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4.1 RELATOS DE MEMÓRIAS EDUCATIVAS

4.2.1 Cartas Endereçadas a Instâncias Pessoais

4.2.1.1 Carta de SAFARI (PLE básico 2008.1)

A carta pessoal de Safari, conforme mencionamos no capítulo metodológico, foi elaborada, a partir de uma tarefa do Celpe-Bras, relacionada a uma reportagem televisiva sobre produtos voltados para a terceira idade, tema bastante pertinente, por sinal, ainda mais se levarmos em conta a reportagem exibida recentemente no Jornal Nacional, da Rede Globo,

em 29/04/2011, acerca do Censo de 2010, o qual demonstrou que a população brasileira tem envelhecido.33 Isso nos leva a ter uma noção da seriedade com que são escolhidos os temas e com que são elaboradas as tarefas do Exame Celpe-Bras.

33 Reportagem intitulada “Pesquisa mostra que a população brasileira está envelhecendo”. Edição do dia 29/04/2011 do Jornal Nacional da Rede Globo. Disponível em: <http://g1.globo.com/jornal- nacional/noticia/2011/04/pesquisa-mostra-que-populacao-brasileira-esta-envelhecendo.html>. Acesso em: 01 de maio de 2011.

Voltando-nos para o texto de Safari, diríamos que sua carta é constituída predominantemente por segmentos do discurso interativo (discours en situation). Diferentemente do Mundo (da ordem do Narrar) que é criado nos relatos, remetendo-nos ao passado e ao futuro, nas cartas, a exemplo da que foi elaborada por Safari, há a predominância da exposição: “Os fatos [...] são apresentados como sendo acessíveis no mundo ordinário dos protagonistas da interação de linguagem: eles não são narrados, mas mostrados, ou expostos.” (BRONCKART, 2009, p. 153, grifo do autor). O produtor do texto, portanto, cria um Mundo da ordem do EXPOR que, no caso das cartas, é bastante interligado ao ato de produção. A participação direta do locutor nos eventos (evidenciando implicação dos parâmetros de produção do texto) prende a exposição à situação material (daí, as coordenadas gerais de estruturação do texto serem conjuntas às coordenadas do mundo ordinário, comum ao produtor do texto). Essa característica de implicação fica ainda mais evidente em exposições realizadas na oralidade; nessa modalidade, o discurso interativo é repleto de sequências constituídas pelo discurso direto e, de quando em vez, por frases não declarativas (interrogativas, imperativas e exclamativas), proferidas pelo enunciador que, neste tipo discursivo, costuma ser o próprio produtor do texto.

Na carta de Safari, a implicação dos parâmetros da ação de linguagem está evidenciada por meio de referências dêiticas que remetem ao autor do texto, a exemplo do nome “Safari” e do uso do pronome de primeira pessoa “Eu”, e ao interlocutor, a exemplo do nome “amigo” e do pronome de tratamento “você”. A expressão “UFPB”, por sua vez, inserida logo no início do texto, situa o leitor com relação ao lugar de onde o estudante provavelmente produzira sua mensagem. Embora a solicitação feita no enunciado da tarefa do Celpe-Bras tenha sido a de “produzir uma mensagem eletrônica”, certos usos, a exemplo dessa referência à universidade, levam-nos a tomar “sua mensagem eletrônica” como um texto pertencente ao gênero carta, pois nos remetem à tipificação própria desse gênero.

Ainda que muitas dessas informações costumem aparecer em locais específicos no suporte de e-mail (o nome dos participantes em geral estão implicados nos endereços de correio eletrônico; horários de envio e recebimento da mensagem costumam aparecer automaticamente), sendo, portanto, dispensáveis no corpo do texto desenvolvido, não podemos perder de vista que, a depender das condições de produção e dos objetivos do produtor, muitos dos textos produzidos para serem enviados eletronicamente, são enviados em forma de anexo, inclusive cartas, nos quais podemos perceber a recorrência a certas expressões que nos remetem à ideia de lugar, data e interlocutores. Além disso, expressões que fazem alusão ao local de onde o produtor do texto provavelmente costuma enviar suas

mensagens eletrônicas (geralmente, o nome do país) nem sempre aparecem nas mensagens eletrônicas, e, quando aparecem, geralmente têm a ver com o tipo ou versão de conta de correio eletrônico utilizados (se brasileira, francesa, inglesa etc.). Em última instância, a expressão “UFPB” também poderia ser tomada como uma espécie de “cabeçalho”, o que não deixaria de ser pertinente em uma carta (porém, em geral, em situações mais formais). O uso de frases, a exemplo de “Oi amigo” e “Um abraço” são índices de interação, o que justifica ainda mais o caráter interativo do tipo discursivo em questão, embora, conforme demonstrado na fundamentação, frases não-declarativas costumem ser mais recorrentes em outros tipos de discurso (discurso teórico e narração). O curioso é que o estudante optou por não utilizar um nome próprio, ao se referir ao seu interlocutor. Em todo caso, tendo em vista a proposta do Celpe-Bras, o nome de seu amigo já poderia estar contido no próprio endereço eletrônico, inserido, a partir da lista de contatos, antes do envio do texto, o que justificaria o fato de não tê-lo utilizado no corpo do texto, de maneira mais específica, além de evidenciar coerência por parte do estudante, ao desenvolver o texto.

O caráter de conjunção às coordenadas do mundo ordinário da ação de linguagem, por sua vez, está evidenciado por meio dos usos de verbos no presente (do indicativo). É importante ressaltar que a própria implicação dos parâmetros de produção do texto realça o caráter de conjunção presente na carta de Safari. Contudo, isso não exclui a possibilidade de também encontrarmos nesse gênero segmentos de outros tipos discursivos, mais precisamente, do Mundo da ordem do Narrar (por meio de relatos que nos remetem ao passado ou que sinalizam acontecimentos futuros). Embora algumas passagens presentes na carta de Safari, remetendo-nos ao passado ou projetando-nos para o futuro, sejam características do Mundo da ordem do Narrar, elas estão diretamente relacionadas ao momento da tomada da palavra do estudante, como podemos perceber na última linha do texto, em que a ideia de futuro expressa pelo verbo “ser” está diretamente relacionada à ideia de presente expressa pelo verbo “esperar”, que marca a tomada de fala do enunciador.

O que mais nos chama a atenção na carta de Safari é que, apesar de ter sido escrita, tendo em mente um amigo como interlocutor, há um nível de argumentação muito elevado, o qual poderíamos, pelo menos em tese, encontrar mais facilmente em cartas direcionadas a autoridades ou a quaisquer instâncias públicas que ocupassem determinada posição social hierarquicamente superior, mas não necessariamente, a do remetente. Fazendo-se valer dos dados obtidos a partir do vídeo sobre as vantagens de se abrir um negócio voltado para a terceira idade, o estudante busca convencer seu amigo a abrir um negócio voltado para esse setor. É persuasivo, até mesmo quando encerra sua carta: “Eu te desejo muita sorte nessa sua

nova aventura que eu espero será dedicada à terceira idade.”, demonstrando bom nível de argumentação. Nesse exemplo, percebemos a presença de uma modalização pragmática, respaldada em noções adquiridas a partir de vivências e que está fortemente marcada pelo uso do verbo “esperar”. Contudo, pela própria natureza desse verbo, tal enunciado também deixa subjacente uma apreciação mais subjetiva. Além disso, o uso do verbo ser, no futuro, acaba levando o leitor a tomar o conteúdo temático vinculado nesse enunciado quase como uma certeza, transparecendo, portanto, uma modalização lógica. O imbricamento entre o linguístico e o enunciativo, como representação desses mundos formais (subjetivo, lógico, e respaldado em práticas ou vivências sociais/cotidianas) resulta num trecho persuasivo, ainda mais se levarmos em conta que o mesmo fora utilizado para concluir a carta, ou dar o desfecho de seu discurso, eliminando quaisquer dúvidas ou hesitações por parte do destinatário, quanto à possibilidade de abrir um tal negócio.

Outras passagens evidenciam o ponto de vista do enunciador quanto à ideia de se abrir um negócio, a exemplo do que ocorre logo no início da carta por meio do enunciado: “eu achou [achei] interessante essa idéia de abrir um negócio”. Outro exemplo significativo vemos no enunciado seguinte: “mas achou também que seria ainda melhor”, levando o leitor a tomar a sugestão de Safari como algo bastante viável. O uso da conjunção “mas” e do advérbio “ainda”, nesse enunciado, não só levam o leitor a descartar outras possibilidades de negócio, como também reforça a sugestão dada pelo estudante. Não é difícil imaginarmos, a partir de nossas vivências, que “os velhos gostam muito de conversar.” (9a. e 10a. linhas). Entretanto, percebemos que, pela natureza do verbo “gostar”, conforme já apontado, tal enunciado não deixa de transparecer uma apreciação mais subjetiva, evidenciando, portanto, não só uma modalização pragmática, mas também apreciativa. Essa sobreposição de modalizações também pode ser percebida no trecho, contido a partir da 14a. linha: “Então, para você também há beneficios [benefícios] por que [porque] uma estatística monstra [mostra – possível interferência do francês] que os investimentos nesse tipo de negócios para terceira idade, é [são] muito lucrativa[os]”. Partindo de uma pesquisa, e não apenas do senso comum, o enunciador não só revela a sua opinião, mas leva o leitor a tomar a sua apreciação como certa, verdadeira, evidenciando também uma modalização lógica. O mesmo ocorre com o enunciado seguinte, ao utilizar a expressão: “Parece que”. Por alguma razão, o enunciador não quis se comprometer tanto com o que foi apresentado, levando o leitor a não tomar o conteúdo como certo, mas como provável. Porém, ao fazer isso, não deixou de implicar seu próprio ponto de vista. Além disso, o modo como lidou com as palavras, a ponto de não se comprometer tanto, certamente teve respaldo no que pragmaticamente considerou como sendo

adequado e sensato a ser feito naquele momento. Ademais, os complementos seguintes também podem ser tomados, a partir de sua condição de verdade: “esse segmento da terceira idade vale cada ano mais de 150.000.000 de reais, já que eles [os idosos] gastam mais dinhiero [dinheiro] que os jovens”.

Por mais óbvio que possa parecer o que de fato seja um gênero epistolar, há pessoas que talvez nunca tenham escrito uma carta, ainda mais se imaginarmos as pessoas, nos dias atuais, preferindo enviar suas mensagens por meio eletrônico do que por outros meios. Em todo caso, para além do que possamos chamar de “formatos”, cada texto possui uma função e muitas das funções típicas do gênero carta podem ser percebidas, mesmo que em ambientes virtuais. Contudo, algumas características são bastante recorrentes, e muitas delas são respaldadas em nossas próprias vivências ou conhecimento de mundo. É o caso das expressões que costumamos utilizar para iniciar certos gêneros. Na carta de Safari, a saudação inicial “Oi amigo” serve de exemplo. O mesmo pode ser estendido à saudação final “Um abraço”. Ambas as expressões são perfeitamente adequadas, principalmente, se levarmos em conta a natureza da situação da qual o estudante teria feito parte, ou seja, informal. Por outro lado, o fato de utilizar “amigo” e não “colega”, por exemplo, imprime certo posicionamento apreciativo. Percebe-se, assim, como um produtor de textos pode orientar o modo como o leitor deverá interpretar seus enunciados, que, aliás, poderão surtir efeitos, sentimentos etc. nesses interlocutores.