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“Um problema não é o problema O problema é o processo”

3.4 Experiência de violência e consciência

A construção deste capítulo acerca do conceito de consciência partiu da necessidade de oferecer um referencial teórico para discutir a importância da reflexão e do esforço pessoal na elaboração dos sentidos das experiências de violência. No caso de mulheres vítimas, é importante retomar o conceito de consciência de Husserl (2001[1931]) no qual a experiência, a intencionalidade e a redução fenomenológica são os elementos essenciais da consciência. Como a experiência da violência remete aos sujeitos que a experimentam, a consciência é sempre uma reflexão sobre o sujeito violentado.

No que concerne à violência, torna-se inconcebível, portanto, pensá-la como um objeto abstrato de experiência, ou seja, a violência é sempre violência para um sujeito. E é possível, portanto, que para um mesmo tipo de agressão existam sujeitos distintos que concebam distintas vivências dessa expressão de violência.

Uma vez que a reflexão fenomenológica está baseada na experiência de um sujeito no mundo, existe uma maneira sistemática de refletir sobre essa experiência garantindo, assim, uma consciência da própria experiência sobre novas bases de conhecimento. A redução fenomenológica é o grande instrumento para viabilizar o tipo de reflexão necessária para

identificar as essências e consiste, basicamente, numa mudança de atitude diante da própria experiência do sujeito na medida em que ele deixa em suspenso as ações espontâneas e naturais diante do objeto, permitindo-se criar um espaço para reformular princípios, valores e discursos (Holanda, 2001; Merleau-Ponty, 1973; Dartigues, 1992). A redução serve, portanto, ao propósito de esvaziar de sentido uma experiência para dar um novo sentido consciente à experiência que se teve. A redução fenomenológica não é uma abstração em relação ao mundo ou ao sujeito. Ela é, fundamentalmente, uma mudança de atitude, um esforço compreensivo de buscar uma experiência ampliada em relação aos elementos de uma experiência anterior.

O esforço feminista para criar as condições sociais de visibilidade para a violência contra as mulheres permite, e até facilita, a intencionalidade de consciência de diversos tipos de violência. A intencionalidade não existe, portanto, como uma abstração subjetiva unilateral; ela emerge de um contexto social que pode estimular, ou não, tipos distintos de consciência. Como a violência é uma experiência imediata – no sentido de que ela não é mediada por nenhuma outra sensação que não seja a da violência em si– é necessário que as mulheres tomem as próprias experiências como objeto de reflexão para poderem intencionar a consciência da violência que sofrem.

O relato da experiência de violência é uma dimensão da consciência, uma consciência irrefletida. Refletir sobre a maneira como se relata a violência experimentada é uma dimensão mais ampla que permite tomar como objeto para a consciência a própria maneira pela qual as mulheres vivenciam e/ou articulam o relato das violências sofridas, consciência refletida. Temos aí a articulação do fenômeno da violência em dois níveis distintos. O primeiro – a descrição do fato – é facilmente estimulado nos espaços de denúncia e de intervenção do Estado (delegacias, fóruns de justiça e a polícia). O segundo tipo – a reflexão e tomada de consciência – é, muitas vezes, desconsiderado em sua importância. O acesso ao fenômeno da violência dá-se tão somente por relatar o fato agressivo e não por uma tomada de consciência deste fenômeno.

A redução fenomenológica da violência implica, portanto, colocar a si mesma entre parênteses e buscar suspender os sentidos que existem sobre sua própria experiência para poder formular um novo sentido para a experiência agressiva. Nesse processo reflexivo, a queixa de violência pode se tornar um processo de afirmação de uma nova maneira de lidar com agressão e de compreender a si própria em razão das agressões já sofridas. Essa mudança reflexiva talvez possa permitir uma mudança significativa na percepção do relacionamento com o parceiro agressor que viabilize a mudança no padrão de comportamento em relação ao

agressor. A partir da reflexão sobre sua ação (seja essa de subserviência, aceitação ou revide) abre-se espaço para a construção de outras possibilidades de ser mulher, gerando responsabilidade pela sua liberdade, que inclui a possibilidade de proteger a sua vida e cuidar do seu futuro.

A reflexão de Sartre (1994 [1965]) sobre a consciência irrefletida e consciência refletida permite supor dois níveis distintos de consciência da violência. Uma refere-se ao fato violento em si, se ele está mais intenso, se está mais frequente, se mudou sua forma, e qual o nível de risco de morte implicado nele. A consciência refletida da violência englobaria a própria vivência da violência, pois o objeto para a consciência seria a maneira como a mulher vítima experiencia a violência. É somente na conjugação desses dois tipos de intencionalidade e exercício da consciência que as vítimas poderiam vislumbrar a possibilidade de um futuro diferente para elas mesmas.

É importante diferenciar esses dois níveis de consciência para evitar considerações acerca das queixas das mulheres como se elas não tivessem consciência da violência que sofrem. A pergunta crucial aqui é: que tipo de consciência elas têm da violência que sofrem? Ou melhor, que tipo de reflexões elas exercitam sobre as experiências violentas sofridas por elas? Como as mulheres, vítimas de violência doméstica, elaboram o sentido da violência ao longo da relação conflituosa com o agressor? A consideração de que a consciência é um processo contínuo de reflexão viabiliza um melhor entendimento da necessidade das mulheres vítimas de fazerem queixas e em seguida retirarem essas queixas por tomarem nova consciência das implicações penais que são acarretadas pela enunciação da violência.

A apropriação da perspectiva de Simone de Beauvoir (1949a e 1949b) e das críticas feministas sobre os condicionantes sociais que estreitam as possibilidades de exercício da liberdade das mulheres é essencial. Esclarecer quais dimensões da compreensão do gênero feminino oferecem riscos para a manutenção de um relacionamento violento pode ser objeto de uma intencionalidade, da consciência de ser mulher num dado momento histórico e num contexto social específico. Viabilizar que um processo reflexivo sobre como as escolhas de vida fazem com que a vítima se torne um tipo específico de mulher, é uma dimensão fundamental da intervenção em situações de violência conjugal (Ravazolla, 1997; Diniz, 1999; Waldrop & Resick, 2004; Ospina et al., 2006; Liang et al., 2005; Pondaag, 2003).

A perspectiva fenomenológico-existencial oferece uma compreensão do ser humano como um ser em aberto no qual a liberdade é a forma da existência humana e para a qual o ser humano se mantém com uma angústia permanente para lidar com seu processo de mudança constante. Tal compreensão é preciosa, uma vez que muitas mulheres se sentem incapazes de

mudarem suas atitudes em meio ao relacionamento com os agressores e/ou em outros âmbitos de suas vidas. As noções de dasein – ser aí – e de devir são preciosas por estabelecerem a compreensão do ser humano como ser em constante processo de mudança, estando além de estruturas rígidas de identidade. Daí que investir em condições para efetivar essas mudanças seja um dos grandes desafios para intervir em casos de violência doméstica contras as mulheres.

A abertura de perspectivas para um futuro novo que viabilize o que não existe nas condições presentes favorece a provocação das mulheres, vítimas de violência, para refletirem sobre as possibilidades de mudança. Constitui um convite a se afirmarem no mundo rumo às possibilidades que vislumbram para si mesmas. Nos casos de mulheres vítimas de violência doméstica, este é um convite precioso: primeiro porque não propõe um mundo ideal no qual elas devam viver e segundo porque provoca essas mulheres a pensarem em termos de possibilidades futuras e não de reviver dramas passados. O convite ao futuro, um novo futuro, permite colocar em nova perspectiva o próprio passado. A consciência da violência não é apenas reviver um episódio agressivo e passar a rotulá-lo como fato violento - pode e precisa ser um esforço subjetivo de mudança e de anúncio de novas possibilidades de existência.

Capítulo 4 Metodologia

“Não é a vitória da ciência que destaca o nosso século XIX, mas sim a vitória do método sobre a ciência”

Friedrich Nietzsche Entender como mulheres vítimas de violência compreendem o problema da violência ao buscar a intervenção do Estado ou a ajuda de terceiros foi o desafio assumido nesta pesquisa. A revisão da literatura realizada nos permitiu constatar que a grande maioria dos estudos descritivos remetem-se ao o que as mulheres fazem e não a como elas interpretam as agressões e violências experienciadas ao longo do relacionamento violento (Liang et al., 2005; Chiu, 2001; Waldrop & Resick, 2005; Walker, 1999b).

A revisão de literatura também deixou claro que o processo de busca de ajuda retrata a natureza paradoxal da relação – elas denunciam e depois retiram a queixa deixando pistas da complexidade da experiência violenta. As estatísticas de violências oferecem dados importantes para a compreensão da violência contra as mulheres, mas também simplificam esse fenômeno tendo em vista que tendem a valorizar sua tipificação penal ao invés de buscar compreender os padrões relacionais entre agressores e vítimas. Poucos estudos estão voltados para a compreensão subjetiva que mulheres vítima têm das violências vivenciadas (Liang et al., 2005).

O objetivo principal da pesquisa consistiu na proposição de um modelo teórico e na aplicabilidade desse modelo na investigação de como as mulheres vítimas de violência doméstica elaboram o sentido da violência ao longo da relação conflituosa e agressiva com seus cônjuges.

Os objetivos específicos foram os seguintes:

 Avaliar qual é a demanda de intervenção do Estado por mulheres vítimas de violência conjugal.

 Investigar se existem dimensões duplo-vinculares que mantêm a vítima emaranhada no relacionamento com o agressor.

 Avaliar a consciência da experiência de violência após a participação em grupos de intervenção terapêutica.

Apresentamos abaixo a estratégia metodológica utilizada. Serão abordados os seguintes elementos do processo de pesquisa: 1) justificativa da escolha metodológica; 2) participantes; 3) estratégia de coleta de dados; 4) estratégia de análise de dados; 5) procedimento; e 6) questões éticas.