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Você está passando algumas semanas na Casa dos Sonhos durante o recesso das festas de fim de ano, sem carro e sem nada com que se preocupar. Você não devia ter sido tão burra; os sinais de alerta estavam todos lá, mas a ideia de passar um sem-fim de dias trepando por horas numa cama confortável, se deliciando com as comidas mais incríveis e estando com ela era convidativa demais. Você sempre foi hedonista, e ela está ao seu lado para desfrutar da vida com você, com uma fome de bicho à altura da sua.

Na última semana, você vai ao boliche da região com ela e os amigos escritores. Vocês vão até lá no carro dela — um modelo de luxo que foi presente dos pais dela — e o combinado é que ela dirija, pelo menos dessa vez. Por isso, você passou a noite bebendo livremente dos jarros de cerveja clara, o tipo de cerveja que você nunca bebe, já que nunca tem a oportunidade de ficar bêbada quando está com ela, e não vê a hora de começar a sentir aquela moleza nos membros. Ela pediu só uma cerveja e beberica devagar, e sorri para você. Você joga boliche como sempre jogou; suas jogadas geralmente acabam com todos os pinos em pé, porque você se empolga demais e a canaleta acaba engolindo a bola. Mas

de vez em quando acontece um strike; uma colisão tão linda e devastadora que você tem a impressão de ser boa em alguma coisa, uma nesga de autoconfiança. Você gira a bola na mão, perolada e cor de pêssego, e a arremessa na pista com aquele plaft-shhh tão bonito.

Ela fica lá sentada, toda sapatão, e dá uma palmadinha no colo.

Você se senta. Você não teve tantos namorados, nem namoradas, e nunca ninguém — e com certeza ninguém que você tenha paquerado no passado — fez esse gesto para você. Você está calma, contente, um pouco bêbada. Só uma menina sentando no colo da sua menina.

As mãos dela chegam aos seus seios antes que você possa fazer qualquer coisa. Você as agarra com as suas e as afasta com delicadeza. Ela volta com as mãos. Quando as retira pela segunda vez, você consegue sentir a fúria dela; não consegue vê-la, mas o cheiro dela muda, como o de um pano de prato barato deixado sobre um fogareiro elétrico aceso. Ela se fecha ao seu redor como uma planta carnívora, prendendo seus braços junto ao tronco.

Ela se aproxima do seu ouvido. O que você está fazendo, ela diz.

Não soam como palavras nem como uma pergunta; soam como um ronronar.

“Não”, você diz.

Ela prende seus braços com mais força. “Puta merda, como eu te odeio”, ela diz. De repente ela parece bêbada, embora você estivesse prestando atenção nela e saiba que ela só bebeu uma cerveja. Mas você também bebeu cerveja e não sabe o que fazer.

“Eu te odeio”, ela repete. Os ruídos da pista de boliche vêm de um

lugar muito distante; você sente que seu coração vai parar de bater.

Você não é mãe de ninguém; nunca ninguém disse que te odiava.

Você se levanta e olha ao redor com um ar atordoado, procurando os outros, que olham para longe de propósito. “Acho que a gente precisa ir embora”, você diz. “Eu acho…”

Mas, quando se levanta, ela de fato parece bêbada. Como vocês vão chegar em casa? Você pega sua carteira, mas não tem dinheiro, e depois de alguns minutos um dos poetas vem falar com você. “Mil desculpas”, ele repete algumas vezes, embaralhando as palavras, apesar de não esclarecer o motivo pelo qual está pedindo desculpas

— mas aí ele põe uma nota de vinte dólares na sua mão, para que você peça um táxi. Você diz que vai devolver o dinheiro, mas agora percebe que nunca devolveu.

Quando o táxi sai do boliche, você vê o carro dela reluzindo no estacionamento e reza para que não seja guinchado até amanhã de manhã. No banco de trás do táxi, ela fecha os olhos e começa a resmungar um monólogo que dura a corrida inteira. Sua desgraçada, eu te odeio, vai se foder, Carmen, vai se foder, vai se foder, filha da puta, sua desgraçada, sua vagabunda do caralho, vai se foder…

Você se sente péssima arrancando o lençol da cama. Você vai dormir no sofá. É isso que as pessoas fazem quando estão chateadas com a pessoa que iria dormir ao lado delas. Você nunca fez isso, mas já ouviu falar. Já viu nos filmes. Você não consegue achar o pijama. Você vai até a sala, só de calcinha e sutiã, e se encolhe no sofá quebrado com as molas que cutucam a lateral do

seu corpo. Você se enrola no lençol. É aquela malha jérsei macia e elástica, do mesmo tipo que você tinha na faculdade.

Ela arranca o lençol; você estremece.34 “O que você está fazendo?”, ela pergunta, em pé, te olhando de cima. Você não diz nada. Então, como ela não sai do lugar, você diz: “Estou chateada e gostaria de dormir sozinha, por favor”.

Ela se ajoelha ao lado do sofá como uma suplicante com uma oferenda. Você pensa que talvez ela tente te beijar, ou talvez transar com você, mas você não vai deixar, você não vai deixar você não

É como se alguma coisa tivesse se rompido. Você sai rolando do sofá, se levanta e corre para o outro lado da sala. Ela desaparece no quarto e volta com sua mala. Com um berro tremendo, ela a arremessa pelo cômodo, e a mala se choca contra a parede. Ela agacha e pega alguma coisa — sua bota ModCloth chiquérrima, o primeiro par de sapatos em que você gastou tanto dinheiro — e joga em você. A bota gira e ela erra. Ela joga o outro pé, e também erra, mas derruba um porta-retrato da parede, e mais tarde você vai tentar entender se ela não acertou nenhuma vez porque você desviou muito rápido ou porque ela era muito ruim de mira, mas nunca chegará a conclusão nenhuma.

Ela agacha para pegar alguma outra coisa, e você se vê voltando às profundezas da experiência infantil: descontraidamente correndo

mais rápido que seu irmão caçula, que cismou em jogar uma coisa nojenta no seu cabelo. A casa é um círculo, então você se afasta dela, aproximando-se da cozinha, e ela persegue você, como seu irmão perseguia quando tinha sete anos, e você atravessa correndo o escritório e o corredor e por fim entra no banheiro. Você bate a porta e tranca a fechadura, e um milissegundo depois você se afasta da maçaneta num pulo quando a porta inteira chacoalha, como se tivesse se lançado contra ela. Ela continua gritando. Você se apoia na parede oposta e desliza até o chão. Parece que ela está tentando derrubar a porta.

Você fica lá dentro por um tempo, mas está sem seu celular e não consegue precisar por quanto tempo. Por fim, o barulho cessa. O silêncio é macabro. Você se levanta e destranca a porta. Você sai do banheiro tremendo, chorando. Ela está sentada no sofá, olhando para o nada como uma boneca. Ela se vira e olha para você com uma expressão frouxa.

“O que aconteceu?”, ela diz. “Por que você está com essa cara de chateada?”

Nessa noite, a arma é disposta sobre a cornija da lareira. A arma metafórica, é claro. Se houvesse uma arma concreta, você provavelmente estaria morta.

Casa dos Sonhos como percepção da

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