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Maternidade como suplência: à mulher que não existe.

No documento Maternidade e suas vicissitudes na psicose (páginas 69-73)

EM LACAN, A MULHER NÃO É A MÃE ―Eu vi,

3.9 Maternidade como suplência: à mulher que não existe.

Com o estabelecimento das fórmulas lógicas da sexuação nos anos 70, Lacan reabre o caminho para novas considerações sobre a maternidade que poderá ser pensada a partir do aforismo ―não existe relação sexual‖. Nesse mesmo contexto de elaboração que indica a impossibilidade da existência de uma relação natural entre os sexos, emerge um outro aforismo solidário ao primeiro ―A mulher não

existe‖, o que indicaria a impossibilidade de construção de um universal feminino. Por outro lado, existe uma relação particular das mulheres com um gozo para além do falo, onde se pode considerar, além de outros, o gozo do materno. No capítulo sobre o gozo, do Seminário 20, Mais ...Ainda de Lacan, encontramos referências sobre as relações da mulher com seu gozo na maternidade:

Para esse gozo que ela é, não toda, quer dizer, que a faz em algum lugar ausente de si mesma, ausente enquanto sujeito, ela reencontrará, como tampão, esse que será seu filho. (Lacan, 1972-73/985. p. 49)

Entretanto, esse lugar do materno, essa versão da maternidade como suplência não obstrui outras versões do feminino e nem impede a mulher de encontrar um significante de seu desejo no campo do Outro, que não seja única e exclusivamente o seu filho, tampão de sua falta a ser, sob pena de comprometer a subjetividade de ambos.

O que podemos concluir desse percurso é que a maternidade se coloca como uma versão da feminilidade, como suplência, e não obtura o ser mulher, desde que seu desejo possa estar em outro lugar, em uma direção tal que possa assegurar que o recobrimento mulher e mãe não se produzam. Assim, a mulher não é a mãe nos termos de uma justa posição sexual. A mulher e a mãe podem se entrecruzar, deixando aberto o espaço cujos limites se propagam até o que resta ainda de enigmático, de sua sexualidade feminina.

As fórmulas quânticas da sexuação, estabelecidas por Lacan no Seminário 20, demonstram, também, a impossibilidade de construção do universal das mulheres. Isso indica que a mulher só pode ser pensada uma a uma. Ao que concerne à maternidade, corrobora com a nossa hipótese de que uma das saídas do feminino só poderá ser pensada a partir de como, uma a uma, cada mulher nela se situa, seja ela neurótica ou psicótica. É o que vamos conferir na escuta dos casos clínicos.

3.10 A “mãe” na clínica

Retomando o texto da psicanalista Colette Soler, ―A mãe no Inconsciente‖, como interlocutor para o que estamos chamando de gozo materno e suas

vicissitudes, particularmente na psicose vamos encontrar o que ela chama de angustia e recriminações feitas à mãe nos ditos dos analisantes. É certo, diz a autora, que há sempre um discurso prévio sobre a mãe fazendo dela ―o objeto vital por excelência, um polo das primeiras efervescências sensuais, a figura que cativa a nostalgia essencial do ser falante, o próprio símbolo de amor.‖ (Soler, 2005. p. 90).

No entanto, sejam quais forem as variações individuais, nas associações livres dos sujeitos em análise as mães comparecem muitas vezes como acusadas no discurso dos sujeitos, o lugar da mãe no inconsciente pode inclusive chegar á devastação:

Imperiosa por um lado, possessiva e obscena por outro, ou, ao contrário indiferente, fria e mortífera, presente demais, ou ausente demais, atenta demais ou distraída, quer cubra de mimos, quer se mostre negligente, quer prive, quer se preocupe, por suas recusas, por suas dádivas, ela é, para o sujeito, uma imagem de suas primeiras angústias, um enigma insondável, lugar de uma ameaça obscura. (Soler,2004.p.91).

Para a psicanalista, é necessário mais do que um recenseamento empírico para que se construa a estrutura que encerre esse polimorfismo que, na verdade, diz respeito à queixa infantil. Isto é o que podemos conferir no discurso dos analisantes às voltas com esse objeto mãe na fantasia. Na verdade, entre o que uma mãe fala às voltas com a divisão do seu ―falasser‖, e um filho que fala da mãe, ambos na clínica, há uma distância que não se pode negligenciar.

Retomando o texto de Lacan sobre ―A Juventude de Guide‖, nos Escritos, eis o caminho que a psicanalista nos convida a trilhar, o de apreender em cada caso, por que caminhos passam as fantasias para ir da mãe ao filho, e vice versa. Isto porque o que essas fantasias suscitam, com certeza, os modos de lidar com a falta, as formas de obturá-la, enfim, o discurso do inconsciente é o que vai a última instância poder indicar algo da subjetividade daquele que fala. No capítulo sobre a fantasia para além do princípio do prazer do Seminário 5, onde Lacan discute com Freud sobre que dor de existir escapa à natureza do ser vivo e insiste em reaparecer na repetição, ele fala da fantasia de espancamento:

A fantasia em que o sujeito figura como criança espancada – torna-se na relação com o Outro por quem se trata de ser amado, enquanto ele mesmo não é reconhecido como tal. Essa fantasia situa-se, então, em algum lugar da dimensão simbólica entre o pai e a mãe, entre os quais, aliás, ela efetivamente oscila. (Lacan,1957-58/1999.p.250).

O que podemos encontrar desses avatares da maternidade, da transmissão da falta e do feminino no discurso das mulheres psicóticas, é o que iremos trabalhar a partir dos casos clínicos neste estudo. No caminho percorrido até aqui reafirmamos que para cada mulher/mãe, seja ela psicótica ou não, exista um lugar para uma criança. E que esse lugar que ela lhe reserva tem a função de responder por algo incomensurável de sua realidade psíquica.

Capítulo 4

No documento Maternidade e suas vicissitudes na psicose (páginas 69-73)