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O caso Maria da Penha e a criação da Lei nº 11.340/2006 – existe a violência contra as mulheres

O caso da farmacêutica Maria da Penha é emblemático por escancarar a ineficácia do aparelho de justiça brasileiro para conter a violência doméstica contra as mulheres. Ela protagonizou uma luta histórica para a defesa dos direitos das mulheres dando visibilidade internacional para a impunidade gozada por seu ex-marido e pretenso homicida.

Em maio de 1983, Maria da Penha recebeu, enquanto dormia, um tiro de seu marido, Marco Antônio Herédia Viveros, que resultou em uma paraplegia, enquanto ele simulava uma situação de assalto. Uma semana depois, ela retorna do hospital e é mantida isolada dentro de casa sem contato com familiares ou amigos. Em outubro do mesmo ano, durante um banho no chuveiro da própria casa, seu marido tenta eletrocutá-la simulando um acidente doméstico. Após essas agressões, a família se mobilizou para retirá-la do convívio com o marido (Santos, 2006). Somente em janeiro de 1984, ela realizou seu primeiro depoimento no caso e foi oferecida a denúncia pelo Ministério Público. O que se seguiu envergonhou o Brasil diante da comunidade internacional.

O processo penal se arrastou por mais de sete anos favorecido por diversas possibilidades de recurso e pela própria morosidade do Sistema Judiciário brasileiro. Nesse ínterim, Maria da Penha teve de refazer sua vida sem nenhum tipo de proteção específica. Além disso, ela não teve nenhum tipo de facilidade para regularizar seu estado civil e reorganizar a rotina com seus filhos. Seu marido passou incólume por todos esses anos.

Em 1991, Herédia foi condenado a 15 anos de prisão, recorreu em liberdade e teve seu julgamento anulado pelo Tribunal de Alçada Criminal do Ceará em 1995. Em 1996, foi julgado novamente e condenado a uma pena de 10 anos e seis meses, da qual recorreu em liberdade novamente. Já se somavam 12 anos sem que o Estado interviesse contra o agressor homicida.

Diante da morosidade do Poder Judiciário brasileiro, o caso foi levado, em 1997, à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA). Em 1999 – 15 anos após as duas tentativas de homicídio – o Governo brasileiro recebe uma advertência por sua inação no caso Maria da Penha. Por quatro vezes, a Comissão solicitou informações ao Governo e recebeu apenas o silêncio como resposta. Somente em 2002, o Governo brasileiro apresentou considerações e se comprometeu a cumprir as recomendações da Comissão. Após 19 anos e seis meses, o marido agressor foi preso e cumpriu 2 anos de prisão, menos de um terço da pena imputada de 10 anos.

Esse episódio constituiu um ponto de convergência das ações do movimento feminista brasileiro em âmbito internacional; do protagonismo da própria Maria da Penha na exposição da gravidade dos casos de violência contra as mulheres; e da ineficácia da Justiça brasileira (se em um crime contra a vida, em que houve dano evidente, ficou comprovada a ineficácia da justiça, quiçá no tocante aos crimes de menor poder ofensivo). A implicação disso foi a recomendação para que o Brasil tomasse providências para viabilizar a proteção de mulheres vítimas de violência e tornar mais eficaz a ação estatal na persecução penal dos agressores (Santos, 2006; Dias, 2007; Cunha & Pinto, 2007).

A pressão sofrida por parte da OEA e a exigência para que o Governo brasileiro cumprisse as convenções e tratados internacionais dos quais é signatário resultou em uma pressão política importante para viabilizar a elaboração da Lei nº 11.340/2006 (Dias, 2007). Essa lei e suas implicações serão problematizadas a seguir.

A violência contra as mulheres demandava um novo processo jurídico que protegesse as mulheres, especialmente nos casos de maior risco. Em agosto de 2006, foi editada a Lei nº 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha.A ousadia da lei consiste no fato de que ela busca tratar de quatro problemas que desafiaram as intervenções em casos de violência

doméstica ao longo de quatro décadas: 1) lidar com a definição de violência contra a mulher com um status diferenciado dos demais crimes de menor poder ofensivo, 2) viabilizar a manutenção das queixas e pronunciamento das denúncias, 3) garantir a penalização e ressocialização dos agressores e 4) promover a ação de uma rede de serviços na prevenção e intervenção em casos de violência contra as mulheres.

A Lei nº 11.340/2006 tem como uma de suas características mais provocantes o fato de não ser destinada à proteção de todos os brasileiros. Ela de fato se propõe, corrigindo o viés de interpretação de alguns magistrados e outros operadores do direito, a defender as mulheres. Não versa, portanto, sobre proteção dos homens que venham a sofrer agressões e ameaças semelhantes (Dias, 2007; Campos, 2008).

A definição de violência contra a mulher apresentada no texto da lei é uma transcrição quase literal da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Doméstica (Cunha & Pinto, 2007). Essa transcrição reafirma o compromisso do Brasil diante da comunidade internacional em erradicar a violência contra as mulheres e cria os meios eficazes para atingir esse objetivo. A definição de violência contra a mulher facilita a argumentação de operadores de direito que perseguem a execução penal de um agressor e torna-se uma clara referência para que as mulheres possam refletir sobre suas próprias experiências e enquadrá-las como violência.

A dificuldade para a sustentação da queixa em casos de violência contra a mulher foi levada em consideração na Lei nº 11.340/2006. Tal fato possibilitou, na prática, uma reflexão conjunta entre o Ministério Público e a vítima anterior à suspensão da queixa (Lima, 2008). Quando uma vítima manifestar interesse na suspensão processual, um promotor público deverá estar presente na audiência para avaliar com ela os fatores de risco de violência e as possibilidades de sanções penais pertinentes para cada caso (Lima, 2008). Uma vez realizada a denúncia de violência pelo Ministério Público, a vítima já não poderá retirá-la (Dias, 2007; Cunha & Pinto, 2007). Isso é extremamente importante, pois viabiliza que a denúncia seja um processo de intervenção do Estado representando os interesses coletivos na figura do Ministério Público. Formalmente, a apresentação de queixa de violência, e, em última instância, a situação de violência contra a mulher, deixa de ser uma iniciativa pessoal quanto ao desfecho de um relacionamento e passa a ser vista como ação de interesse público para que a sociedade se veja livre da violência contra as mulheres (Lima, 2008).

O processo de formalização das queixas por parte das mulheres merece ser problematizado. Cabe um esclarecimento quanto ao receio que existe disso acarretar em maior risco de agressão ou homicídio. Vives-Cases et al., (2008) apresentam dados consistentes

mostrando que entre 1998 e 2006 o número de denúncias triplicou enquanto a taxa de homicídios se manteve estável na Espanha – onde existe uma lei semelhante à Lei Maria da Penha. Essa constatação permite inferir que a exposição dos agressores às agências de controle não ofereceu maior risco de morte para as vítimas. Cabe ressaltar, entretanto, que estudos anteriores já apontavam para a importância de afirmar a violência para que a vítima possa avaliar seu sofrimento e buscar alternativas para uma vida com maior segurança (Jacobson, 1994; Ravazzola, 1997; Walker, 1999; Bruschi, 2006; Ospina et al.,, 2006).

O Ministério Público, com base na Lei nº 11.340/2006, tem a oportunidade de contribuir para que a mulher vitimada possa afirmar seu sofrimento de maneira legítima e possa buscar uma solução para o relacionamento violento. A Lei Maria da Penha constitui ainda uma oportunidade de esclarecer o agressor sobre a gravidade do uso da violência como estratégia de resolução de conflitos. O agressor é chamado a um processo de ressocialização em virtude de o Estado brasileiro se posicionar contra a violência de gênero.

A criminalização da violência contra as mulheres, expressa na Lei nº 11.340/2006, não eliminou o fato de que a maior parte das vítimas permanece não desejando a criminalização do agressor (Angelim, 2004; Araújo, 2003; Hermann, 2002; Walker, 2000; Bandeira, 1999). Bruschi et al., (2006) e Schraiber et al., (2007) realizaram estudos de prevalência e procura de ajuda por mulheres vítimas de violência na zona da mata de Pernambuco e no interior paulista e encontraram resultados que merecem reflexão – entre 10% e 24% das vítimas de lesões graves buscaram a polícia ou a delegacia. A grande maioria das mulheres vítimas solicitou ajuda dos familiares e amigos tratando a violência no âmbito privado. Entre as vítimas de lesões corporais leves nenhuma buscou ajuda dessas instituições (Bruschi et al., 2006).

Entender as motivações das vítimas para não criminalizarem os agressores torna-se, portanto, uma questão importante. Dentre as razões apontadas na literatura, encontramos desde o medo em função de ameaças de morte direcionadas à própria vítima, aos filhos e /ou aos familiares, os receios de perder um apoio financeiro; a culpa pela possibilidade de expor o agressor à barbárie dos presídios; até o sentimento de proteção pelas consequências de afastá-lo do convívio com os filhos e familiares (Angelim, 2004; Araújo, 2003; Hermann, 2002; Walker, 2000; Goldner, 1998). O fato é que a criminalização da violência contra as mulheres estabelece as condições para a intervenção do Estado, contudo as mulheres vítimas, ao discordarem da necessidade dessa criminalização, inviabilizam a própria ação do Estado (Lima, 2008).

A dificuldade para manter a queixa contra o agressor está diretamente relacionada à natureza do relacionamento entre vítima e agressor. Neste trabalho, queremos chamar atenção para essa dimensão, em especial, a natureza paradoxal do vínculo emocional existente entre a vítima e o agressor. Essa dimensão privada do relacionamento com o agressor torna difícil a efetivação e o prosseguimento do processo para uma denúncia com fins de obter sua reclusão. A natureza paradoxal desses relacionamentos leva os próprios operadores de direito a vivenciarem as contradições inerentes ao relacionamento e a verem frustradas as tentativas de intervenção. Essa frustração somada à dificuldade em compreender as múltiplas dimensões do vínculo entre vítima e agressor leva muitos operadores de direito a culparem as vitimas pelas contradições inerentes ao padrão relacional violento.

Na lógica penal, a justa punição do criminoso é o objetivo do processo jurídico. Liang et al., 2005, e Ospina et al., 2006, realizaram pesquisas cujos resultados apontaram que, sem a efetiva separação conjugal entre o agressor e a vítima, a possibilidade de uma sanção penal com privação de liberdade são mínimas. Dessa maneira, exige-se que a vítima já tenha superado as dimensões paradoxais do relacionamento e se separado conjugalmente do agressor para que possa solicitar a intervenção do Estado. Essa constatação nos coloca diante de outro desafio: se a única solução de intervenção do Estado se pautar nas penas privativas de liberdade para os agressores, poucas mulheres poderão contar com sua ajuda efetiva.

Nesse contexto, a criminologia crítica feminista oferece soluções mais criativas para o fenômeno da violência contra as mulheres. Ao considerar outras formas de controle social da violência, torna possível a criação de condições para aumentar a participação das mulheres vítimas. Esse posicionamento deixa claro que , a criminalização dos agressores atende apenas parcialmente às necessidades da sociedade por ancorar-se em uma lógica retributiva para esses crimes.

[...] reconstruir um problema privado como um problema social, não significa que o melhor meio de responder a este problema seja convertê-lo, quase que automaticamente em um problema penal, ou seja em um crime (Andrade, 1999, p. 114).

Andrade (1999) afirma que é fundamental que se considere a criminologia crítica para se pensar soluções adequadas à sanção dos agressores. Um aspecto inovador da Lei nº 11.340/2006,, que abraça a perspectiva minimalista penal, ocorre no inciso V do art. 34, onde fica prevista a ação estatal por meio de centros de educação e reabilitação de agressores.

O sistema judicial de controle da violência contra as mulheres deve incluir as mulheres vítimas como principais elos entre a ocorrência do fato e sua tipificação no processo penal. Como parte do sistema de controle da violência, torna-se imperativo desenvolver metodologias alternativas que contribuam para a participação das vítimas em todas as fases de percepção e elaboração da queixa da violência sofrida, culminando na denúncia oferecida pelo Ministério Público.

A atuação, por meio de equipes multidisciplinares, preconizada na Lei nº 11.340/2006 permite intervir na dinâmica relacional violenta de modo que tal atuação avance rumo à afirmação dos direitos e necessidades da vítima e à ressocialização do agressor. Nesse tipo de intervenção, mesmo aquelas mulheres que ainda não se dispõem ou não desejem se separar de seus maridos-agressores recebem uma atenção específica. O acompanhamento dos casos, a apresentação de um limite claro, somado ao fato de que o agressor está sob observação já constituem formas de intervenção importantes para afirmar que a violência sofrida pelas mulheres (Ravazzola, 1997; Espinosa et al., 2008).

A atuação por meio de intervenções terapêuticas com agressores e/ou vítimas tem sido apontada como medida efetiva e necessária para acabar com esse tipo de violência (Chiu, 2001; Hermann, 2003; Ospina et al., 2006). Contudo, um procedimento de intervenção terapêutica que desconsidere a gravidade desses casos e/ou que tenha como marco referencial uma posição de neutralidade do(a) terapeuta apresenta um grave risco para as vítimas (Jacobson, 1994; Ravazzola, 1998; Greenspun, 2002). O processo de intervenção terapêutica deve: 1.. levar em conta as condições de risco vivenciadas pelas vítimas; 2. viabilizar o reconhecimento da história de violência a que a vítima está exposta; 3.avaliar as possibilidades de mudança do padrão de relacionamento do casal; 4. afirmar os direitos das mulheres a uma vida sem violência; e 5. assegurar que as necessidades das mulheres sejam reconhecidas e consideradas caso um novo contrato relacional possa ser estabelecido.

A responsabilização do agressor é o elemento fundamental do processo de intervenção terapêutica com os homens (Madanes, 1997; Ravazzola, 1997; Walker, 1999, Chiu, 2001; Aguiar e Diniz, 2009). A penalização desses agressores passa pelo esclarecimento de que eles cometeram um crime ao agredirem suas companheiras. Na verdade, essa compreensão do crime, nos casos menos graves, pode ser mais importante do que a sua reclusão considerando as dificuldades inerentes à sustentação das queixas pelas vítimas.

O TJDFT tem tido uma experiência relevante ao conciliar a dimensão clínica do atendimento terapêutico à avaliação para elaboração de laudos com vistas ao embasamento das decisões de magistrados e membros do Ministério Público (Angelim, 2004; Roque,

Moura, & Ghesti, 2006). Esse tipo de avaliação torna-se ainda mais importante com a Lei nº 11.340/2006 por viabilizar melhores condições de diálogo entre a vítima e o promotor para decidirem sobre a suspensão do processo ou seu encaminhamento por meio de denúncia.

O atendimento multidisciplinar em casos de violência doméstica contra as mulheres é de fato um avanço da Lei nº 11.340/2006. Ele proporciona um novo processo de responsabilização do agressor e de cuidado e proteção com a vítima por viabilizar as condições para a resolução dos conflitos nos níveis interpessoal e jurídico numa perspectiva de gênero. A rede de serviços que ampara, atende e protege as mulheres vítimas da violência por parte de parceiros íntimos viabiliza o acompanhamento delas desde o momento da queixa, passando pelo período de inquérito, audiências e intervenções psicossociais. A lei estimula a sistematização dos dados de denúncias realizadas e o avanço nas pesquisas sobre o tema.

A violência contra as mulheres exige, portanto, uma intervenção que não se resume tão somente ao momento da queixa, ou seja, não se resume à enunciação de um episódio de violência onde seu autor é passível de uma punição criminal. A violência contra as mulheres, para ser enunciada, necessita de um processo de mudança do relacionamento da vítima com o agressor e, também, de um processo subjetivo de mudança por meio do qual a mulher se percebe vitimada por uma agressão, por seu parceiro, e por uma cultura machista que dificulta a percepção da violência.

A definição da violência contra a mulher publicada na Lei nº 11.340/2006 viabiliza uma referência clara e segura para que vítimas possam refletir sobre a necessidade de proteção e perceber a dinâmica do seu relacionamento como um caso de polícia Indo além, a lei permite uma reflexão detida por parte dos agentes do Estado, em especial, os operadores do direito e demais profissionais envolvidos na atenção aos casos de violência sobre a gravidade e as implicações dos episódios de agressão,para a saúde física mental de todos as pessoas envovidas – mulheres, homens, filhos e demais familiares. Tal reflexão viabiliza o reconhecimento das vítimas como sujeitas de direitos que podem buscar, em juízo, a afirmação de sua singularidade e de sua experiência..

A Lei Maria da Penha cumpre, portanto, importante papel ao viabilizar o reconhecimento do processo subjetivo de percepção e enunciação da violência contra as mulheres por parte das vítimas. A Sr.ª Maria da Penha exercitou sua subjetividade expondo-se internacionalmente para afirmar seu direito de perceber, reconhecer, denunciar e exigir a punição do seu agressor. Por meio da Lei nº 11.340/2006 – a Lei Maria da Penha – o Estado brasileiro convida as mulheres vítimas de violência conjugal ao exercício responsável de

legitimação das suas subjetividades garantindo as condições necessárias para que elas se afirmem contra a violência.

Capítulo 2

Duplo-vínculo como modelo explicativo da permanência na relação violenta