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3. O CAMPO E A METODOLOGIA

3.3 SOBRE O CAMPO

3.3.2.1 Centro de Pesquisa e Atendimento a Travestis e Transexuais – de um

3.3.2.1.1 Cartografias Trans: ―Falar é ter demasiada consideração pelos

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Trecho da obra de Bernardo Soares ―Livro do Desassossego‖, 2006. Bernardo Soares é um dos heterônimos de Fernando Pessoa (1888-1935), todavia em anuência à proposta deste trabalho de permitir em qualquer ocasião que os sujeitos se autodenominem como assim o desejem, opto – ainda que discordando das normas oficiais de referenciar textos – por dar o crédito da obra para Bernardo Soares, como assim fez o próprio Fernando Pessoa quando escreveu a obra.

Cheguei a este grupo também na primeira visita ao CPATT. Frequentei algumas reuniões, não muitas, por conta do escasso tempo restante para o trabalho empírico. Entretanto, em todas as reuniões que estive, avaliei como muito produtivas no sentido de que tive contato com diversas pessoas (trans) e suas contribuições foram proeminentes para as análises desta pesquisa.

Este é um grupo de apoio destinado às pessoas (trans) frequentadoras do CPATT, ainda que não seja só para homens (trans) – sujeitos deste trabalho – penso que este dado não impede ou dificulta as análises, talvez complexifique.

Frederico informou-me que este grupo era organizado por estagiárias do último ano de psicologia e segundo ele ―o bom delas [as estagiárias], é que elas se interessam por Foucault, Lacan, essas paradas, e gender queer e afins. [...] está sendo uma coisa muito positiva.‖ (Entrevista, 16/09/2014).

No momento da nossa entrevista solicitei sua intermediação para que eu pudesse frequentar algumas das reuniões. E assim foi feito. O que mais me chamou a atenção no cartaz do grupo foi a expressão ―Grupo de livre participação destinado a usuários do CPATT”, na qual estava, a meu ver, implícita a ideia de que esta alternativa de atendimento psicoterapêutico levava em conta o desejo das/os usuárias/os pela terapia, ou seja, era um direito e não um dever.

Na entrada do grupo fui abordado por uma das então acadêmicas (atualmente elas já concluíram o curso), que prontamente me recebeu e me inseriu no grupo. Tratava-se de uma reunião semanal em uma pequena sala, na qual as cadeiras eram alinhadas em círculo. Duas das estagiárias permaneciam no interior do mesmo, juntamente com os/as participantes e a outra ficava um pouco distante, fazendo o relatório da reunião. Todas as pessoas que participavam da reunião eram convidadas a assinar sua presença.

Como eu era um iniciante foi solicitado que eu me apresentasse. Logo que me descrevi informando a temática de minha pesquisa, uma das estagiárias me informou que aquele grupo trabalhava na perspectiva da despatologização das identidades (trans), como que corroborando minhas preocupações teóricas e políticas, o que saliento, considerei bastante peculiar e significante. Nesta reunião estavam presentes três mulheres (trans) e um homem (trans), acompanhado de sua

companheira cis. Após as discussões se iniciarem que Frederico chegou, contudo permaneceu por pouco tempo, devido a ter sofrido um crise hipertensiva, a qual se referiu como uma ―crise de ansiedade‖ motivada pela sua inquietude em ainda não poder realizar a mastectomia.

O grupo apresentava uma dinâmica em que não se hierarquizava a fala e não havia prioridades de assuntos. Atuando mais como facilitadoras, as estagiárias nunca interromperam as falas dos/as frequentadores/as, fazendo pequenas pontuações no sentido de ampliar e aprofundar os questionamentos produzidos nas discussões, e de evitar algum monopólio da palavra, o que saliento nunca ocorreu. Não havia um assunto prévio a ser pontuado, o que se debatia era sempre objeto das considerações iniciais, isto é, a tônica da conversa era livre, tomando o rumo que desejassem as pessoas (trans) envolvidas na proposta. Segundo um pôster apresentado em evento acadêmico51 cujo conteúdo relatava a experiência do grupo, há informações mais apuradas, as quais julgo ser prudente uma pequena reprodução, tanto do item introdução, quanto item metodologia. Na Introdução há as seguintes informações:

Fundamentado na perspectiva das identidades trans, tem como premissa básica que ―todas as formas de ser e estar no mundo‖ podem ali ser acolhidas sem a exigência de um alinhamento heteronormativo entre gêneros/práticas/desejo. (CAMARGO, MELO e SILVA e SCHAEDLER, 201452)

Neste trecho está explicitada a perspectiva adotada pela despatologização, o que confirma o que me foi passado quando fiz a primeira visita ao grupo. Esta é uma ação pontual que julgo benéfica na exata medida em que se trata de um posicionamento acadêmico, portanto científico, de adotar práticas terapêuticas menos preocupadas em diagnosticar e avaliar as pessoas (trans) como doentes, ao passo que, também marca uma postura política de aproximação com esta luta.

Já no trecho que discute a metodologia adotada julgo pertinente transcrever e discutir estes elementos:

51 O evento tratava-se da apresentação dos trabalhos finais para a conclusão do curso de psicologia

cursado pelas estagiárias retratadas nesta pesquisa.

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Trata-se de um grupo aberto, que consiste em um espaço de fala, de presença não obrigatória, cuja frequência é semanal (uma hora e meia de duração). Estabelece-se um acordo de convivência (sigilo e no respeito mútuo) sempre no início do encontro. A partir disto a palavra circula livremente para que os usuários falem o que e como quiserem. (Ibid., 2014).

Somente a noção de que a presença não é obrigatória já é um dado que constata o respeito para com as pessoas (trans), tidas como sujeitos decisórios de suas necessidades. A ideia de um acordo de convivência, norteado pelo sigilo e respeito mútuo, preservam o direito à privacidade e à não visibilidade compulsória, como também um espaço igualitário, sem assimetrias de poder. Propor que a palavra circule livremente (ou seja, sem a intervenção de especialistas) para que as pessoas (trans) falem o que e como quiserem, ressalta a atenção em salvaguardar a liberdade de pensamento e de fala, permitindo uma expressão sincera dos sentimentos das/os participantes. Novamente, é possível reconhecer o cuidado em assegurar um direito (atendimento psicológico) e não um dever.

Nesse sentido, a experiência do grupo Cartografias Trans é uma alternativa viável aos protocolos de terapias compulsórias, nos quais o objetivo central é a produção de um diagnóstico, perdendo de vista inclusive a expectativa de muitas pessoas (trans). Por vezes, algumas participantes afirmaram a necessidade do auxílio da terapia psicológica, argumentando suas dificuldades enfrentadas no dia-a- dia por conta dos episódios de preconceito e discriminação vivenciados. Logo, ter o direito de um atendimento respeitoso, em uma relação não vertical, ou seja, não imposta, pode ser atendido e ser benéfico para a população (trans), tanto é assim que no mesmo pôster as acadêmicas afirmam que ―57% dos usuários retornaram ao menos uma vez ao Cartografias Trans‖ (Ibid. , 2014), evidenciando que a proposta foi aceita para o público destinado.