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“Um problema não é o problema O problema é o processo”

2.4 Limites para a Teoria do Duplo-Vínculo?

A Teoria do Duplo-Vínculo viabiliza a compreensão de padrões de comunicação patogênicos. As críticas a essa teoria apontaram para a necessidade de valorizar a forma como cada pessoa envolvida nesses padrões de comunicação participa da relação a fim de estabelecer as condições de mudança dos padrões relacionais entre elas e eliminar os riscos patogênicos. Um desses riscos é a questão sendo problematizada nessa tese: a conjugalidade violenta e os fatores que impedem as mulheres vítimas de buscarem ajuda, permanecendo, assim, nesses relacionamentos.

No epílogo da “Pragmática da comunicação humana” (1995 [1967]), Watzlawick inicia com essa interessante advertência:

... consideramos os indivíduos em seu nexo social e vimos que o veículo dessa interação é a comunicação. [...] Em qualquer caso parece-nos evidente que conceber o “ser humano”* unicamente como um “animal social” não logra explicitar o “ser humano”* em seu nexo existencial, do qual a participação social é apenas um aspecto, embora muito importante” (Watzlawick et al., 1995[1967], p. 234).

A autorreferência é então abordada por Watzlawick (1995 [1967]) de maneira detida – o autor busca evidenciar que a experiência humana também ultrapassa a dimensão relacional objetiva do uso da linguagem. A consciência humana da própria atuação no mundo é um padrão de comportamento que escapa aos métodos de estudo científicos que permitiram desenvolver a Teoria do Duplo-Vínculo até ali. O paradoxo humano de ser sujeito e objeto do conhecimento de si representa um limite para a abordagem dos padrões de relacionamento duplo-vinculares, no que concerne à singularidade de cada ser humano.

É ao reconhecer esse limite que Watzlawick (1995[1967]) recupera o trabalho de Wittgenstein para afirmar que o ser humano, nesse processo autorreferencial, não pertence a um mundo, pois não existe o mundo objetivo que possa oferecer terreno à existência humana.

O ser humano existe, portanto, como um limite do mundo e reconhece esse limite conforme reflete sobre a sua experiência.

Retomando o objeto dessa reflexão – a violência contra as mulheres – pode-se inferir que a violência, como experiência subjetiva, escapa à explicitação do padrão de relacionamento violento. O silêncio dessas mulheres não significa necessariamente que elas não reflitam ou tomem consciência da violência. A reflexão em nível pessoal precisa ser conhecida a fim de que se possa precisar o nível de consciência que elas têm da violência a que estão submetidas. A reflexão pessoal dessas mulheres vítimas também deve ser privilegiada como um componente para a definição da violência sofrida.

O reconhecimento do limite da Teoria do Duplo-Vínculo para dar conta da dinâmica relacional violanta sugere, neste trabalho, a necessidade de uma complementação. Uma vez que essa teoria enfatiza os processos de interação interpessoal aparentes por meio do exercício da linguagem ela não oferece recursos suficientes para teorizar sobre a reflexão subjetiva, intima, das mulheres vitimas. Utilizaremos o conceito de consciência para complementar o percurso teórico percorrido até aqui.

A reflexão sobre o conceito de consciência será pautada nos marcos referenciais da fenomenologia e do existencialismo. O objetivo é construir uma complementação do referencial teórico que está sendo proposto até aqui como tese para a compreensão da ausência ou presença de elaboração subjetiva do sentido da violência e suas implicações para a compreensão do lugar ocupado pela mulher na dinâmica conjugal violenta.

Capítulo 3

Consciência como reflexão sobre a experiência: desafios para mulheres vítimas de violência conjugal

O problema não é inventar. É ser inventado hora após hora e nunca ficar pronta nossa edição convincente.

Carlos Drummond de Andrade

A violência contras as mulheres ocorreu, e ainda ocorre, sob um manto de invisibilidade e/ou de indiferença social. Essa situação foi, e continua sendo, denunciada pelo movimento feminista que busca esclarecer o quanto a lógica do patriarcado oferece risco para as mulheres vítimas de violência por parte de companheiros íntimos. Os feminismos são responsáveis também por apontar que a construção social de gênero e a diferenciação entre o mundo masculino e feminino serve a um propósito de organização do poder nos relacionamentos e em sociedade (Scott, 1995; Castells, 1999; Pondaag, 2003; Diniz e Pondaag, 2004,2006; Bandeira & Thurler, 2008).

Ao largo dos avanços do movimento feminista, muitas mulheres vítimas de violência por companheiros íntimos mantiveram seus relacionamentos com os agressores. Vários fatores têm sido apontados como condição de manutenção do vínculo conjugal, por mais desgastante e arriscado que ele seja para essas mulheres. Dentre esses fatores, ganham destaque, de acordo com a tese defendida nesse trabalho, a natureza paradoxal do vínculo afetivo, as contradições vivenciadas e a dificuldade para ter clareza da dinâmica relacional e mesmo para refletir sobre o relacionamento, conforme apresentado nos capítulos anteriores.

Apontamos no Capítulo 2 como a dimensão duplo-vincular do relacionamento pode oferecer possíveis explicações para a compreensão do como e do porque mulheres se mantêm vinculadas aos parceiros/maridos agressores. Neste capítulo, pretendemos mostrar que a experiência pessoal da agressão é uma dimensão fundamental para compreensão do sentido da violência para a mulher que a experiencia. Argumentamos que a vivência pessoal de mulheres vítimas só poderá ser acessada e reconhecida se elas tiverem a oportunidade para se expressarem em um contexto de intervenção e acolhimento que possa ajudá-las a manter o foco na própria experiência agressiva (Jacobson, 1994; Ravazolla, 1997; Angelim, 2004; Ospina et al., 2006).

É importante que a mulher vítima fale a respeito da agressão para que esta possa ser nomeada como violência – como uso ilegítimo da força, como coação ou coerção. Caso contrário, a agressão, embora sentida no corpo e mantida na lembrança, fica como mais um episódio difícil dentro de um relacionamento complicado. A própria Lei nº 11.340/2006 não

pode conferir à vítima sua proteção se a mulher não assumir-se como tal (Lima, 2008). Chegamos, assim, a um limite da compreensão e da ação do Estado em contextos de violência – cabe à mulher vítima reconhecer a violência que sofre, a opressão em que vive.

Mostramos que o silêncio e o segredo marcam as experiências de violência (Diniz e Pondaag, 2006, 2004; Pondaag, 2003). Existe, portanto, a vivência de uma solidão quase intransponível na violência – que é o reconhecimento da violência e a coragem para expressá- lo. Tomando como base dimensões da fenomenologia e da filosofia existencialista, será explorado neste capítulo as condições para que a experiência violenta possa ser objeto de reflexão para uma consciência. A célebre frase de Simone de Beauvoir – “Ninguém nasce mulher, torna-se mulher” (1980b[1949], p. 5) – aqui, ganhará a dimensão de um processo de afirmação da subjetividade em face das dificuldades inerentes ao ser mulher no mundo com um ranço machista.

A violência compreendida como fenômeno implica a reflexão-sobre-a-experiência-de- um-fato-agressivo. A subjetividade é, portanto, parte integrante e elemento fundamental para a compreensão do fenômeno da violência. Uma abordagem que pretenda reconhecer a violência como um conceito abstrato desvalorizando a pessoa que a experimenta e a enuncia estará limitada a prescrever condutas descontextualizadas. O processo de consciência da violência é revelador de dimensões da subjetividade da mulher vítima.

A seguir, será apresentado um breve percurso teórico do desenvolvimento da filosofia existencial começando por conceitos fundamentais presentes na obra de Husserl, seus desdobramentos e sua apropriação nas obras de Sartre e Beauvoir. Esse trajeto teórico é importante por evidenciar a estreita relação existente entre consciência e experiência na perspectiva fenomenológico-existencial e contextualizar a importância da dimensão subjetiva para a percepção e nomeação da violência experimentada por mulheres vítimas.