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PSICOSE E MATERNIDADE

5.3 Filhas abandonadas, mães negligentes?

5.3.2 Caso Rosa Maria

Trata-se de uma mulher que desde a pequena infância, precisamente dos 5 aos 18 anos, viveu em instituições públicas ou filantrópicas de abrigamento. Aos 32 anos chega á unidade de saúde e fala de sua grande dificuldade de manter-se junto

aos filhos. Sua mãe separou-se do marido e foi morar com ela e um irmão já falecido, primeiro nas ruas da cidade onde nasceu e, posteriormente, em Belo Horizonte. Essa paciente relata que até essa idade tentou manter-se perto da mãe que a espancava constantemente. Diz que essa mãe não se furtava a esses atos de violência mesmo quando ia visitá-la na FEBEM. Mais tarde foi encontrada na rua, já com três filhos pequenos, por uma educadora social de rua, que acompanhou o abrigamento provisório de seus filhos e encaminhou-a para uma Bolsa Moradia.

Nos primeiros anos de atendimento na unidade, Rosa Maria apresentava uma agressividade difícil de contenção. Agredia com palavras os técnicos da unidade de saúde e a guarda municipal, ameaçava com faca pessoas nas ruas e nas instituições de assistência social, com as quais mantêm até hoje um vínculo reivindicativo. Queixava-se do afastamento por determinação judicial de seus três filhos, uma menina de 10 anos, um menino de 8 anos e um bebê de um ano. Ter mais um filho é solução que sustentou durante um tempo, como forma de suprir a falta dos que lhes foram tomados.

Da filha mais velha Rosa Maria tinha muita dificuldade de se aproximar. Dizia que a filha parecia não gostar dela, não aceitava as bonecas que lhe dava, mantendo-se distante da mãe nos dias de visita no abrigo. Acredita que sua dificuldade em se aproximar dessa filha pode ter a ver com o fato dela ter sido ―filha de um estupro‖ e não de seu desejo. Já o filho de 8 anos sempre permitiu-lhe uma certa aproximação. Nos dias em que antecedia a essas visitas, vinha muito angustiada às sessões. Temia não saber o que dizer a esse filho e tinha receio de que ele a rejeitasse como a mãe. Chegamos a fazer alguns atendimentos mãe-filho, mas esses atendimentos eram interrompidos com as fugas da criança da casa da mãe ou do abrigo. Pouca distinção havia entre a mãe e a criança nesse relacionamento. Considerávamos que algo se apresentava nessa relação que levava mãe e criança a se afastarem um do outro. Algo marcado por um transitivismo, uma relação de espelhamento difícil para um e outro suportar.

Entrementes, uma relação entre mãe e filho com o suporte dos órgãos de atenção, ainda que intermitente, tem sido construída. Muitas vezes, essa criança fugiu, e ainda foge da casa da mãe, que imediatamente põe em seu encalço os órgãos de proteção. Não sem dificuldades essa mulher esforça-se em oferecer a esse agora adolescente os agrados que entende serem importantes na sustentação

de seu lugar materno. Brinquedos, computador, internet, saídas para fazerem lanche, conversar. E é quando ela vê também a oportunidade de educá-lo.

Relevante é o fato de Rosa Maria, diferentemente de Carmem, ter conseguido manter-se na casa conquistada através do Programa Bolsa Moradia da Secretaria de Assistência Social. E também administrar, ainda que com dificuldades, o Benefício da Previdência Social, ao qual também teve acesso. Todo esse empenho o fez, e o faz, em nome do ―desejo de ser uma boa mãe‖, agora apenas do filho que lhe restou próximo. A agressividade que apresentava na unidade, no Centro de Convivência13 e setores da assistência social, quando suas demandas não eram respondidas de imediato, já não se apresentam com a contundência dos primeiros anos de tratamento.

Do bebê, Rosa Maria perdeu a guarda, sem o seu consentimento, no primeiro ano de atendimento na unidade de saúde. A filha saiu do abrigo ao completar 18 anos sem deixar rastros. Durante os últimos 8 anos, sustentamos sua escuta na clínica e uma interlocução com setores da assistência social que a acompanha no cuidado com a casa, com a administração financeira, a qualificação profissional e educacional. Esse trabalho corresponde ao que estamos chamando nesse estudo de ―maternidade assistida‖. Rosa Maria tem valorizado no seu tratamento os momentos que ela chama de preparação dos encontros, ainda que intermitentes, com seu filho. Seja em sua casa, seja no abrigo, seja no Programa Miguilim, lugares por onde esse adolescente nômade, (como sua avó e mãe foram outrora), hoje transita.

Podemos finalmente pensar que para Rosa Maria e Carmem, além da devastação, se colocam alguns elementos que Lacan trabalhou em sua Nota sobre a criança. (Lacan, 1969). Quando ele introduz um comentário sobre o fracasso das ―utopias comunitárias‖ (Lacan, 1969. p. 373), destacando a função de resíduo exercida e ao mesmo tempo mantida pela família conjugal na evolução das sociedades e a irredutibilidade de uma transmissão. Na concepção elaborada por Lacan, o sintoma da criança acha-se em condições de responder ao que existe de sintomático na estrutura familiar, onde a transmissão é de outra ordem que não a vida, segundo as satisfações das necessidades, mas sim de uma constituição subjetiva, implicando a transmissão de um desejo que não seja anônimo.

O sintoma da criança, para Lacan nessa nota, pode representar a verdade do par parental. Mas quando o sintoma que domina na criança é consequência da subjetividade da mãe, a articulação se reduz muito, de forma que ela responde na sua como correlato da fantasia materna. A criança, nessa condição, torna-se objeto da mãe, restando-lhe a função de revelar a verdade desse objeto. Diz ainda Lacan que se a distância entre a identificação ao ―ideal do eu‖, e a parte que pertence ao desejo da mãe não têm mediação, aquela que normalmente assegura o nome-do- pai deixa a criança aberta a todas as capturas fantasísticas e aí estamos no campo das psicoses.

É o que parece ter se colocado para Carmem e Rosa Maria, duas mulheres que buscam, uma pela via do ―amor‖ e outra pela via da ―maternidade‖, uma forma de realização, de sustentação subjetiva, a solução encontrada pela ausência de significação de que elas padecem.

No documento Maternidade e suas vicissitudes na psicose (páginas 107-110)