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CAPÍTULO III – ANCESTRALIDADE AFRICANA: caboclos viajantes em processos

3.2 Casca Americana (Ameríndia)

O marco teórico desse estudo e meu marco de referência no corpo é a casca Americana. Inicio considerando-a ponto de partida de minhas experiências que, em idas e vindas no tempo histórico para as configurações das cascas, optei em mergulhar fundo em períodos que não são apenas meus, mas de gerações que transitaram por esse continente, que também é conhecido pelo plural ―Américas‖ e pela expressão ―Novo Mundo‖.

Na América do Sul, os povos conhecidos como latinos, também foram colonizados por europeus que trouxeram grandes números de africanos vindos, principalmente, do Congo e Angola. Um sincretismo de grande difusão de elementos de inspiração africana e portuguesa, como pode ser visto na aproximação das imagens de algumas manifestações culturais presentes no território americano e europeu (Figuras 12 e 13).

Figura 12 Congo de Barranquilla/Colômbia (Fonte: Arquivo www.carnavaldebarranquilla.org/)

Figura 13 Dançarino Festa de Nossa Senhora dos Altos Céus/Portugal (Fonte: Arquivo www.agenda-cb.com/)

É interessante observar que os cones30, como adereço de cabeça utilizados nessas manifestações, já apontam uma aproximação com alguns elementos utilizados pelos povos

tchokwe, como na CHIKUNZA (Figura 14), uma estatueta de mascarado apresentada com as

mãos sobre o ventre e a cabeça com um prolongamento cônico, lembrando um comprido corno. Esse prolongamento é o fazer ímpar do poder de penetração de exu, que faz a intermediação entre o aiyê (terra, mundo material) e o orun (céu, mundo espiritual). Como mensageiro divino entre os humanos e os deuses, agrupa, agrega, coordena uma encruzilhada (norte, sul, leste, oeste). Exu é associado aos portões (divisão interior e exterior, conhecido e desconhecido) e está no centro, e na tábua divinatória que nos liga ao céu (o cosmos, o universo). É o espião para Ifá, que junto com as ferramentas de Ogum, as civilizações abriram os caminhos. Ele é extremamente popular, coordena todos os rituais. O cone também é um símbolo ancestral ligado às práticas da iniciação, da caça e de outros rituais masculinos.

Chikunza é também um espírito mau que torna as pessoas possessas, digo, incorporadas,

porque o conhecedor tem o corpo como um veículo.

Figura 14 Estatueta Chikunza - Nordeste de Angola (Fonte: Arquivo www.multiculturas.com/alberto_pinto)

30 Os cones são símbolo de expansão, crescimento e restituição na cultura africana (SANTOS, 2008). Elo de

Apesar do Congo de Barranquilla do Caribe Colombiano na América do Sul trazer algumas aproximações estéticas com algumas manifestações portuguesas, a exemplo da Dança dos Homens na Festa da Nossa Senhora dos Altos Céus e dos Caretos, me detenho nesta casca americana ao personagem que venho acompanhando desde criança e que faz parte de minhas pesquisas no Brasil a partir do ano de 1993 – os Caboclos de Lança (Figura 15).

Figura 15 Caboclos de Lança do Nordeste Brasileiro

(Fonte: Arquivo Zé Leão, 2011)

Na imagem da figura acima é possível perceber o cortejo que os folgazões realizam como um percurso de interação com o ambiente, trazendo elementos em seus corpos que são específicos da zona rural, de onde tiveram suas origens, dialogando com esses elementos na zona urbana, através das formas, das cores, e também das melodias tiradas do improviso, seus ritmos e expressões cênicas protagonizadas com o público presente, que encontra nas manifestações culturais brasileiras sua linguagem.

O Brasil é o único país nesse continente que tem como língua oficial o português, em função de mais de 300 anos de colonização portuguesa. Possui uma casca social como uma das mais multiculturais do mundo, sendo formada por descendentes de europeus, indígenas, africanos e asiáticos com maiores seguidores do catolicismo.

Como já apontava Roger Bastide (1985) referindo-se ao Brasil como ―Terra de

Contrastes‖, numa antropologia aplicada, tudo para mim parecia inverção. Desde pequeno

tinha um certo receio, medo, quando ouvia e via os brincantes Caboclos de Lança, mas que estavam a brincar com um badalar de sinos estrondosos, com o corpo todo coberto por sua arrumação, como se referem aos seus trajes – neste estudo generalizado como máscaras da folia do Maracatu Rural, apresentadas antes e durante o carnaval.

Uma folia que também é uma manifestação religiosa do culto à Jurema31, surgiu na Zona da Mata Norte do Nordeste brasileiro, entre o final do século XIX e início do século XX, criada na senzala dos engenhos de cana-de-açúcar e que sofreu a forte influência indígena da região. Uma dança com formação de cortejo que inclui momentos de circularidade, o que é muito característico na cultura indígena, criado em função de um ambiente de cenário de conflitos em que nasce o caboclo. Daí o nome maracatu, ―guerra bonita‖, em tupi-guarany.

Pernambuco possui nove povos indígenas (FUNAI, 1998), os Atikum (em Floresta e Carnaubeira da Penha), os Fulniô (em Águas Belas), os Kambiwá (em Inajá, Ibimirim e Floresta), Pipipãs (em Floresta, antes integrados aos Kambiwá), os Kapinawá (em Ibimirim, Buíque e Tupanatinga), os Pankararu (em Petrolândia, Tacaratu e Jatobá), os Truká (em Cabrobó), os Tuxá (em Inajá) e os Xucuru (em Pesqueira). A influência dos povos indígenas nessa região, em especial os Atikum, aponta neste grupo, terra de Remanescentes de Quilombo em Conceição das Creoulas (município de Salgueiro-PE).

Com as guerras entre portugueses, holandeses e povos indígenas brasileiros, as nações e povos indígenas derrotados perderam as suas terras, muitos foram mortos, outros foram feitos escravos com as suas famílias, e os costumes, as religiões e as tradições foram perdidas. Mas desse processo foi sendo formado o povo brasileiro (RIBEIRO, 1993).

Das tradições herdadas dos primeiros habitantes do Brasil, a dança dos caboclinhos e dos índios localizados na Zona da Mata Norte de Pernambuco são criações dos descendentes dos índios que participaram da Assembléia acontecida em 1645, da qual os colonizadores vindos de Europa reconheciam a existência das muitas nações que viviam nestas terras e os seus direitos. Quando os caboclinhos saem no carnaval ou em alguma de suas festas é essa tradição que é resguardada, retomando inclusive o ritual do Toré utilizado pelos povos indígenas como uma dança que possui significados místicos, de encontro com os "encantados", e no centro da qual está a jurema (bebida), celebrando o sagrado. O Toré é realizado a sete quilômetros da aldeia, num lugar sagrado chamado Ouricuri. As cantigas estão voltadas para os seguintes elementos: a natureza (frutas, peixes água), a religião católica

31 Muito utilizada pelos índios nordestinos, pode ser uma planta, uma bebida e uma entidade O culto Jurema

abrange práticas oriundas do Espiritismo, Catolicismo, da Umbanda, da Pajelança, das magias Européias e orientais. Busca o contato com o mundo invisível. O juremeiro também do Candomblé, vê além da forma material que as coisas possuem. Ele sabe que todas as coisas e acontecimentos possuem a sabedoria divina e passa a aprender conscientemente a lidar com elas obtendo a chamada felicidade interior. A árvore jurema é um símbolo de força, de energia e poder. A sua casca possui alta concentração de N-N-dimetiltriptamina (DMT), uma substância capaz de promover intensas alterações de consciência e percepção (GRÜNEWALD, 2008).

(São Miguel, a Trindade), o mar (a pesca), e as figuras místicas (os Tapuias Canindé e

Jurema).

Em minhas pesquisas sobre os povos indígenas em 1998, quando na Gerência de Esporte e Lazer Comunitário da Diretoria de Esportes da Secretaria de Educação do Estado de Pernambuco, pude presenciar nas aldeias dos nove povos indígenas, que o Toré consiste na marcação mais forte de um pé sob a terra com todos os participantes unidos em um mesmo grupo que deslocam-se em filas, fileiras e círculos. As pessoas se dividem em três grupos, ou melhor, em três círculos: dos cantadores e tocadores; das crianças e dos adolescentes; dos homens e das mulheres. Com a fusão de várias manifestações e ancestralidades de povos nessa região da Mata Norte, surgiu o Maracatu Rural com seus Caboclos de Lança que incorporaram esses deslocamentos.

Os Caboclos de Lança realizam a sua dança circular ao redor de outros personagens no maracatu, como baianas (que antes eram só homens vestidos de mulher porque mulheres não podiam participar), arreiamar ou caboclos-de-pena, rei e rainha, dama do paço ou mulher da boneca negra (calunga), dentre outros, fazendo a proteção do cortejo, que é o percurso realizado por todos os integrantes deste Maracatu, seja pelas ruas ou praças das cidades, seja pelos canaviais.

Verdadeiros guerreiros de Ogum, como também são conhecidos esses folgazões brincantes Caboclos de Lança, saem possessos pelo seu percurso ao tomarem o azougue (antes só azeite de dendê e agora uma mistura de cachaça com limão e pólvora), como preparo que não pode ser quebrado e só os mais antigos sabem o significado que os mantêm possessos no seu processo de manifestação (BONALD NETO, 1987). Também possui outros preparos como seus banhos com ervas, além da abstinência sexual, sete dias antes da festa que envolve o afro-carnaval. Esta abstinência se caracteriza até os dias atuais, uma vez que todo o trajeto dos brincantes, que atualmente possuem mulheres na brincadeira, é realizado em ambientes diferenciados, como no terreiro de candomblé: mulheres para um lado, homens para o outro lado. Este contexto de gêneros pode ser visto nas figuras a seguir,

Figura 16 Mulheres brincantes do Maracatu Rural (Fonte: Arquivo Zé Leão, 2011)

Figura 17 Caboclos brincantes do Maracatu Rural (Fonte: Arquivo Zé Leão, 2011)

Como mostram as imagens, as mulheres brincantes sempre estão afastadas dos homens durante o carnaval, seja nos dormitórios cedidos pelas prefeituras, seja nos transportes rodoviários que levam os brincantes para os locais de apresentação. Com base em Babatunde Lawal (2011), é preciso entender que as sociedades africanas têm a terra mãe como representação maior. Mãe de todas as coisas vivas sobre a terra. Chamam-se a si mesmos filhos de uma mesma mãe que tem homens e mulheres, mas apresenta uma aproximação com o poder feminino. Possui o lado direito associado à força física masculina, e o lado esquerdo com a doçura feminina, com o segredo espiritual das coisas mais secretas.

Para Babatunde Lawal (2011), numa perfeita interação entre os gêneros, segundo a lenda, Obatalá/Oxalá fez as esculturas que receberam vida. Nessa escultura o corpo é uma máscara. É como se a utilizássemos como consultas apresentadas por elas. O meu mundo é o recado, o céu é a casa e o ser humano entra nesse mundo através das máscaras. Ela é um meio. O mascarado é o triunfo do espírito humano. Conceito que faz da vida uma performance, porque vivos fazemos apresentação. Quando a pessoa morre deixa a sua máscara, sua veste (ilê-ori) retoma para casa, passa então a ser egungun (Alma ancestral dos mortos). Um desdobramento da incorporação que se utiliza uma vestimenta extremamente enfeitada, que fora de uso ficam guardadas e só se faz para ancestrais respeitados. Sua dança é uma forma de oração, celebração da vida sobre a morte. Não morremos nunca. Queimamos, inflamamos, por tanta elevação.

Na apresentação, o mascarado Caboclo de Lança possui uma indumentária (arrumação) que encanta e hipnotiza os olhares. Na cabeça, um lenço e sob ele uma cabeleira enorme de papel celofane de variadas cores – verde, dourado, azul, rosa, vermelho, prateado que eles chamam de chapéu de funil. As cores relacionam-se as cores dos Orixás de Cabeça (Ory) no culto a religião do candomblé. Sob o corpo, a gola do caboclo (espécie de manto)

bordada pelo próprio caboclo-cortador-de-cana, em seu conjunto de miçangas e lantejoulas, forma um mosaico de brilho e de cores, cujo desenho quem escolhe é ele próprio. Vai de flores grandes, pequenas e símbolos de times de futebol, bandeiras, até homenagens. Todo o seu traje faz parte de sua camuflagem como um guerreiro, que ninguém pode conhecer e reconhecer quem ele é por detrás de toda aquela máscara de indumentária (Figuras 18 e 19).

Figura 18 Gola do Caboclo com o símbolo do Time do Santa Cruz Futebol Clube

(Fonte: Arquivo Zé Leão, 2011)

Figura 19 Gola do Caboclo com representação de animais (Cavalo de Exu)

(Fonte: Arquivo Zé Leão, 2011)

Nas mãos, o guerreiro leva sua arma: uma lança ou guiada enorme fazendo suas jogadas (Jogo de Guiadas / Figura 20), que é enfeitada de fitas coloridas e de ponta afiada, pintada de vermelho em alusão simbólica ao sangue tirado do combatente no passado. Por de baixo da gola ou manta, está o surrão (chocalhos presos à altura dos rins. Seu grito organizado) que chega a pesar de 10 a 15 quilos – estrutura que leva pendurados cinco chocalhos32. Embaixo de tudo que se pode ver, ainda veste o silourão, camisa de manga comprida, óculos escuros, com o rosto pintado com a zarcão (fruta que se tira a tinta vermelha) e o cravo branco entre os lábios apresentando o sagrado. O guerreiro se esconde no corpo do trabalhador rural, ainda esquecido e desvalorizado quanto muitos dos seus antepassados. Corpo que por detrás de sua arrumação, suas expressões ainda mostram gestos da lida rural (Figura 21).

32 Os Chocalhos em todo o mundo são associados, em sua origem, a cultos religiosos, cerimônias e rituais

mágicos. Servem para chamar a atenção dos bons espíritos ou afastar os maus. Os árabes prendem chocalhos metálicos na roupa das crianças para afastar a febre, os pajés indígenas os agitam em cerimônias de purificação etc. Pelos indígenas é denominado de ―Maraká‖ (FRUNGILLO, 2003).

Figura 20 Jogo de guiada e surrão nas costas (Fonte: Arquivo Zé Leão, 2011)

Figura 21 Caboclo com seus artefatos no corpo (Fonte: Arquivo Zé Leão, 2011)

Os artefatos utilizados no corpo configuram uma estética que é passada à gerações como aprendizado significativo de uma persistência comunitária local que também é global, como vamos poder ver nas cascas a seguir. Os artefatos ligados ao movimento no corpo-arte configuram a narrativa da metáfora do diálogo vivo nos brincantes, numa máscara que revela ligação do ser humano ao espírito dos antepassados e que no mundo contemporâneo transita segundo a simbologia, a funcionalidade lúdica e o esvaziamento do seu conteúdo original.