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CAPÍTULO I – TRÂNSITO METODOLÓGICO

1.4 Tratamento dos Dados

No tratamento dos dados assumi uma perspectiva aberta à recepção da informação e forma comunicativa para não me limitar às conseqüências advindas da reprodução, o que implica o conhecimento ser construído nas relações interativas entre o ―eu‖ e o ―outro‖. Sendo assim, Bakhtin (2003) contribui para o entendimento da linguagem como mediação, como atividade constitutiva, que tem no processo de interação seu locus produtivo, no qual o reconhecimento do ―eu‖ passa pelo reconhecimento do ―outro‖, ambos mediados socialmente. Portanto, coube uma abordagem qualitativa que apontou para a prática da pesquisa que possui aspectos sociais, ativistas, antropológicos, mas que teve o seu foco no estético, no estudo do sujeito que faz esta manifestação, onde o gênero é a paródia nos arquétipos, com tensões e contrapontos.

Ao considerar a cultura como campo de pesquisa, que possui um rigor qualitativo, este rigor passa por não poder dispensar a compreensão do fenômeno das ações humanas vinculadas à cultura que repousam sobre a multicausalidade, ou seja, sobre um encadeamento de fatores, variáveis, que se conjugam e interagem. Não é possível interpretar sem ir à história da cultura pesquisada, às relações políticas, percebendo ideias, movimentos, mais híbridos.

Nas culturas híbridas se estabelecem uma relação no movimento de contato ao longo da história. Às vezes, o contexto perde a densidade de análise do objeto e, desta forma, se fez necessário um cuidado ao retirar os recortes, ao delimitar referências para o estudo. Pois, considerando que a construção humana parte da condição humana, o movimento histórico não pôde ser dispensado. As rupturas, negações, lutas, construções entrelaçadas no tempo são construções humanas temporais, e construir isso com os atores sociais foi significativo ao compreender a história de vida desses atores vinculados ao ambiente.

25 Segundo Pollak (1997), essa memória está adormecida no inconsciente das chamadas ―populações de

Os brincantes, a multidão, a memória e a história são muito mais que a extensão territorial de um espaço e tempo linear. Sendo assim, ―é preciso combater o tempo ‗homogêneo e vazio‘ que considera não apenas o ‗movimento das ideias‘, mas também sua imobilização‖ (BENJAMIN, 1987, p. 217).

É no trânsito dos diferentes lugares que os sentidos são educados, o corpo encontra seu desejo em seus espaços singulares conformadores da memória. Portanto, reúno nesses espaços mergulhos da interioridade do eu, da ancestralidade africana e da memória, como exercício da história inscrita nos corpos, que para Benjamin (1987) trata-se da memória subjetiva e social, instituída de formas e modelos de comunicação, revelada no significado da experiência daquele que viajou muito – no espaço e no tempo espacializado –, que presenciou corporalmente e que incorporou pelo aparato sensorial, ou então aos que ouviram as narrativas como aprendizes ambulantes, antes de se fixarem em sua pátria ou no estrangeiro. Como aponta Walter Benjamin (1985, p.197):

No sistema corporativo associava-se o saber das terras distantes, trazidos para casa pelos imigrantes, com o saber do passado [...] o narrador é um artesão cuja matéria é a vida humana (Ibidem, p. 221) [...] Constroem-se assim, na objetividade da narrativa, subjetividades distintas que sejam capazes de reelaborar e entrelaçar a história e a memória (Ibidem, p. 221).

É na memória no corpo, de princípio da inseparabilidade, que estamos interligados e susceptíveis de circunstâncias positivas e negativas. Tudo está conectado no universo criando uma relação de interdependência, interconectividade nos percursos em que os sentidos do corpo são educados, treinados também para registrar ritmos e desafios. O lugar é local da experiência humana assumido pela vivência (VAZ, 2004). Portanto, é pelo exercício da memória que o indivíduo se mistura a outros em seus percursos, seus esconderijos e personagens – ruas tortuosas, fontes, lojas, parques, escolas, todos os recantos e móveis da casa, e ainda as imagens diversas do pensamento, pai, mãe, mendigos, anjos, comerciantes, mestres-narradores para quebrar o encanto que separa história e memória da experiência do presente. Experiências que revelam configurações sobre corpo.

A memória ancorada no corpo é composta por um momento somático com rastros e vestígios que nas brincadeiras também são úteis para o processo de formação dos indivíduos. Daí a necessidade de compreender que no processo de remodelamento corporal, ao exemplo do longo desenvolvimento do processo das práticas corporais, há necessidade de alargamento do universo documental, com o redirecionamento do olhar que inquire a busca de elementos com o diálogo sempre atento, com um conjunto de questões, fontes e procedimentos abertos.

Esta lógica compreende apresentações das culturas como produto sócio-histórico e de sincronicidades de coincidências significativas.

Geertz (2008) apresenta a cultura interessada na interpretação dos fenômenos sociais – acontecimentos, comportamentos, instituições e processos – que não pode deixar de considerar o mundo simbólico (Teia Simbólica). A história no mundo simbólico tem um grande campo, entrando no delírio e na ausência de comunicação, oferecendo ao indivíduo um conjunto de possibilidades latentes que se exercita a liberdade de cada um por meio da linguagem, que enuncia ideias no corpo e estas ideias podem também se transformar em convenções para um grupo social.

Ainda que a linguagem que manifesta a corporalidade não seja possível ser apreendida plenamente nas formas textuais, orais, iconográficas, monumentais, pois são fugidias, difíceis de serem registradas, elas podem ser aproximativas de compreensão como fato histórico. As práticas corporais são impossíveis de ser reduzidas a quaisquer formas discursivas que não sejam as próprias práticas no seu momento de realização. No entanto, este estudo se tornou desafiador e fascinante.

As dificuldades inicialmente foram os materiais necessários para investigar um objeto complexo como os brincantes do afro-carnaval, suas fontes a recorrer, pois pude constatar que o corpo não deixa marcas tão precisas para estudo. Os registros dos quais pude dispor foram as mediações. Nesse sentido, foi preciso compreender como aprendem o que fazem corporalmente, quem ensina e realiza as atividades e manifestações desenvolvidas e experimentadas a partir das ―falas‖ preservadas dos brincantes, documentos, fotos e vídeos.

Foi preciso compreender as transformações, rupturas e as permanências configuradas nos corpos de brincantes do afro-carnaval, com mudanças que teriam sido impressas no corpo na passagem da configuração de um brincante para o outro nas práticas de manifestações culturais. Esta dinâmica, recheada de um universo documental pouco explorado no campo educativo, tem no corpo, fonte de pesquisa com novas abordagens de enfrentamento, como objeto e ao mesmo tempo como uma ―velha fonte‖ de informação que pode oferecer contribuições sobre os processos de produção e reprodução cultural, que pode alimentar o diálogo, superando dificuldades, fornecendo conhecimentos sobre processos que há bem pouco tempo estavam marginalizados pela pesquisa nas Ciências Humanas e Sociais Aplicadas, entendendo o corpo em seu todo ou em seus fragmentos, com suas incertezas. Além de considerar também outras fontes como as imagéticas e documentais, sem perder de vista o foco na educação.

Foi importante registrar que quando o brincante começa a brincar, toda a memória adormecida aflora e sua performatividade flui com facilidade se ele possui um acervo de procedimentos capazes de responder às mais diferentes situações, dadas pelas circunstâncias do contexto da brincadeira. Os brincantes junto com o público, que também faz parte da brincadeira, improvisam livremente com uma dimensão particular do seu modo de ser, que permanece mais ou menos oculta em seu cotidiano.

As lembranças pessoais estão articuladas com as lembranças de outras pessoas num jogo de imagens recíprocas e complementares que se reencontram na comunidade através dos gestos memorizados pelos brincantes. E quando se aprende, é difícil desaprender, ficando o saber incorporado naqueles que brincam. Para Connerton (1993, p. 83), quando se tornam hábito, as apresentações exercem forças persuasivas.

As possibilidades de reflexões dos dados apresentados até aqui, são exatamente as construções performativas diversas, oriundas de aprendizados de natureza diferente, ou seja, a forma como os saberes são transmitidos, como suas performatividades são construídas. O que me levou a perceber a necessidade de discutir processos educativos que fazem os brincantes carnavalizados, que apresentam sensibilidade humana, com um olhar semiótico.

Com Geertz (2008), recorri ao tratamento dos dados para a análise dos tipos de linguagens, signos, sinais, códigos, de qualquer espécie e de tudo que está nele implicado e passível de interpretação cultural. Em todo processo de signos ficam elementos deixados pela história, pelo nível de desenvolvimento das forças produtivas econômicas, pela técnica e pelo sujeito que as produz, tais como aparecem nas danças e em outras aplicações.

O campo das linguagens nos vários aspectos gerais que as constituem são interligadas: como ícone (possibilidade, sentimento, originalidade, liberdade), em que o signo é algo que se apresenta à mente; como índice (ideias de dependência, determinação, dualidade, ação e reação, conflito, surpresa, dúvida, existência), em que o signo indica, se refere ou apresenta; e, como símbolo (generalidade, continuidade, convenções sociais, crescimento, inteligência, réplica, lei), de efeito que o signo irá provocar em um possível intérprete.

O próprio signo e o objeto do signo também podem ser qualquer coisa (uma palavra, uma pessoa, os próprios brincantes), o signo sempre funciona como mediador entre o objeto e o interpretante. O signo pode ser uma mera emoção, ou seja, a qualidade de sentir ternura, desejo, medo, raiva etc. Ele dá corpo ao pensamento, às emoções, reações etc., como externalizações que são traduções mais ou menos fiéis de signos internos para signos externos que serve para comunicar o que já foi instituído e que podem reestruturar o próprio plano da expressão. Sendo assim, interessa ao campo da semiótica como uma cultura organiza sua

própria visão do mundo em que o universo das noções subdivide e sistematiza suas próprias experiências. Desta forma, os signos se referem ou agem como qualquer coisa de qualquer espécie dando capacidade para funcionar.

Ao trabalhar com signos icônicos, possibilitando similaridade, semelhança, lembrança, comparação, Peirce os dividiu em: imagem; diagrama e metáforas. A imagem corresponde ao nível de aparência percebida, sendo assim, compreender o sentimento que passa a imagem dos brincantes. O diagrama corresponde às relações internas a apresentação dos espaços percorridos, a exemplo das trajetórias, diáspora dos brincantes. Já as metáforas aproximam significados produzindo faísca de sentidos, sendo assim, compreende como as configurações dos brincantes podem ser interpretadas.

Ao trabalhar com signos indiciais é preciso questionar sobre a existência de conexões de fatos que indiquem apontar outros signos indiciais existentes. E, ao trabalhar com signos simbólicos se dão condições a lei agir, nos brincantes, nos artefatos no corpo, a exemplo do hino (loa), da bandeira (porta-estandarte), dos deslocamentos nas praças (cortejos), da dinâmica dos cordões (deslocamentos na cena brincante), como convenções sociais que possuem contexto de referência (recorte) e experiência do interpretante que lidam com estes signos.

No percurso para a aplicação da Semiótica, ou seja, ler semioticamente, para Peirce, o primeiro passo é o fenomenológico que leva o indivíduo a contemplar, discriminar e generalizar. O olhar contemplativo torna-se disponível para o que está diante dos nossos sentidos e tem efeito estético produzido em nós. É o tempo que os signos precisam para se mostrarem apelando para nossa sensibilidade e sensorialidade, deixando-os falar. O olhar observacional leva o indivíduo a estar alerta à existência do fenômeno, discriminando os limites que o diferenciam do contexto ao qual pertence, distinguindo e articulando partes e todo no modo particular como o signo se corporifica no universo do qual ele se manifesta e do qual é parte. No olhar generalizável do todo existente deve se compor com outros existentes em uma classe que lhes é própria do interpretante, abstraindo o geral do particular e extraindo de um dado fenômeno aquilo que ele tem em comum com todos os outros de uma classe com atenção as regularidades ocorridas nessa classe.

Para Peirce, a exploração dos poderes dos signos se dá pelos aspectos sugestivo, indicativo e representativo. Explorando o sugestivo, ele corresponde ao que o signo se refere quanto à apreensão do objeto imediato que exige disponibilidade do contemplador e o objeto dinâmico que, nesse aspecto, é o modo icônico. No indicativo que corresponde ao que o signo aplica, o objeto imediato é a materialidade do signo a que ele existencialmente pertence e o

objeto dinâmico, nesse aspecto, é o modo indicial. Já o representativo que corresponde ao que o signo apresenta, sua análise é de convenções culturais, referencias que incluem os costumes e valores coletivos, tipos de padrões estéticos, comportamentais e expectativas sociais. Seu objeto imediato é um recorte que coincide com um estágio de conhecimento e o objeto dinâmico, nesse aspecto, é o modo simbólico.

Estes modos me levaram à compreensão de que cada um possui um arquétipo. Arquétipos suscitam afeto e, por vezes, ―cegam‖ o indivíduo para a realidade tomando posse da vontade. Sendo assim, viver arquetipicamente é viver sem limitações, porém dar expressão arquetípica a alguma coisa pode ser interagir conscientemente com a imagem coletiva, histórica, de forma tal a permitir oportunidade para sair do jogo de polaridades intrínsecas, como passado e presente, pessoal e coletivo etc.

O modo icônico, de olhar fenomenológico um arquétipo aponta começo, acaso, indeterminação, vagueza, indefinição, possibilidade, originalidade irresponsável e livre, espontaneidade, frescor, potencialidade, presentidade, imediaticidade, qualidade, sentimento. Frescor da potencialidade livre e espontânea que nos chega à vida (intuição sensível /indivíduo sujeito de complexidades).

O modo indicial, de olhar fenomenológico um arquétipo é determinado, terminado, final, objeto, correlativo, necessitado, reativo. Ligado às noções de relação, polaridade, negação, matéria, realidade, força bruta e cega, compulsão, ação-reação, esforço-resistência, aqui e agora, oposição, efeito, ocorrência, fato, vividez, conflito, surpresa, dúvida, resultado. Destino que corta a vida (indivíduo objeto de estabilidades, de ritualidades).

O modo simbólico, de olhar fenomenológico um arquétipo é o meio, o devir, em desenvolvimento, dizendo respeito à generalidade, continuidade, crescimento, mediação, infinito, inteligência, lei, regularidade, aprendizado, hábito, signo. O fio da vida como eixo norteador (indivíduo cultural de instabilidades, de ludicidades).

Esses modos de olhar fenomenológico o arquétipo se corporificam a partir da sensibilidade humana. Foi a partir da corporificação dos arquétipos nos brincantes que organizei a operacionalização desta pesquisa, apresentada a seguir.