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3. A CAMPANHA DE 1976

3.9 CARTER E OS TEMAS

A proposta de Carter não era mesmo ser um issues candidate. Havia um tema principal da campanha, que nunca poderia ser perdido de vista: a crise de confiança no governo e a necessidade de reunir o país. Em 20 de maio, num discurso no legislativo da California, assistido por uma plateia majoritariamente pró-Brown, Carter proferiu as seguintes palavras:

No primeiro nível nós temos os assuntos tangíveis – desemprego, bem-estar social, impostos – mas em outro nível nós temos o tema intangível do cinismo e apatia que afligem muitos de nossos compatriotas.

Nosso povo passou por muita coisa. Eles foram enganados, lhes mentiram e enrolaram e acossaram e confundiram e os ignoraram, e eles finalmente já tiveram o suficiente.

232

No original: “Hidden behind the smiles and loose joking of the small Carter team is the fact that it is a team experienced only in campaigning with no higher goal, save getting their man to the Presidency”.

233 Idem, Ibidem, p. 395-396. No original: “Twenty-nine-year-old ‘old boys’ from Georgia jealously guarding the

palace gates of power are more than reminiscent of Nixon’s style, they constitute its substance ‘”. “this imperial president who will promise anything to get elected but whose words stand stark contrast to his record and actions”.

Eles estão clamando não por um governo que seja liberal ou conservador ou ideologicamente puro, mas apenas honesto e efetivo e compassivo.

Se eu tivesse que resumir em uma palavra sobre o que é esta campanha, a palavra seria “fé”.

O povo americano quer ter fé em seu governo. E é nossa responsabilidade, como homens e mulheres públicos, fazer tudo que está em nosso poder para ajudá-los a reconquistar a fé que eles perderam.

Permitam-me encerrar dizendo a vocês o que eu tenho dito a plateias por toda a América nos últimos dezesseis meses. Tudo que eu quero é a mesma coisa que vocês querem. Ter uma nação com um governo que é bom e honesto e decente e competente e compassivo e tão cheio de amor como o povo americano234

Este foi um dos primeiros discursos escritos por Patrick Anderson, redator que entrara no lugar de Bob Shrum, e correspondia exatamente a uma avaliação que Carter, Anderson e a maior parte do seu staff compartilhavam: a candidatura não deveria ser, de maneira nenhuma issue-oriented.235 Os EUA careciam de uma liderança que unisse novamente o povo em torno de um líder que pudesse receber a confiança do povo. Nada melhor que fosse um homem do povo, gente comum, um fazendeiro de amendoins do interior da Georgia. O discurso de 20 de maio era o sumo de uma estratégia que havia sido empreendida nas primárias e seria repetida na eleição. Quando, eventualmente, apareceu a preocupação de que Carter era nebuloso nos temas de campanha, o candidato começou a se posicionar em temas importantes, em geral diante de plateias específicas, que estivessem de alguma forma relacionadas ao tema a ser discutido. Mesmo assim, Carter procurava se comprometer o menos possível. Caso tivesse de fazê-lo, jogava habilmente com as palavras, sempre procurando um delicado equilíbrio, uma zona confortável na qual ele pudesse satisfazer ambos os lados. Logo depois do discurso no Congresso da California, Carter participou de um comício em Reno. A partir do momento em que Carter passou a ser questionado, a plateia insistiu que ele se pronunciasse sobre a anistia aos desertores da Guerra do Vietnã. Então, ele se pôs a elogiar os combatentes:

234 Carter, op. cit., p. 102. No original: “I think that the political campaign this year is operating on two levels.

On one level we have the tangible issues – unemployment, welfare, taxation – but on another level we have the intangible issue of cynicism and apathy that afflict too many of our fellow Americans.

Our people have been through too much. They have been lied to and cheated and tricked and bullied and confused and ignored, and they have finally had enough.

They are crying out not for government that is liberal or conservative or ideologically pure, but just honest and effective and compassionate.

If I had to sum up in one word what this campaign is all about, the word would be “faith”.

The American people want to have faith in their government. And it is our responsibility, as public men and women, to do everything in our power to help them regain the faith that they have lost.

Let me close by saying to you what I have said to audiences all over America in the past sixteen months. All I want is the same thing you want. To have a nation with a government that is as good and honest and decent and competent and compassionate and as filled with love as are the American people”.

Eles não tinham dinheiro suficiente para se esconder na universidade então foram ao Vietnã. Eles não queriam ir. Eles não sabiam porque estavam lá. Eles queriam ficar em casa, mas foram. Cerca de 50.000 deles foram mortos. Outros centenas de milhares voltaram, feridos de diferentes formas. Na minha opinião, eles são os heróis mais não-reconhecidos e rejeitados que este país já conheceu.

Sou uma pessoa profundamente moral, eu espero, e eu sei que se alguém tem um profundo compromisso contra a guerra, eles têm um direito a fazer como escolhem. Muitos dos nossos jovens foram para a Suécia ou o Canadá. Eu nunca declararia anistia, uma anistia irrestrita para aqueles que desertaram do nosso governo.236

Neste momento, as pessoas contrárias à anistia começaram a aplaudir, mas Carter lhes acenou para que fizessem silêncio.

Esperem, esperem, esperem, esperem… a Guerra está ocorrendo agora no Vietnã – começou cerca de trinta anos atrás. Um monte desses jovens estiveram na Suécia ou Canadá por 15 anos. Eu acho que é hora de encerrar a guerra. Então, na primeira semana que eu estiver no cargo de presidente, vou declarar um perdão para todos os jovens que desertaram. Há uma diferença sutil. Eu não vou enfatizar isto. Para mim, anistia significa que o que você fez era certo e você deve ser parabenizado por isto. Perdão significa que o que você fez, certo ou errado, é perdoado. Então, vou declarar um perdão e esquecer a Guerra do Vietnã e deixar esses jovens voltarem para casa.237

Como nota Anderson em seu livro, esta distinção entre anistia e perdão não encontra respaldo no dicionário. Foi uma distinção fictícia, feita pelo próprio candidato, para tentar conciliar duas posições inconciliáveis. O episódio é bastante significativo do que significava realmente a “indefinição” de Carter: não é que ele não abordasse os temas. Mas, quando o fazia, procurava uma posição que contemplasse e unisse todos os lados da história.

Em 24 de agosto, num discurso feito diante da convenção da American Legion, uma sociedade de veteranos de guerra americanos, Carter corajosamente repetiu a distinção entre

236 Idem, Ibidem, p. 24. Trad. livre: “They didn’t have enough money to hide in college so they went to Vietnam.

They didn’t want to go. They didn’t know why they were there. They wanted to stay home but they went. About 50.000 of them were killed. Another hundreds of thousands came back, wounded in different ways. In my opinion they are the greatest unrecognized, unappreciated heroes this country has every known.

I am a deeply moral person, I hope, and I know that if someone has a deep commitment against the war, they have a right to do as they choose. Many of our young people went to Sweden or Canada. I could never bring myself to declare amnesty, a blanket amnesty for those who defected from our government”.

237

Idem, Ibidem, p. 24-25. No original: “Wait, wait, wait, wait... The war has been going on now in Vietnam – it started about thirty years ago. A lot of those young people have been in Sweden or Canada for fifteen years. I think it’s time the war was over. So the first week I’m in office as president, I’m going to declare a pardon for all those young people who defected. There is a subtle difference. I’m not going to emphasize it. To me amnesty means that what you did was right and you are to be congratulated for it. Pardon means that what you did, whether it was right or wrong, is forgiven. So I’m going to declare a pardon and forget the Vietnamese war and let those young people come home”.

anistia e perdão, sabendo que seria vaiado pela plateia (a vaia durou 45 segundos). Logo em seguida, justificou de maneira reveladora dos seus intentos:

Mas eu gostaria de verbalizar minha posição para vocês por causa disto: nossa nação ainda está dividida. Há ainda muita raiva, muita divisão, uma ausência de apoio a nossos quadros militares que sobrou do Vietnã. Eu acho que é hora de deixar isto para trás.

Eu sei que não pudemos chegar a um acordo de qual seria o rumo correto para nossa nação em 1966, mas agora podemos concordar, creio eu, em nos unirmos e procurarmos um renascimento do patriotismo do qual todos os cidadãos possam participar. Nós precisamos cicatrizar nossas feridas.238

A dubiedade de Carter em relação a alguns temas não era uma forma de covardia política, mas uma busca deliberada por uma formulação que satisfizesse a todos os lados. Tanto que, nos momentos em que julgava necessário tomar posicionamentos claros, Carter o fazia. No mais, quando fosse possível, procurava não se comprometer. Trata-se de um jogo muitas vezes delicado, um jogo diplomático. “I never do anything unintentionally, even if it looks unintentional” (“eu nunca faço algo ‘sem querer’, mesmo que pareça sem ‘querer’), disse Carter a repórteres certa vez. Em outra circunstância: “I don’t see anything inherently wrong in trying to say things in a such way that I don’t irritate people, as long as I remain consistent with my basic position” (“Não vejo nada intrinsecamente errado em tentar dizer as coisas de um jeito que não irrite as pessoas, desde que eu permaneça consistente com minha posição original”).239

Se possível, Carter procurava agradar dois lados com uma mesma frase, se utilizando de uma oração auxiliar alternativa em conjunto com uma oração principal. Como neste exemplo: “I do not believe we should withdraw Americans from Korea, except on a phased basis” (“Eu não acredito que devêssemos retirar americanos da Coreia, exceto numa base progressiva)”.240

Isto não quer dizer, entretanto, que Carter não tivesse posicionamentos bem definidos em relação aos temas. Na verdade, antes das primárias, Carter e Stuart Eizenstat elaboraram memorandos sobre praticamente todos os temas possíveis na eleição americana. A campanha de Carter se dispunha a expor estes posicionamentos a qualquer um que escrevesse para a Caixa Postal n° 1976, em Atlanta, e frequentemente enviava versões destes memorandos a

238 Carter, op. cit., p. 152. Trad. livre: “But I want to spell out my position to you because of this: Our nation is

still divided. There’s still a lot of hatred, there’s still a lot of division, there’s still an absence of support for our military personnel left over from the Vietnamese War. I think it’s time to get that behind us.

I know that we may not be able to agree what was the right course for our nation to take in 1966, but we can now agree, I believe, to come together and seek a rebirth of patriotism in which all our citizens can join. We must bind up our wounds”.

239 Glad, op. cit., p. 311. 240 Idem, Ibidem, p. 307.

grupos particulares. Quando se tratava de um exercício de retórica pública, entretanto, o objetivo era inspirar com declarações vagas, que permitissem múltiplas interpretações e acionassem símbolos e repertórios de culturas políticas muito distintas entre si. No seu livro Why not the best?, Carter escreveu: “dozens of issues are considered during a political campaign, but candidates do not create the issues. They exist in the minds and hearts of our citizens”. O papel do politico é assimilar o que o povo pretende, e fornecer a liderança adequada, dando forma a esses pensamentos e, eventualmente, quando necessário, pedagogicamente mostrar ao povo outros caminhos.

Deste modo, no que possivelmente foram os temas mais importantes da campanha de 1976 (a economia, o desemprego, a inflação, reforma tributária), Carter procurou ser tão vago quanto possível, mas tinha uma identificação que de maneira geral se alinhava com a plataforma de seu partido, a quem tinha de apelar. Ao mesmo tempo, sua fala sobre eficiência, importância da iniciativa privada, valores morais, orçamento equilibrado, que faziam parte da sua formação política local na Georgia, apelavam à parte mais conservadora do eleitorado. Nestas incursões, Carter ia, calculadamente, até o ponto de contemplar este novo humor do eleitorado americano, porém sem descaracterizar excessivamente as bandeiras tradicionais de seu partido.

Um populista que tinha excelente trânsito entre os grandes empresários; um defensor do pleno emprego com orçamento equilibrado; um defensor da integração racial que acreditava na pureza étnica das comunidades; um liberal que acreditava nos valores tradicionais da família americana; um defensor da supremacia militar que pregava cortes no orçamento da defesa; foi este Jimmy Carter que, após quase perder, venceu as eleições americanas em 1976. Um político que acreditava ser possível, para um governo, ser ao mesmo tempo eficiente e compassivo. A prática governamental colocaria à prova seus pressupostos, suas crenças e sua imagem.

4. ARTICULAÇÃO POLÍTICA, CONGRESSO E OPINIÃO PÚBLICA NO