiplas sociedades que estão conformando os Estados Modernos, ele consegue perceber elementos que são comuns a esses espaços. Dentre essas catego- rias análogas, a condição jurídica de cada corpo social parece ser a mais marcante. Não é uma socie- dade imóvel, existem as possibilidades de ascensão social, mas o ordenamento natural e divino cria

Nesse sentido, conforme atesta Giovani Levi, era no interior de cada corpo social que ocorria a possibilidade de distinção social, ou ainda:

Numa sociedade fragmentada em corpos, os confl itos e as solidariedades frequentemente ocorriam entre iguais; es- tes competiam no interior de um segmento dado que se caracterizava pela existência de formas de consumo orga- nizadas, hierarquizadas e intensamente investidas de va- lores simbólicos; que constituía também uma ligação de solidariedade diante dos outros corpos ou estados. Raris- simamente pensava-se e agia-se em termos de uma trans- formação da estrutura social como um todo. [...] Para usar uma imagem, um mendigo aspirava antes a tornar-se o rei dos mendigos do que um comerciante pobre.7

Entre os ofícios mecânicos, as diferentes formas de hierarquização também se faziam presentes, assim, teoricamente um artesão almejava mais ser mestre de seu ofício do que passar a existência como simples jornaleiro. Entretanto, na vida cotidiana, fatores externos ao mundo do trabalho também colaboravam para a distinção social desses mecânicos. O objetivo deste artigo é discutir as hierarquizações presentes no universo do trabalho mecânico durante o período colonial. O espaço privilegiado para nossas análises foi a cidade de Mariana e seu Termo, e o recorte temporal buscará compreender a segunda metade do Sete- centos, momento de maior expansão de obras públicas e eclesiásticas do município. As interpretações apreendidas foram resultado de ampla consulta nos arquivos históricos da cidade, dessa forma, utilizamos o índice de obras públicas e cartas de exame do Arquivo Histórico da Câ- mara Municipal de Mariana (AHCMM) e fontes cartoriais (inventários, testamentos e ações cíveis) do Arquivo Histórico da Casa Setecentista de Mariana (AHCSM).

poucas condições para que um indivíduo passe de um corpo social para outro. RÉMOND, René. El

Antiguo Régimen y la revolución 1750-1815. Barcelona, Vicens Bolsillo, 1983.

7 LEVI, Giovani. Comportamentos, recursos, processos: antes da ‘revolução’ do consumo. In: RE-