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Ir para a Geórgia nas férias da primavera foi ideia sua. Você nunca tinha ido para o Sul, só de passagem, e agora começara a escrever um conto sobre Juliette Gordon Low e a casa que ela tinha em Savannah. É uma viagem de doze horas, um pulinho. Além do mais é março, e está um frio danado, e o inverno foi longo. Você quer tomar um solzinho. Então você pergunta se ela quer ir junto.

Ela diz que sim. Você compra calcinhas novas no shopping.

Ela assume o volante do seu carro e vocês saem de Iowa antes de o sol nascer. Você pega no sono quase no mesmo instante e, quando acorda, começou a nevar e ela está correndo muito. Você se ajeita no banco e tira a remela dos olhos. As placas de sinalização indicam que a pista está acabando e ela tem que entrar na faixa ao lado; ela manobra tarde demais e enfia o carro num buraco na diagonal. O pneu fura.

Vocês estão em algum lugar na fronteira de St. Louis. Ela encosta o carro; você liga para a seguradora. Eles chegam e usam o estepe, e o cara indica um lugar na estrada onde podem comprar um novo pneu. Você faz o que ele diz, e quando termina ela volta a dirigir, mas depois de poucos quilômetros o novo pneu também fica

murcho. Você para numa oficina mecânica exclusiva para caminhões semirreboque; é hilário ver seu Hyundai pequenininho e cheio de adesivos com mensagens progressistas lado a lado com você diz que não foi. “O carro não é bom”, você diz, se explicando.

Ela dá risada. “Acho que faz parte da aventura. E olha que ainda nem chegamos lá!”

Parece que o mecânico repara em vocês duas — melhor dizendo, ele repara que vocês são absurdamente lésbicas, repara na proximidade dos seus corpos, na constelação que surge a partir desses detalhes e nos adesivos, e talvez ele tenha um lampejo de sexto sentido, mas não diz nada, e você fica agradecida. Ele explica que o pneu que venderam a vocês está cheio de buracos enormes e impossíveis de consertar. Ele trocaria por um pneu novo, mas seu carro usa um tipo estranho e específico de pneu num tamanho incomum, e vocês vão precisar ir a uma cidade maior para encontrá-lo. Ele põe o estepe de volta. Dessa vez é você quem dirige. Em algum lugar de Illinois, vocês finalmente encontram um pneu que serve.

Quando você para o carro na vaga do estacionamento do hotel, ela se aproxima e te dá um beijo. Ela beija seu lábio superior, depois o inferior, como se cada um merecesse atenção e ternura

“Nem acredito que você me escolheu”, ela diz.

No quarto, ela tira sua calcinha nova e enfia a cara no meio das suas coxas.

Savannah é uma cidade quente e cheirosa. As árvores são abarrotadas de musgo espanhol, e a água dos chafarizes foi tingida de verde para o Dia de São Patrício. A casa de Juliette Gordon Low é uma mansão enorme e linda, repleta de antiguidades. Sob a placa que fica pendurada na entrada e diz “Local de nascimento de Juliette Gordon Low”, ela te obriga a fazer poses cada vez mais ridículas; vocês duas estão rindo quando entram na casa. As mulheres idosas que trabalham ali e usam maquiagem de drag queen reagem com silêncio aos seus comentários empolgados sobre seu amor pelas garotas escoteiras.

O tour é incrível. Você pensa que Juliette tinha jeito de ser a maior sapatão. A guia conta que ela vivia insatisfeita com a casa — com a mobília, com o portão de entrada —, então ela mesma cuidava da decoração e das reformas. Ela aprendeu a forjar metal. Por que será que, pra você, as mulheres foda que não seguem as regras sempre parecem lésbicas? Uma psiquiatra ia fazer a festa com essa

constatação. (Embora, em sua defesa, haja na parede um retrato dela de camisa social e chapeuzinho de guarda florestal com uma inegável cara de butch.)

Depois, vocês duas andam por um cemitério antigo. Ela te beija atrás de um mausoléu. Ela tenta te convencer a trepar ali mesmo, e você diz não por respeito aos mortos, mas ela é tão linda. Aí um funcionário aparece, você se ajeitam bem rápido e vão embora rindo.

Vocês vão para Tybee Island e pedem uma travessa de frutos do mar — abrindo lagostins ao meio e devorando vieiras, comendo apenas as dádivas que o mar oferece. São bocadas e mais bocadas de manteiga, água, sal e músculo. Depois do almoço, vocês vão até a praia e andam pela água. Você vê golfinhos.

De quando em quando o celular dela toca, e ela sorri e se afasta um pouco para contar a Val sobre a viagem. Mesmo encolhida pela distância, ela acena para você.

No seu último dia na cidade, um homem bêbado as aborda na rua. Você está segurando a mão dela quando ele aparece e te agarra. Ela grita “solta ela!” e dá um golpe de caratê no braço dele.

O homem se afasta, surpreso, mandando vocês duas irem se foder, e sai cambaleando.

Você demora quase uma hora até parar de tremer. Enquanto voltam para o carro, ela fica pedindo desculpas por não ter agido mais rápido.

“Mais rápido do que imediatamente?”, você pergunta.

“Eu vi aquele cara de longe. Eu logo percebi o que ele ia fazer”, ela diz. “Eu sei que pra você isso é novidade, mas eu já saí com

muitas mulheres. Isso faz parte. Esse é o risco que a gente corre.”

A volta é a maior loucura, parece até que vocês usaram alguma droga. Vocês atravessam metade do país — da Carolina do Norte a Chicago — num dia só, feito duas tresloucadas. Você pensa que seria capaz de dirigir para sempre com ela do seu lado.

Casa dos Sonhos como romance de

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