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4.1 RELATOS DE MEMÓRIAS EDUCATIVAS

4.2.2 Cartas Endereçadas a Instâncias Públicas

4.2.2.1 Carta de JOHN SMITH (PLE básico 2009.2)

Gostaríamos agora de apresentar nossas considerações acerca do texto produzido por outro estudante também tratado pelo pseudônimo John Smith. Sua produção foi desenvolvida

em uma situação um pouco diferente da dos demais estudantes de nível básico, uma vez que obteve aulas particulares. Contudo, John foi igualmente orientado com a mesma preocupação de levá-lo a produzir textos situados e representativos de um algum gênero de texto. Conforme apontado na metodologia, a partir de uma situação apresentada pelo próprio estudante, acerca do problema da falta de assistência relativa à coleta seletiva de lixo em seu bairro, ao finalizar uma das aulas, o professor propôs que o estudante descobrisse, na internet, quem seria o responsável por tal coleta na cidade de João Pessoa, começando, por exemplo, pelo site da Prefeitura dessa cidade. Em seguida, deveria encaminhar, por correio eletrônico, uma mensagem expondo essa situação e sugerindo esse tipo de coleta em seu bairro.

É interessante esclarecer que, desde o início do processo, soubemos que o estudante era casado com uma brasileira; no entanto, comunicavam-se apenas na Língua Inglesa. Isso ficou evidente, logo nas primeiras aulas, quando chegou a demonstrar certa dificuldade, para compreender o que era apresentado em Língua Portuguesa, pelo professor. Além disso, em diferentes momentos, o estudante demonstrou ter bastante conhecimento relacionado a computadores e ao mundo virtual, o que certamente lhe ajudou, no momento em que buscara obter informações acerca de quem seria responsável pela coleta seletiva, ao navegar pelo site da Prefeitura Municipal de João Pessoa. Assim, esse exemplo de atividade, respaldada em uma situação real, é bastante significativo, para ilustrar os desdobramentos de nossas práticas de letramento. Também serviu para realçar as habilidades do estudante já bem desenvolvidas em sua língua materna, sendo que, dessa vez, nessa nova língua, a LP, o que só foi possível, por ter feito parte de um processo que contemplasse práticas de letramento. Assim, o texto de John Smith pode ser considerado como representativo do gênero epistolar, nesse caso, uma carta pública, ou ainda, argumentativa, conforme Kleiman (2007, p. 5), por meio da qual expõe seus argumentos, a fim de levar seu interlocutor a acatar sua proposta. Em outros termos, reivindica algo. Contudo, é extremamente significativa a maneira como faz a sua solicitação: o estudante, fazendo-se valer de estratégias argumentativas, não apresenta sua reivindicação, solicitando, ou reclamando, mas sim, sugerindo, aconselhando. Ademais, mesmo ainda possuindo pouco conhecimento da LP, soube levar em conta que, para quem dirigiria seu discurso, teria de tomar certo cuidado com as palavras. Ao iniciar seu texto, habilmente, soube se apresentar, esclarecendo a que nacionalidade pertencia e pedindo desculpas por eventuais desvios da LP; o que certamente contribuiria para, psicologicamente, conquistar a simpatia daquele que viria a ler a sua carta.

Pela própria natureza das cartas formais, nas quais acreditamos haver uma maior tendência para a exposição que para a narração, consideramos que o texto de John é constituído predominantemente pelo discurso interativo (discours en situation). O caráter de conjunção está marcado pela grande predominância de verbos no presente do indicativo contidos, ao longo do texto. O enunciador-produtor do texto também chega a fazer uso de locuções verbais ora nos remetendo à ideia de algo que costuma fazer rotineiramente: “tenho [que] levar”, ora nos projetando para o futuro: “vão participar”, “vai ser [...]”, ou ainda, transmitindo uma ideia de futuro hipotético: a locução “pode ter” poderia mesmo ter sido escrita no futuro do pretérito. Essa mesma ideia hipotética pode ser vislumbrada no uso do verbo “fornecer”, contido no terceiro parágrafo, o qual nos leva a perceber um uso ainda “imaturo” do imperfeito do subjuntivo. Há também o uso de locução, remetendo-nos a uma ideia de continuidade: “está tornando”, contida no segundo parágrafo. Contudo, mesmo que nos projetem para o futuro, tais usos estão interligados ao presente, que marca o momento em que o discurso fora desenvolvido pelo estudante.

Expressões referindo-se ao enunciador-produtor, a exemplo do nome “John Smith” e de pronomes de primeira pessoa do singular “Eu”, “me”, “meu [minha]”, ao interlocutor, a exemplo dos pronomes de tratamento “Senhor” e “você”, e ao espaço-tempo, a exemplo de

“Cabo Branco”, evidenciam o caráter de implicação. Além disso, a presença de verbos no modo imperativo “desculpe-me” e “envia” acentua ainda mais o nível de interatividade do texto. Vale ressaltar que o uso do referido pronome de tratamento “Senhor”, da justificativa apresentada por meio do verbo “desculpar”, da locução “queria escrever”, que facilmente nos remete ao uso polido “gostaria de” e o agradecimento ampliado, contendo o termo “consideração”, demonstram o nível de formalidade, assim como de persuasão e preparação para o assunto que será abordado, tendo em vista o interlocutor que o estudante tinha em mente.

Os impactos ou implicações de uma prática de letramento respaldada, sobretudo, em atividades que contemplem situações reais são, portanto, bastante visíveis na carta de John. Respaldado em sua visão de mundo, mas certamente também no que coletivamente costumamos considerar, o estudante faz-se valer de conhecimentos acerca do meio ambiente para sensibilizar o seu interlocutor quanto à importância de promover a coleta seletiva, no bairro de Cabo Branco, onde então residia. Ao fazer isso, modaliza sua fala, vinculando seu enunciado ao mundo das convenções sociais empíricas, representado pela modalização

pragmática: “Você sabe o mundo está tornando mais consciente de proteger o meio

ambiente”, embora também deixe subjacente, o vínculo ao mundo objetivo, representado pela modalização lógica. Essa mesma sobreposição de modalizações também pode ser percebida nos enunciados seguintes: “uma maneira é reciclar”, “Meu [minha] sugestão é a prefeitura fornece este serviço em Cabo Branco”, “Pode ter a caminhões de lixo segurar a reciclagem também”, em que não chega a reclamar; muito pelo contrário, apresenta uma sugestão, evidenciando a modalização lógica, mas também respaldada em um conhecimento empírico, coletivo, social. Note-se o uso do verbo “segurar”, uma provável interferência do Inglês (to hold). O enunciado poderia então ser interpretado da seguinte maneira: “Poderia ter caminhões para apanhar/pegar/coletar o lixo reciclado também.”.

Alguns enunciados vinculados ao mundo subjetivo, por sua vez, chama-nos bastante a atenção. Para o estudante, a reciclagem é “uma questão importante”, conforme deixa claro, logo no primeiro parágrafo (Evidentemente, tal apreciação também estaria respaldada em valores coletivos). Mais adiante, apresenta uma dificuldade enfrentada para realizar tal prática: “Eu moro em Cabo Branco e tento reciclar, mas é difícil porque eu tenho levar meus recicláveis para supermercado Hyper.”. E é impressionante o jogo psicológico que imprime ao seu discurso, por exemplo, ao enunciar “o mundo está tornando mais consciente”, provavelmente tentando levar seu interlocutor a não querer ficar de fora desse grupo de pessoas que tem despertado para tal consciência. Além disso, o enunciado utilizado para

encerrar o corpo da carta “Vai ser ótimo”, contendo uma ideia de futuro, não só evidencia sua apreciação acerca da prática de reciclagem, quando esta viesse a ser executada, mas, evidenciando uma modalização lógica, reforça ainda mais a ideia de que será implementada, levando o interlocutor a tomar uma atitude quanto à questão abordada.

Ao subordinar a ação dos moradores do Cabo Branco à atitude esperada de seu interlocutor “Envia um aviso para os residentes sobre este serviço e eu eles vão participar”, o enunciador deixa evidentes certas atribuições de responsabilidade e capacidades de ação, evidenciando a modalização pragmática. E, apesar de fazer uso do modo imperativo, equilibra-o ao modalizar sua maneira de se reportar ao seu interlocutor, por meio de expressões pragmaticamente tidas como adequadas para situações formais, em que não se tem muita intimidade com a pessoa para quem desejamos dirigir nossas palavras, ou mesmo, por essa pessoa ocupar certa posição social, que lhe imprime certa autoridade. As expressões “Senhor Secretário” e “você” (ao invés de “tu”, que é mais informal e utilizado apenas em algumas regiões do país), servem como exemplo, evidenciando, portanto, um conhecimento pragmático, representado pela modalização pragmática. O modo como encerra sua carta, também evidencia certo conhecimento respaldado em práticas sociais empíricas, pois que acaba recorrendo a uma forma mais polida de agradecimento, imprimindo em seu enunciado um grau ainda maior de respeitabilidade, e isso é extremamente significativo, vindo de um estudante de nível básico, quem, por sinal, veio a receber uma resposta (de seu interlocutor real)34:

34 Os dados referentes aos endereços de correio eletrônico e nomes dos produtores dos textos apresentados foram alterados, tendo em vista a preservação das faces. Tais textos são reproduções realizadas, a partir dos originais.

O texto de John é um exemplo de produção autêntica desenvolvida a partir de uma situação real (a exemplo do que também ocorreu com a estudante Nyarwaya, conforme veremos mais adiante). Isso é bastante significativo, tendo em vista que a situação narrada pelo estudante serviu de motivação para o desenvolvimento de seu texto. É bastante útil pensar na sala de aula como um lugar para se refletir sobre diferentes gêneros de texto, suas funções sociais, temas possíveis de serem abordados, a depender do gênero etc., de modo que o estudante venha a saber como utilizá-los quando necessário. Por outro lado, esses gêneros e suas especificidades são mais facilmente assimilados quando elaborados para de fato serem utilizados em situações reais, mesmo quando essas produções são desenvolvidas na sala de aula. A responsividade é uma das características de qualquer texto que procura dialogar com seu interlocutor. É o que podemos perceber no texto de John que, naturalmente, chegou a receber uma resposta (de seu interlocutor real).

4.2.2.2 Carta de ALEXANDRA MORA (PLE avançado 2009.1)

A carta de Alexandra, destinada à uma instância pública, também foi elaborada, tendo em vista sua preparação para o Exame Celpe-Bras. Nesse caso, a estudante realizou uma das atividades de leitura e produção escrita de uma das aplicações anteriores do Exame (25 de abril de 2007), conforme mencionado na metodologia. Apenas para relembrar, a atividade consistiu em ler uma crônica intitulada CARTAS, escrita por um jornalista do Jornal Estado de Minas, e produzir uma carta, respondendo a pergunta do autor “Até quando esse tipo de documento perdurará?”, na qual deveria apresentar sua opinião. A exemplo das cartas anteriormente analisadas, o texto produzido por Alexandra é constituído predominantemente pelo discurso interativo (discours en situation). Apesar de às vezes fazer usos de expressões que nos transmitem uma ideia de futuro, a exemplo do futuro perifrástico com o verbo “ir”, seguido por verbo(s) no infinitivo: “vamos precisar escrever”, que está contido no segundo parágrafo, e de expressões que, mesmo no presente, transmitem-nos uma ideia de passado, a exemplo do verbo “ver”, contido no segundo parágrafo no enunciado “como se estivéssemos esperando por essa pessoa que há muito tempo não vemos [víamos]”, tais passagens, características do Mundo da ordem do Narrar, estão diretamente relacionadas ao momento de produção da carta, marcada pelos usos no presente do indicativo, evidenciando, assim, o caráter de conjunção do mundo da ordem do EXPOR, criado no texto pelo enunciador que, nesse caso, também é o produtor do texto.

O caráter de implicação não está evidenciado apenas por meio de expressões que nos remetem ao enunciador-produtor do texto, a exemplo de “Alexandra Mora”, “Eu”, e verbos na primeira pessoa do singular, contidos em enunciados, a exemplo de “queria dizer-lhe”, “gostei muito da sua crônica”, “Achei muito interessante a pergunta” e “Eu penso que”. A implicação também pode ser constatada nas expressões que nos remetem ao interlocutor: “Fernando Brant” e “senhor”, e ao espaço-tempo da exposição: “João Pessoa” e “25 de fevereiro de 2009”. Além disso, ter elaborado a carta, a partir de uma pergunta lançada por um jornalista, evidencia um alto grau de interatividade, mesmo tendo em mente que não a enviaria de fato. Contudo, vamos supor que a carta tivesse sido enviada para a redação do Jornal Estado de Minas e que tivesse sido publicada na seção destinada às cartas dos leitores. Por um lado, a carta, embora destinada ao jornalista Fernando Brant, seria disponibilizada a um público mais amplo, ou seja, aos demais leitores desse jornal. Por outro lado, mesmo que muitos viessem a ler a sua carta, o uso do pronome de tratamento “Senhor” e da saudação final “Atenciosamente” evidenciariam certo vínculo ao mundo respaldado nas práticas

sociais empíricas, representado pela modalização pragmática, transmitindo, assim, respeito, o que seria extremamente adequado, tendo em vista o seu principal interlocutor.

As considerações realizadas, no primeiro parágrafo, evidenciam a vinculação dos enunciados ao mundo subjetivo, representado pela modalização apreciativa: “gostei muito da sua crônica”; “Achei muito interessante a pergunta” e em “Essa pergunta é um pouco difícil de responder.”. Este último enunciado, por sinal, também deixa subjacente certo conhecimento empírico, representado pela modalização pragmática. A expressão “Primeiro que tudo”, por sua vez, marca certa preocupação, por parte de Alexandra, em utilizar uma linguagem mais elaborada, tendo em vista o seu interlocutor, evidenciando outra modalização

pragmática. Ela também poderia ter utilizado no lugar desse marcador discursivo, outros, a

exemplo de “Primeiramente” ou “Antes de mais nada”. Isso é bastante significativo, pois demonstra certo poder de argumentação, pois que inicia sua carta, retomando algo lido anteriormente e apresentando algumas apreciações, antes mesmo de aprofundar o assunto em questão.

É difícil imaginarmos nos tempos atuais, pessoas elaborando mais cartas à mão, que textos (ainda que cartas), a serem enviados por meios eletrônicos, contudo, é muito bonito, e até mesmo poético (“enquanto existam pessoas apaixonadas”), o modo como chega a defender o uso de tal gênero: “A carta tem um charme que a tecnologia (o e-mail) não tem”, “A espera de uma carta e receber uma carta é quase como se estivessemos esperando por essa pessoa que há muito tempo não vemos”, “E na hora de ler essa carta é como se estivessemos escutando sua voz na nossa cabeça [...]”. Esses enunciados também evidenciam certo vínculo ao mundo subjetivo. E, ainda que pudéssemos questioná-la quanto ao fato de não poder afirmar que as “cartas sempre serão escritas.”, habilmente, esclarece que: “pelo menos na minha vida a carta está e sempre estará presente.”, vinculando esses enunciados não só ao mundo subjetivo, mas deixando subjacente certo vínculo ao mundo objetivo, pois que tende a levar o interlocutor a acatar os enunciados, a partir de sua condição de verdade.

Não fosse pelo uso do enunciado “já que em algum momento nas nossas vidas vamos precisar escrever alguma”, contido no segundo parágrafo, diríamos que o enunciado anterior “todos devemos saber escrever uma carta” evidenciaria um vínculo muito mais forte ao mundo social (regras, deveres, condutas), representado pela modalização deôntica, que ao mundo das práticas sociais empíricas (atribuição de responsabilidades, razão, capacidades de ação, intenção etc.), representado pela modalização pragmática. O fato de “em algum momento virmos a precisar escrever uma carta”, por sinal, pode ser tomado como a razão ou motivo pelo qual “todos deveriam saber como elaborar um texto representativo de tal gênero”. Do mesmo modo, o enunciado “O e-mail e a tecnologia podem ser usados para resolver problemas que não podem esperar” demonstra um forte vínculo ao mundo do senso

comum, embora também deixe subjacente certo vínculo ao mundo objetivo, representado pela modalização lógica, por apresentar o conteúdo temático, a partir de sua condição de verdade.

É interessante ressaltar que, no caso de Alexandra, o professor teve mais oportunidades de desenvolver práticas de reescrita. Talvez devido às orientações que obteve, a partir das produções anteriores, a exemplo da carta informal, cujas análises apresentamos anteriormente, ou talvez pelo fato de a própria natureza da situação formal envolver mais responsabilidade, a estudante chegou a fazer uso de expressões como local e data, ao elaborar esta carta pública. Isso poderia ser tomado como um indício de que seus textos, de algum modo, também estariam evidenciando os desdobramentos de nossas práticas de letramento. Esteticamente, a carta informal demonstrou uma configuração mais próxima do que se costuma realizar em meios eletrônicos. Muitos desses estudantes estão mais acostumados a se comunicar por meios eletrônicos, embora alguns, eventualmente, chegam a sofrer certa dificuldade para acessar tais meios quando se encontrar fora de seu país. Não saberíamos dizer qual a situação de Alexandra a esse respeito. Mas o fato é que, comparando suas duas cartas, é inegável que esta segunda não tenha ficado esteticamente melhor, tendo se preocupado, inclusive, em dar um recuo, em relação à margem, antes de iniciar os parágrafos. Não que fossem essenciais, mas, oportunamente, essas questões também eram colocadas para os estudantes. Ademais, sua grafia certamente é fruto de uma habilidade já bem desenvolvida em sua língua materna, mas não descartamos a possibilidade de essa habilidade ter sido potencializada, ao desenvolver textos em LP, pelo simples fato de estar vivenciando uma situação completamente nova, o que por vezes, acaba se configurando em um desafio e algo extremamente motivador, levando alguns estudantes a “capricharem” na escrita, nessa outra cultura.