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4. ANALISANDO O REAL EMPÍRICO

4.1 IDENTIDADE DE GÊNERO E ORIENTAÇÃO SEXUAL

Desde que iniciei a pesquisa e observo atentamente as aparições cada vez mais frequentes de homens (trans) nas redes sociais é notável que muitos deles não se reconhecem como heterossexuais, contradizendo o discurso oficial dos saberes médico e psicológico que configuram o que Bento (2006) chamou de dispositivo da transexualidade. É recorrente as orientações homo e bissexual entre a população de homens (trans) brasileiros, sendo muito comum também relacionamentos que nomeio de intertrans, ou seja, relacionamentos entre dois homens (trans) – no caso de relações homossexuais – e de relacionamentos entre homens (trans) e mulheres (trans), para relações heterossexuais.

Nas entrevistas a heterossexualidade não foi a orientação sexual mais escolhida. Três dos cinco interlocutores respondem que não se consideram heterossexuais, sendo dois bissexuais e um responde ―pansexual‖, embora tenha afirmado que suas práticas e desejos são orientados tanto para homens ou mulheres (trans ou cis). Cabe destacar que Marcelo relata ser bissexual, ainda que se indague sobre um desejo voltado a homens. Segundo ele:

Por ser bissexual, apesar de que eu não sei hoje em dia, mas eu acho mais pra hétero. Eu não sei se é só uma coisa que eu ainda me acostumei de certa forma, mas eu vejo que pra relacionamento mesmo, tem que ser mulher. É só esporádico mesmo, eu acho que não sei, por eu ter tido uma boa fase na adolescência, vida adulta, vivi muito lá no feminino, então acabei me acostumando com algumas coisas, então eu sou aberto. Então eu me considero bissexual porque eu realmente já fui apaixonado por um homem, e eu não sei até que ponto, porque as relações nunca deram certo. Nem as relações sexuais mesmo nunca davam certo direito, então eu não sei até que ponto. (Entrevista, 24/09/2014).

Neste pequeno trecho Marcelo busca explicar-me os motivos de sua bissexualidade esporádica, dado que ele seria ―mais aberto‖ (provavelmente se referindo a sexualidades mais conflitantes com as normas sociais), pois, viveu muito tempo no feminino, ou seja, viveu muito tempo sem reconhecer-se como um homem (trans) e devido ao fato de suas relações (não só as sexuais) ―nunca deram certo‖

(com homens). É possível perceber a importância que Marcelo dá ao demonstrar que se declara bissexual, ainda que precise eliminar totalmente a possibilidade de ser reconhecido como um homem com desejos por outro, isto é, seu esforço é no sentido de me mostrar que não é gay. Muito provavelmente, temesse que esta identidade aos olhos dos especialistas em diagnosticar a transexualidade fosse levantar dúvidas sobre sua identidade de gênero. Ainda que identidade de gênero e orientação sexual não sejam sinônimos como aponta Jaqueline Gomes de Jesus (2012, p. 12) ―gênero se refere a formas de se identificar e ser identificada como homem ou como mulher. Orientação sexual se refere à atração afetivossexual por alguém de algum/ns gêneros‖, nota-se que a constituição de sua orientação sexual e de sua identidade de gênero aparecem conjuntamente, evidenciando o processo ininterrupto dessas identificações. Como ele nos conta:

Já com mulher é o contrário, sempre fui apaixonado por mulher, desde a primeira série da escola eu fui apaixonado por meninas. Eu não sabia direito, eu fui percebendo, percebendo, sofrendo, porque sempre me apaixonava por mulheres héteros e nunca eram lésbicas. Eu via que ali eu não me encaixava direito. Eu vivia com elas, mas não era uma relação mulher com mulher, eu não conseguia me ver muito como mulher, eu só achava. Então eu só ficava na fantasia e como não tinha informação, não tinha nada assim, então... (Entrevista, 24/09/2014).

As contribuições de Stuart Hall (2005) são pertinentes para compreender estas identidades de Marcelo, visto que para este autor a identidade do indivíduo pós-moderno seria multifacetada, não fixa ou essencializada, ou seja, identidades fragmentadas, contraditórias. É uma identidade ―definida historicamente, e não biologicamente. O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um ‗eu‘ coerente.‖ (HALL, 2005, p. 13). O autor trabalha com o conceito de ―jogo de identidades‖ no qual pontua que a identidade de classe como única não mais se adéqua ao mundo pós-moderno.

Contudo, nas entrevistas pude perceber que para além das disputas identitárias, várias colocações dos interlocutores foram no sentido de compreender a si mesmo como ―pessoa do gênero masculino‖, como disse Gustavo (entrevista, 14/06/2013). Embora nem todos utilizassem somente a expressão homem (trans), esta foi a nomenclatura mais referida pelos mesmos. Como já explicitei na quinta

nota de rodapé deste trabalho, ao realizar a análise de debates online na rede Facebook tive contato com um dos coordenadores do IBRAT, o qual me informou que este termo será oficializado como o termo indicado pelo movimento social decorrente do ―fato que a maioria se considera homem antes de se perceber trans. Trans funciona como adjetivo e não como indicativo de nossa identidade de gênero53‖. Em contato com o coordenador geral deste instituto, o mesmo afirma que

este termo já se estabeleceu e que ―pelo fato de que não podemos correr muito atrás da cauda sobre qual nome vamos usar, já que o termo já se popularizou54‖.

Neste sentido, é importante frisar que no contexto brasileiro os homens (trans) elencam como ênfase o seu pertencimento na categoria de homens, sendo secundário as demais denominações (como o sufixo ou prefixo trans), posto que somente qualificam os sujeitos e suas vivências, isto é, são adjetivos. Como já afirmei antes, nota-se a evidência de que o ―ser homem‖ (não obrigatoriamente a noção de homem hegemônica) e ser reconhecido socialmente como tal está dentro das prioridades dos sujeitos analisados. Ainda que a produção intelectual possa inferir sobre a forma como os sujeitos se percebem e traga sugestões para suas estratégias em suas lutas é fundamental reconhecer o direito ao protagonismo dos atores mais implicados nestes embates. Para pensar sobre este assunto trago a contribuição de Stuart Hall (2003) em sua obra ―Da Diáspora: identidades e mediações culturais‖. Para ele o objetivo dos estudos culturais era o estudo da cultura, ideologia, linguagem e do simbólico, sendo uma formação discursiva, mas diferenciando-se das metanarrativas, na medida em que: “Os estudos culturais abarcam discursos múltiplos, bem como numerosas histórias distintas. Compreendem um conjunto de formações, com as suas diferentes conjunturas e momentos no passado.‖ (HALL, 2003, p. 200 e 201).

Também aborda a diferenciação entre o trabalho acadêmico e o trabalho intelectual, sendo o último resultado de uma acumulação de conhecimentos (produto do trabalho acadêmico), mas que:

53 Comunicação pessoal através da rede social Facebook no dia 13 de novembro de 2014. 54

Não tent[a] inscrever-se numa metanarrativa englobante de conhecimentos acabados, dentro de instituições. [...] a teoria como um conjunto de conhecimentos contestados, localizados e conjunturais, que têm de ser debatidos de um modo dialógico. Mas também como prática que pense sempre a sua intervenção num mundo em que faria alguma diferença, em que surtiria algum efeito. Enfim, uma prática que entende a necessidade da modéstia intelectual. Acredito haver toda a diferença no mundo entre compreensão da política do trabalho intelectual e a substituição da política pelo trabalho intelectual. (HALL, 2003, p. 216, 217).

Barbosa e Frederico apontam para esta identificação e pertencimento à categoria homem. Barbosa acentua “Eu sou homem e me identifico como homem, dentro das especificidades de homem, eu sou um homem trans, transhomem, FTM, isso tudo mais” (entrevista, 16/06/2013) e Frederico diz: ―Não sei, no quesito da militância eu sempre digo que eu sou homem trans, mas no geral eu sempre digo que eu sou homem assim, tipo numa totalidade” (entrevista, 16/09/2014). Estas falas são notórias da preocupação em reconhecerem-se e serem reconhecidos, sobretudo como homens.

Todos os entrevistados afirmam sua pertença ao gênero masculino a partir da autoidentificação, e o sentimento deste pertencimento é o que lhes confere esta identificação. Apenas um deles toma os genitais como elemento diferenciador dos homens (trans) para os homens cis. Para todos os outros, a noção de gênero como algo da ordem do social é o que permite compreenderem-se como homens, dado que mostra que as teorias não biologizantes reverberam na população de homens (trans) brasileiros. Nas discussões online várias vezes avistei defesas das explicações biologicistas da transexualidade por parte dos homens (trans), contudo, paradoxalmente, o gênero tenha sido descrito como um fenômeno aprendido. Inclusive, é constante a defesa de que o gênero assumido é uma identidade, que nada teria a ver com a sexualidade, sendo as expressões da hetero, homo ou bissexualidade probabilidades para suas vidas.