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No fim daquele outono, ela te convida para ir com ela ao jogo de futebol em que Harvard enfrenta Yale. É uma das tradições favoritas da sua namorada, e ela foi de avião até lá especialmente para a ocasião, mas precisa voltar para Indiana antes do esperado. “Se você for de carro, pode me trazer de volta”, ela diz. Você vai de carro de Iowa até Connecticut para encontrá-la.

E assim, depois de um dia de temperaturas outonais e golinhos num frasco de uísque e pessoas de casaco de pele e garrafas de espumante caro rolando pelo chão como se fossem latas de Budweiser, você dorme feito uma pedra numa cama de hotel desconfortável. Na tarde seguinte — depois de atrasos e um brunch com as amigas dela e mais atrasos —, vocês se arrumam para ir embora. Ela dirige muito mal — nada mudou desde aquela primeira viagem para Savannah —, então você se senta no banco do motorista do seu carro sem perguntar antes.

Vocês se afastam de New Haven alternando entre rádio, conversa e silêncio. Passam por Connecticut e Nova York. Na Pensilvânia, anoitece mais cedo e a chuva enverniza o asfalto. Em algum ponto da extensão infinita e acidentada desse estado, o estado em que você cresceu, ela para de falar no meio da frase.

“Por que você não quer me deixar dirigir?”, ela pergunta. Ela fala com uma voz controlada, calculada, como um cachorro que acabou de espetar o rabo; não há nada acontecendo, mas há alguma coisa errada.

“Pra mim, tudo bem dirigir”, você diz, o pavor se acumulando entre suas omoplatas.

“Você está cansada”, ela diz. “Está cansada demais pra dirigir.”

“Não estou”, você diz, e não está mesmo.

“Você está cansada demais, vai acabar matando a gente”, ela diz.

O tom de voz dela continua o mesmo. “Você me odeia. Você quer que eu morra.”

“Não te odeio”, você diz. “Não quero que você morra.”

“Você me odeia”, ela diz, e a voz dela sobe meia oitava a cada sílaba. “Você vai matar a gente e não está nem aí, sua vagabunda egoísta.”

“Eu…”

“Sua vagabunda egoísta.” Ela começa a socar o painel do carro.

“Sua vagabunda egoísta, sua vagabunda egoísta, sua vagabunda…”

Você pega a próxima saída e para num posto de gasolina. Ela escancara a porta do passageiro antes mesmo de o carro parar e fica andando pelo estacionamento como um garoto adolescente que está tentando se controlar para não dar um soco numa parede. Você fica sentada no banco do motorista, olhando-a andar de um lado para o outro. A vontade de chorar existe, mas está muito distante, como se você estivesse drogada. Quando ela começa a andar de volta para o carro, sem tirar os olhos do seu rosto, você se apressa para desafivelar o cinto de segurança e corre para o banco do

passageiro. Você não quer que ela vá embora sem você, e acha que ela seria capaz de fazer isso.

Depois, as montanhas úmidas e escuras passam a emoldurar o caminho. Você se lembra de atravessar a Pensilvânia perto do Natal do ano anterior e de ver caminhões tombados no acostamento dessas mesmas estradas, dos motores chamuscados. E carros também, parados na lateral da rodovia, pegando fogo como se não fosse normal. Ela dirige a 120, 140 quilômetros por hora, e você precisa desviar os olhos do ponteiro que sobe cada vez mais. As sombras dos veados passam diante de vocês, atravessando cortinas de chuva. Eu vou morrer, você pensa. Você reza para que um guarda as detenha, procurando no espelho as luzes azuis e vermelhas que nunca aparecem. Você segura firme a porta quando ela acelera, e quando o carro se precipita levíssimo por sobre um dos montes. “Pare com isso”, ela diz, e corre ainda mais. “Durma”, ela ordena, mas você não consegue dormir.

É meia-noite.26 Vocês entram em Ohio, um estado pelo qual você sempre achou um grande saco passar de carro, mas agora a adrenalina — que cedo ou tarde vai se esvair, embora ainda não tenha acontecido — faz suas mãos tremerem no colo. Vocês passam por animais mortos às dúzias: guaxinins que pneus em alta velocidade estouraram ao meio, veados cujos corpos musculosos ficaram contorcidos como o corpo de um dançarino que caiu.

A chuva diminui, depois para, e vocês chegam a Indiana.

No último trecho da viagem, quando ela sai da rodovia principal e pega uma estrada vicinal de pista simples ao sul de Bloomington, o

carro começa a pender para a esquerda, encostando na linha dupla, passando por cima dela, e depois para a direita, e a porta não raspa numa cerca de metal por muito pouco. Quando você olha, ela está com a nuca encostada no apoio de cabeça, de olhos fechados. Você berra o nome dela e o carro se endireita.

“Agora é você quem está muito cansada”, você diz. “Você está dormindo. Por favor, me deixa dirigir nesse final. Estamos quase chegando.” Você nunca esteve tão acordada.

“Estou ótima”, ela diz. “Eu mando no meu corpo. Ele faz tudo que eu quero.”

“Por favor, para o carro.”

Ela faz bico, mas não diz mais nada e não para o carro. De quando em quando, o carro dá uma guinada bêbada. Vocês passam por um outdoor que pergunta se você sabe para onde iria após a morte. De dia, à luz do sol, esse tipo de chantagem emocional faria que você revirasse os olhos. Mas agora ela te atinge, porque dialoga com um velho medo de infância, e você solta um gemido de medo, depois tenta reprimi-lo quando é tarde demais.

Quando vocês chegaram a Bloomington — quando você a ajudou a encontrar a Casa dos Sonhos —, o lugar era absurdamente claro.

Era fim de primavera, e as árvores estavam elétricas, com um tom de verde néon novíssimo. Agora as folhas queimam em vermelho e laranja, e as marrons caem rodopiando dos galhos. A estação está quase morrendo e vocês também vão morrer, você tem certeza, hoje à noite.

O carro vira na entrada da casa por volta de quatro da manhã e fica ali, em silêncio. Você sente que vai vomitar. As folhas caem na lataria do carro e o vento as leva para longe com um ruído de papel

raspando. Finalmente ela estende o braço para desafivelar o cinto, mas você continua olhando a grama. Duas silhuetas escuras estão atravessando o quintal, parecidas com cães, mas não são cães.

Coiotes? Seria uma bela visão a qualquer momento, mas, em contraste com os terrores dessa noite, é tão linda que você sente o rosto formigar.

“Olha”, você diz baixinho, apontando o dedo.

Ela leva um susto, como se você tivesse batido nela. Então ela vê o que você vê. Você espera o murmúrio dela, a doçura dela.

“Vai se foder”, ela diz. Ela se aproxima de você e fala dentro do seu ouvido. “Você me vem com ‘olha’ sem dizer mais porra nenhuma, eu penso que você está apontando para alguém que vai matar a gente, caralho. No meio da noite. Que merda você tem na cabeça?” Ela abre a porta do carro com um chute; os coiotes disparam em direção às árvores. Você observa enquanto ela sai pisando duro pela Casa dos Sonhos. A silhueta dela se projeta contra uma série de janelas iluminadas — cozinha, banheiro, quarto

— e de repente todas as luzes se apagam.

Você sai do carro e se senta, apoiada na fachada da casa, vestindo seu casaco ao contrário como uma bata. Os coiotes reaparecem, depois de um tempo, trotando tranquilos pelo gramado.

Corças também, e raposas, e nenhum dá a mínima para você, como se você fizesse parte da paisagem, como se nem estivesse ali.

Você também poderia ir dormir. Ou poderia sentar na cozinha e ver a cena por trás do vidro da janela. Mas isso, você pensa, seria como pôr essa noite num museu — distanciada, esquecida antes da hora. Não tente passar por cima disso, você pensa. Não esqueça

que isso está acontecendo. Amanhã é provável que você não queira mais pensar nisso. Mas, agora, tente se lembrar.

Sua bunda fica dormente na grama. Diante do gramado, a vida selvagem se revela como numa peça de teatro. Seu carrinho, audaz como uma égua de corrida parada, quieta e brilhante, na entrada, enfim esfriando depois da longa viagem que fez. Dos seus lugares nas árvores, os pássaros piam o Código Morse do começo da manhã. Um bando de estudantes bêbados se amontoa no topo do monte que faz fronteira com o campo de golfe e fica lá te olhando — quiçá pensando que você é um fantasma — antes de descer para a rua, vacilando. “Andando e sonhando com a América perdida de amor”, Allen Ginsberg escreveu, “passaremos por automóveis azuis no estacionamento a caminho de nosso solitário refúgio?”27

E da mesma forma que nossa mão se vira mais rápido quando a porta está prestes a se abrir, a noite pré-aurora acelera um pouco logo antes de o dia nascer. E, embora você não fosse se libertar dela até o próximo solstício de verão, embora fosse viver ao lado dela o momento em que a estação se precipitaria rumo à escuridão, nessa manhã a luz se infiltra no céu e você está presente de corpo e mente, e você não esquece.

Pela manhã, a mulher que te fez adoecer de medo faz café, brinca com você e te beija, e te faz cafuné como se nada tivesse acontecido. E, como se você tivesse dormido, mais um novo dia começa.

Casa dos Sonhos como thriller de

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