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O caso do sudoeste da Amazˆ onia: da grande-escala ` a microf´ısica das nuvens

Cap´ıtulo

1.1 O caso do sudoeste da Amazˆ onia: da grande-escala ` a microf´ısica das nuvens

O regime de precipita¸c˜ao na regi˜ao Amazˆonica ´e modulado por sistemas dinˆamicos de micro, meso e grande-escalas. A rela¸c˜ao entre a convec¸c˜ao e a grande-escala tem sido amplamente abordada na literatura. Silva Dias et al. (1983) mostraram que existe um acoplamento entre a fonte de calor representada pela convec¸c˜ao Amazˆonica e a forma¸c˜ao da circula¸c˜ao anti-ciclˆonica de altos n´ıveis denominada Alta da Bol´ıvia. Grimm e Silva Dias (1995) e Gandu e Silva Dias (1998) mostraram que a fonte de calor tropical da Amazˆonia e sua extens˜ao para sudeste conhecida como Zona de Convergˆencia do Atlˆantico Sul (ZCAS) est˜ao acopladas com outras fontes de calor tropicais, como a do Pac´ıfico e a da ´Africa, de tal forma que perturba¸c˜oes impostas por uma delas afeta a outra na escala de tempo de oscila¸c˜oes intrasazonais.

O per´ıodo de chuvas e a forte atividade convectiva ´e compreendido entre os meses de Novembro e Mar¸co enquanto que o per´ıodo de seca e fraca atividade convectiva acontece entre os meses de Maio e Setembro, como mostra a Figura 1.1 (Figueiroa e Nobre, 1990). A esta¸c˜ao chuvosa ´e caracterizada por um per´ıodo de mon¸c˜ao, associado `a penetra¸c˜ao de sistemas frontais estacion´arios de latitudes m´edias que organiza a convec¸c˜ao local do sudoeste da Amazˆonia formando a ZCAS. Durante a fase ativa da mon¸c˜ao, o regime de

Precipitação Anual (mm)

Jan Fev Mar Abr Mai Jun Jul Ago Set Out Nov Dez

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100

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400

Figura 1.1: M´edia climatol´ogica mensal (1961-1990) da precipita¸c˜ao acumulada em Porto Velho. Figura adaptada de Figueiroa e Nobre (1990).

ventos predominante ´e de oeste e os sistemas precipitantes apresentam caracter´ısticas mais estratiformes, enquanto que durante a fase inativa da mon¸c˜ao (ou per´ıodos de interrup¸c˜ao) o regime de ventos ´e predominantemente de leste com caracter´ısticas convectivas (Petersen e Rutledge, 2001; Rickenbach et al., 2002). Um dos principais sistemas de precipita¸c˜ao das regi˜oes tropicais s˜ao os sistemas convectivos de meso-escala (SCM). Os SCM s˜ao formados por c´elulas convectivas agrupadas e possuem um desenvolvimento bem definido. Em espe- cial, na regi˜ao Amazˆonica h´a trˆes principais tipos de SCM: lineares de longa dura¸c˜ao, com forma¸c˜ao na costa Norte-Nordeste da Am´erica do Sul que se propagam para o interior do continente, e sistemas de curta dura¸c˜ao, com forma¸c˜ao no interior da regi˜ao amazˆonica ou de ocorrˆencia local costeira ou no interior do continente (Cohen et al., 1989; Greco et al., 1990; Cohen et al., 1995). A convec¸c˜ao local devido ao aquecimento diurno da superf´ıcie tamb´em contribui para a forma¸c˜ao de nuvens e uma parcela significativa da precipita¸c˜ao anual (Figueiroa e Nobre, 1990). Logo, esses sistemas (SCM e local) caracterizam a grande variabilidade espacial e temporal das nuvens e precipita¸c˜ao na regi˜ao Amazˆonica.

Apesar dos estudos realizados durante d´ecadas sobre o regime de precipita¸c˜ao, o estudo da eletrifica¸c˜ao dos sistemas precipitantes da regi˜ao Amazˆonica ´e recente, com suas princi- pais contribui¸c˜oes sendo decorrentes de campanhas intensivas de coleta de dados, como os experimentos de campo WETAMC1 (Silva Dias et al., 2002) e DRYTOWET-AMC2 (Silva

Dias et al., 2005; Andreae et al., 2004), ocorridos nas esta¸c˜oes chuvosa e de transi¸c˜ao seca para chuvosa, respectivamente. Estas campanhas est˜ao inseridas no contexto do Projeto

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Wet season Atmospheric Mesoscale Campaign 2

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Large-Scale Biosphere-Atmosphere Experiment in Amazonia - LBA, a fim de estudar o im- pacto da atividade antropogˆenica (por exemplo, desmatamento e queimadas) nos processos de intera¸c˜ao da biosfera e atmosfera, que afetam o ciclo hidrol´ogico da Bacia Amazˆonica (Silva Dias et al., 2002).

Neste contexto, verificou-se que a Amazˆonia possui sistemas precipitantes com ca- racter´ısticas oceˆanicas durante a esta¸c˜ao chuvosa (baixa concentra¸c˜ao de CCNs, e grande quantidade de precipita¸c˜ao associada `a baixa atividade el´etrica - Petersen e Rutledge, 2001; Williams et al., 2002) e com caracter´ısticas continentais durante a transi¸c˜ao da esta¸c˜ao seca para a chuvosa (alta concentra¸c˜ao de CCNs, e sistemas de precipita¸c˜ao associados `a alta atividade el´etrica - Williams et al., 2002; Andreae et al., 2004). A alta concentra¸c˜ao de CCN durante a esta¸c˜ao de transi¸c˜ao ´e decorrente das queimadas que s˜ao realizadas na regi˜ao sudoeste da Amazˆonia para preparar o solo para a agricultura e pecu´aria. A inser¸c˜ao de uma grande quantidade de CCN na atmosfera modifica as distribui¸c˜oes de tamanho de gotas, o que modifica tamb´em os processos microf´ısicos de forma¸c˜ao e desen- volvimento de sistemas precipitantes, alterando, assim, a eletrifica¸c˜ao dos mesmos. Este efeito ´e conhecido como hip´otese do aerossol, formulada por Rosenfeld (1999) e Williams et al. (2002) e resumida na Figura 1.2: Quando uma nuvem ´e iniciada em um ambiente com camada limite planet´aria limpa (baixa concentra¸c˜ao de CCNs - regime mar´ıtimo), um pequeno n´umero de got´ıculas grandes ´e formado devido `a grande disponibilidade de vapor para um menor n´umero de part´ıculas. A ativa¸c˜ao dos processos de colis˜ao-coalescˆencia e precipita¸c˜ao da nuvem prevalecem na regi˜ao de fase quente da nuvem (T ≥ 0oC), dimi-

nuindo ou sequer formando a regi˜ao de fase mista e fria (T < 0oC). Como conseq¨uˆencia,

a eletrifica¸c˜ao dessa nuvem fica comprometida, uma vez que ela ´e dependente da presen¸ca de grandes quantidade de gelo. J´a no caso de uma nuvem que ´e iniciada em um ambiente com camada limite planet´aria polu´ıda (alta concentra¸c˜ao de CCNs - regime continental), um grande n´umero de got´ıculas pequenas ´e formado devido `a baixa disponibilidade de vapor para um grande n´umero de part´ıculas. Assim, haver´a a predominˆancia do cresci- mento das got´ıculas por condensa¸c˜ao/difus˜ao de vapor d’´agua e a supress˜ao dos processos de colis˜ao-coalescˆencia e precipita¸c˜ao. Esse fato permite que maiores quantidades de ´agua l´ıquida ascendam para a regi˜ao de fase mista e fria (T < 0oC), onde podem contribuir para

Figura 1.2: Ilustra¸c˜ao da teoria dos aeross´ois para o controle da precipita¸c˜ao e eletrifica¸c˜ao da nuvem. Figura adaptada de Williams et al. (2002).

processo de transferˆencia de cargas el´etricas por colis˜oes entre part´ıculas de gelo.

Os comportamentos continental e “mar´ıtimo” dos sistemas convectivos nesta regi˜ao ao longo do ano modulam os registros de descargas atmosf´ericas, com um m´aximo em ambos os per´ıodos de transi¸c˜ao entre as esta¸c˜oes seca e chuvosa, isto ´e, no estabeleci- mento (Setembro-Outubro) e per´ıodos de interrup¸c˜ao da mon¸c˜ao (Dezembro-Mar¸co), com o primeiro representando o maior m´aximo (Williams et al., 2002). Logo, estas carac- ter´ısticas associadas `a freq¨uˆencia de raios para uma tempestade em per´ıodos diferentes do ano s˜ao moduladas pelas condi¸c˜oes de grande-escala e termodinˆamica da atmosfera. Estas condi¸c˜oes atuam na intensifica¸c˜ao da corrente ascendente dado pelo forte empuxo da nuvem, tamb´em como a energia potencial convectiva dispon´ıvel (CAPE - do inglˆes, Convective Potential Available Energy) e a energia de inibi¸c˜ao da convec¸c˜ao (CINE - do inglˆes, Convective Inhibition Energy), que causa o aumento das correntes ascendentes con- tinentais, refor¸cando a microf´ısica de gelo favor´avel `a separa¸c˜ao de cargas e descargas el´etricas.

A partir da an´alise de imagens de sat´elite dos SCM da Amazˆonia, Machado et al. (1998) sugeriram que a expans˜ao da ´area de um sistema convectivo pode ser associada `a divergˆencia do vento e dura¸c˜ao do ciclo de vida da tempestade. Eles mostraram que

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altas taxas de crescimento durante o in´ıcio do ciclo de vida das tempestades caracterizam sistemas grandes de alta dura¸c˜ao, sugerindo uma grande corrente ascendente dentro das torres convectivas, consistentes com os altos topos das nuvens e grandes divergˆencias em altos n´ıveis. As duas principais raz˜oes poss´ıveis que explicam a rela¸c˜ao entre a taxa de expans˜ao da ´area das tempestade e sua longa dura¸c˜ao s˜ao: (i ) convergˆencia de umidade em baixos n´ıveis e instabilidade condicional vertical, persistindo durante as horas sub- seq¨uentes (desenvolvimento da convec¸c˜ao), e (ii ) forte dinˆamica interna (grande fluxo de massa) do sistema convectivo que transportar´a energia para a m´edia e alta troposfera, modificando a circula¸c˜ao atmosf´erica e favorecendo a convergˆencia de umidade em bai- xos n´ıveis, prolongando a vida do sistema convectivo. Essa retro-alimenta¸c˜ao positiva ´e geralmente ativada se o sistema tem um forte fluxo de massa interno durante o est´agio inicial de vida. Adicionalmente esses autores observaram que os sistemas convectivos com fraca expans˜ao de ´area durante a fase inicial tˆem curtos tempos de vida, enquanto que a dura¸c˜ao dos sistemas ´e prolongada se a expans˜ao inicial de suas ´areas tamb´em aumenta, gerando uma rela¸c˜ao aproximadamente exponencial. A mesma rela¸c˜ao ´e verdadeira para o tamanho dos sistemas convectivos, pois h´a uma boa rela¸c˜ao entre tamanho e tempo de vida das tempestades (Machado et al., 2002; Machado e Laurent, 2004).

Ainda no contexto das caracter´ısticas dos sistemas precipitantes da regi˜ao Amazˆonica, Morales et al. (2004) analisaram os sistemas convectivos que ocorreram durante o experi- mento DRYTOWET para definir rela¸c˜oes entre o tamanho dos sistemas convectivos com a presen¸ca de descargas atmosf´ericas, utilizando o m´etodo de Machado et al. (1998) e Laurent et al. (2002) para rastrear sistemas convectivos atrav´es de suas ´areas de expans˜ao. Eles encontraram que a maior parte dos sistemas que n˜ao desenvolveram descargas el´etricas (nuvem-solo) estavam na categoria de 100 a 1.000 pixeis das imagens de sat´elite, enquanto que aqueles sistemas com raios estavam entre 1.000 e 10.000 pixeis. Morales et al. (2004) mostraram ainda que todos os sistemas com raios apresentaram uma maior taxa de cres- cimento do que aqueles sem raios. Os sistemas sem raios, ap´os atingirem o estado de matura¸c˜ao, dissipam mais r´apido do que aqueles que geram raios. Assim, as tempestades que geraram raios tem um est´agio de matura¸c˜ao maior e se dissipam mais lentamente. Esses autores tamb´em verificaram que as descargas el´etricas originadas pelos sistemas convecti- vos pequenos s˜ao aproximadamente constantes at´e a matura¸c˜ao. J´a os sistemas m´edios e

grandes apresentaram dois m´aximos distintos: o primeiro quando h´a a predominˆancia das correntes ascendentes, e o segundo quando as correntes descendentes dominam, ou seja, no in´ıcio da matura¸c˜ao.

Figura 1.3:Foto de sat´elite ilustrando o desmatamento (´areas de tonalidade rosa) do sudoeste da Amazˆonia ao longo das estradas principais constru´ıdas na regi˜ao, que foram seguidas pela constru¸c˜ao de v´arias estradas secund´arias perpendiculares `as principais, dando ao desmatamento uma caracter´ıstica de “espinha de peixe”, ou seja, faixas cont´ınuas de floresta seguidas por faixas cont´ınuas de desmatamento. Fonte: INPE, 2008 (http://www.dgi.inpe.br/).

V´arios estudos de modelagem e observacionais mostram que o desmatamento da Amazˆo- nia pode alterar a precipita¸c˜ao e as circula¸c˜oes de micro e meso-escalas da regi˜ao (Wang et al., 2000; Baidya Roy e Avissar, 2002; Negri et al., 2004; D’Almeida et al., 2007; Sam- paio et al., 2007; Silva et al., 2008). As pol´ıticas de povoamento e desenvolvimento da regi˜ao Norte do Brasil geraram um grande desmatamento ao longo das estradas principais constru´ıdas na regi˜ao, que foram seguidas pela constru¸c˜ao de v´arias estradas secund´arias perpendiculares `as principais, dando ao desmatamento uma caracter´ıstica de “espinha de peixe”, ou seja, faixas cont´ınuas de floresta seguidas por faixas cont´ınuas de desmatamento como mostra a Figura 1.3. Estudos de modelagem clim´atica na Amazˆonia, substituindo o mapa de vegeta¸c˜ao atual por ´areas mais ou totalmente desmatadas, indicam um decr´escimo nas taxas de evapotranspira¸c˜ao e na for¸ca do ciclo hidrol´ogico, levando `a redu¸c˜ao da preci- pita¸c˜ao (Sampaio et al., 2007). Al´em disso, alguns estudos de modelagem regional, que s˜ao capazes de incluir os padr˜oes de desmatamento em pequena escala como o da Figura 1.3, encontraram que o aquecimento diferencial entre floresta e pastagem ´e capaz de gerar cir- cula¸c˜oes atmosf´ericas locais que modificam a distribui¸c˜ao espacial, intensidade e freq¨uˆencia

Se¸c˜ao 1.2. A estrutura el´etrica das tempestades 9

da convec¸c˜ao, mas n˜ao um decr´escimo na precipita¸c˜ao (Wang et al., 2000; Baidya Roy e Avissar, 2002; D’Almeida et al., 2007; Silva et al., 2008). Esta ´ultima previs˜ao encontrada pelo modelos regionais tamb´em vem sendo observada atrav´es de estudos observacionais da regi˜ao. Por exemplo, Negri et al. (2004) mostraram que durante a esta¸c˜ao seca (quando os efeitos locais da superf´ıcie do solo n˜ao s˜ao mascarados pelas condi¸c˜oes de grande-escala) h´a um aumento da nebulosidade e precipita¸c˜ao sobre as ´areas desmatadas do estado de Rondˆonia. Esses autores tamb´em apontaram uma mudan¸ca no ciclo diurno da nebulosi- dade, sendo que em ´areas desmatadas a nebulosidade tem in´ıcio durante a tarde, uma hora mais cedo que as ´areas florestas.

Nesta tese de doutorado, ser˜ao analisadas a influˆencia das vari´aveis ambientais res- pons´aveis pela estrutura dinˆamica e termodinˆamica da atmosfera onde as tempestades s˜ao formadas no estado de Rondˆonia, al´em da an´alise da evolu¸c˜ao da eletrifica¸c˜ao das tempes- tades durante seus est´agios de inicia¸c˜ao, matura¸c˜ao e dissipa¸c˜ao. Para isso ser˜ao utilizados os dados coletados durante o experimento de campo DRYTOWET, que contou com uma densa rede de instrumentos como mostrar´a o Cap´ıtulo 2.