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Recentes observa¸c˜ oes sobre a polaridade das descargas atmosf´ericas

Cap´ıtulo

1.3 Recentes observa¸c˜ oes sobre a polaridade das descargas atmosf´ericas

As descargas atmosf´ericas, resultado do carregamento el´etrico das nuvens, podem ser de quatro tipos diferentes de acordo com a regi˜ao para onde se propagam: 1) intra-nuvem (que come¸ca e termina dentro da mesma nuvem - IC, do inglˆes intra-cloud lightning), 2) nuvem-nuvem (que come¸ca em uma nuvem e termina em outra - CC, do inglˆes cloud-to- cloud lightning), 3) nuvem-ar (que come¸ca em uma nuvem e termina fora dela - CA, do inglˆes cloud-to-air lightning), e 4) nuvem-solo (que come¸ca na nuvem e termina no solo, ou vice-versa, CG - do inglˆes cloud-to-ground lightning). Em sua maioria, mais de 90% das descargas atmosf´ericas das tempestades s˜ao do tipo IC e/ou CC (MacGorman e Rust, 1998; Williams, 2001). Entre as descargas do tipo nuvem-solo, CGs, cerca de 90% do total anual ´e de polaridade negativa (−CG - a nuvem cede el´etrons ao solo), enquanto que o restante ´e de polaridade positiva (+CG - o solo cede el´etrons `a atmosfera) (MacGorman e Rust, 1998; Williams, 2001; Lang e Rutledge, 2004; Wiens et al., 2005).

Essa dominˆancia da ocorrˆencia de −CGs e relativa menor ocorrˆencia de +CGs ´e consis- tente com a configura¸c˜ao de tripolo normal discutida na se¸c˜ao anterior (Figura 1.4), com o centro de cargas negativas sendo a fonte dos −CGs. Por´em, recentes estudos sobre a polaridade das descargas do tipo nuvem-solo mostraram que algumas tempestades severas tinham uma estrutura de polaridade invertida, ou seja, uma regi˜ao central de cargas posi- tivas entre as temperaturas de -10o e -25oC seguida por regi˜oes negativas acima e abaixo,

explicando a alta porcentagem de +CGs nessas tempestades. Stolzenberg (1994) observou que as tempestades de ver˜ao podem ter em altas raz˜oes de +CGs por minuto e em grande densidade espacial, e que em muitos casos todos os raios podem ser positivos por um longo per´ıodo de tempo de vida de uma tempestade, durante o in´ıcio de sua forma¸c˜ao. Carey e Rutledge (1998) mostraram que a maior parte dos raios positivos estavam relacionados com

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a presen¸ca de granizo de tamanhos grandes, apontando trˆes principais hip´oteses para essa rela¸c˜ao: (i ) o desenvolvimento de um dipolo invertido na nuvem (negativo-sobre-positivo), possivelmente sendo resultado do crescimento de graupel e granizos em uma regi˜ao de carregamento positivo; (ii ) a inclina¸c˜ao da regi˜ao de corrente ascendente e precipita¸c˜ao fazendo com que um dipolo “normal” positivo-sobre-negativo tenha sua regi˜ao superior positiva exposta diretamente ao ch˜ao; e (iii ) a precipita¸c˜ao a regi˜ao de cargas negativa em um dipolo “normal” retira cargas da nuvem, permanecendo apenas a regi˜ao positiva su- perior e mais pr´oxima ao solo. Price e Murphy (2003) estudaram uma tempestade severa, com ventos fortes e 34 horas de dura¸c˜ao, na qual 70% raios CG foram positivos durante mais de trˆes horas , com picos de 97%.

Smith et al. (2000) mostram que tempestades severas formadas em regi˜oes de forte gra- diente de temperatura potencial equivalente (θe) na superf´ıcie eram inicialmente dominadas

por +CGs, enquanto que aquelas formadas em fracos gradientes tendem a ser inicialmente negativas. Al´em disso, Smith et al. (2000) notaram que quando as tempestades severas cruzavam m´aximos de θeem superf´ıcie, a dominˆancia da polaridade de CGs mudava de po-

sitiva para negativa, atribuindo esse fator `a mudan¸cas na instabilidade e conseq¨uentemente correntes ascendentes. Naccarato et al. (2003) correlacionaram o aumento do n´umero de descargas CG (preferencialmente negativas), na regi˜ao metropolitana de S˜ao Paulo, com o aumento da polui¸c˜ao urbana e/ou efeito de ilha de calor. Ely e Orville (2005) analisaram as caracter´ısticas das descargas CG ao longo da costa oeste dos Estados Unidos, encontrando uma m´edia anual de 40% de raios CG positivos enquanto que o valor m´edio para toda ´area do pa´ıs ´e de 10%. Ely e Orville (2005) atribu´ıram essa anomalia `as tempestades de inverno e `a topografia da regi˜ao, que confina a brisa mar´ıtima devido `a presen¸ca das Montanhas Rochosas. Esse autores encontram ainda que a altura do n´ıvel de temperatura de -10oC

est´a relacionada com a polaridade dominante de raios CG, enquanto que o cisalhamento do vento n˜ao mostrou uma rela¸c˜ao significante. Outra observa¸c˜ao feita por Ely e Orville (2005) foi que as tempestades que produziram poucos raios CG (<6) foram as que mais contribu´ıram para o n´umero total de +CG. E por fim, Fernandes et al. (2006) analisaram o efeito da queima de biomassa na polaridade dos CGs na regi˜ao Amazˆonica, encontrando um decr´escimo no pico de corrente dos −CGs e um aumento do pico de corrente e da por- centagem de +CGs com a aumento da polui¸c˜ao na regi˜ao. Esse autor sugeriu ainda que as

nuvens formadas durante per´ıodos com maior polui¸c˜ao atmosf´erica na regi˜ao Amazˆonica possu´ıam um maior desenvolvimento vertical com centro de cargas positiva mais elevado devido ao efeito dos aeross´ois na microf´ısica das nuvens (Figura 1.2) e da termodinˆamica em elevar a altura da base das nuvens.

Lyons et al. (1998), Murray et al. (2000) e Smith et al. (2003) estudaram a rela¸c˜ao entre as queimadas das florestas do M´exico no ano de 1998 e o aumento do n´umero de descargas CG positivas no estado do Texas, Estados Unidos, neste mesmo ano. Lyons et al. (1998) encontraram que porcentagem de raios +CG foi trˆes vezes maior que a m´edia climatol´ogica e os picos de corrente positivas foram duas vezes maior. Murray et al. (2000) enfatizaram que esses aumentos foram verificados em pontos isolados, somente em ´areas onde as plumas de queima de biomassa inseriam grandes quantidades de aeross´ois no ambiente. Lyons et al. (1998) atribu´ıram esse efeito ao aumento de n´ucleos de condensa¸c˜ao de nuvens (CCNs), afetando o espectro de got´ıculas que, conseq¨uentemente, pode afetar v´arios aspectos do mecanismo de separa¸c˜ao de cargas.

Por´em, Steiger et al. (2002) mostraram que o n´umero de descargas +CG vem dimi- nuindo climatologicamente na cidade de Houston, Texas, Estados Unidos. Esses autores atribu´ıram esse fato ao efeito de ilha de calor e ao aumento da concentra¸c˜ao de CCNs pela polui¸c˜ao industrial, principalmente pelo aumento do n´umero de refinarias de petr´oleo. As plumas de poluentes das refinarias tˆem principalmente altas concentra¸c˜oes de nitratos e sulfatos, sendo que os nitratos s˜ao n´ucleos de condensa¸c˜ao mais ativos por serem maiores em tamanho e mais higrosc´opicos que os sulfatos. Entretanto, os sulfatos s˜ao part´ıculas muito pequenas (diˆametro < 1µm) e tendem a estabilizar as nuvens (Rosenfeld e Lensky, 1998; Williams et al., 1999). Rosenfeld e Lensky (1998), Rosenfeld (1999) e Williams et al. (1999) hipotetizaram o efeito dos aeross´ois nas nuvens: altas concentra¸c˜oes de CCN sobre as cidades agem reduzindo o tamanho m´edio de got´ıculas nas nuvens, o que tamb´em diminui a eficiˆencia de colis˜ao e o processo de coalescˆencia. Assim, existe mais ´agua super-resfriada em altos n´ıveis das nuvens que se formam em ambientes polu´ıdos. Como o processo de separa¸c˜ao de cargas n˜ao-indutivo ´e dependente da quantidade de ´agua super-resfriada (Ta- kahashi, 1978; Jayaratne et al., 1983; Saunders et al., 1991; Avila e Pereyra, 2000), mais ´agua super-resfriada pode criar graupel de tamanhos maiores , o que aumentar´a o n´umero de colis˜oes com cristais de gelo, aumentando tamb´em a eletrifica¸c˜ao das tempestades (Stei-

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ger et al., 2002). Steiger et al. (2002) apontaram que o maior aumento na eletrifica¸c˜ao das nuvens ocorreu durante as tardes das esta¸c˜oes quentes, o que d´a ainda mais suporte para hip´otese de efeito dos aeross´ois: ventos de escala sin´otica s˜ao fracos nesses per´ıodos, permitindo que mais polui¸c˜ao fique concentrada sobre a cidade. Al´em disso, a circula¸c˜ao de ilha de calor ´e mais intensa durante as tardes de ver˜ao, o que tamb´em n˜ao permite a dispers˜ao dos poluentes. Por outro lado, Morales et al. (2007) mostraram que forma¸c˜ao das tempestades do estado de S˜ao Paulo est˜ao diretamente associadas `a circula¸c˜ao de grande escala do vento e amplitude t´ermica. Esses autores conclu´ıram que os dias de forma¸c˜ao tempestades entre os anos de 2000 e 2004 tinham um ciclo diurno de vento de noroeste durante a manh˜a rotacionando para sudeste ap´os as 16:00HL permanecendo de leste du- rante a noite, enquanto que os dias sem a forma¸c˜ao de tempestades tinham um escoamento t´ıpico da circula¸c˜ao de brisa mar´ıtima, com o vento de nordeste durante a manh˜a e de su- deste durante a tarde. Eles mostraram ainda que os dias com tempestades apresentaram uma amplitude maior de temperatura e m´aximos em m´edia 3.2oC maiores que os dias sem

tempestades.

Os efeitos microf´ısicos especulados por Steiger et al. (2002) na explica¸c˜ao da diminui¸c˜ao da porcentagem de raios +CG s˜ao baseados no trabalho de Jayaratne et al. (1983). Jaya- ratne et al. (1983) mostrou, em seus estudos experimentais de carregamento de graupel durante colis˜oes com cristais de gelo, que impurezas na ´agua de nuvem tem um efeito significativo no sinal e magnitude da carga transferida. Nesses estudos experimentais, a magnitude de carregamento negativo aumentou quando as got´ıculas possu´ıam altas con- centra¸c˜oes de impurezas, e a temperatura de revers˜ao de sinal da carga encontrou-se em temperaturas mais quentes. Se o carregamento negativo do granizo ocorre em tempera- turas mais quentes devido a um aumento das impurezas na ´agua da nuvem, isso pode estender o principal centro de carga negativa para regi˜oes mais baixas da nuvem, supri- mindo o centro de carga positiva abaixo (Pruppacher e Klett, 1997; Steiger et al., 2002). A extens˜ao da regi˜ao principal de cargas negativas em um modelo tripolar de nuvem pode produzir mais raios CG negativos, diminuindo a porcentagem de descargas positivas.

Smith et al. (2003) tamb´em estudaram os efeitos da intrus˜ao das plumas de queima de biomassa da Am´erica Central na regi˜ao do Planalto Central norte-americano, e comparam com uma situa¸c˜ao semelhante ocorrida durante o ver˜ao de 2000 no noroeste dos Estados

Unidos. Esses autores n˜ao encontraram nenhum efeito dos aeross´ois de queimadas no noro- este dos Estados Unidos influenciando a porcentagem de descargas atmosf´ericas positivas. Smith et al. (2003) tamb´em apontaram que o caso das queimadas de 1998 foi um per´ıodo anomalamente seco e de altas temperaturas no Planalto Central, o que tamb´em provocou uma anomalia de CAPE. Entretanto, as ´areas com as maiores porcentagens de +CG n˜ao tiveram anomalias significativas de CAPE. Utilizando um modelo 1D com processos de eletrifica¸c˜ao de tempestades, Smith et al. (2003) simularam uma tempestade no estado do Texas, de um dos dias que houve coincidˆencia de um pico de polui¸c˜ao e aumento do n´umero de +CG, simplesmente adicionando altas concentra¸c˜oes de CCN ao modelo. Os resultados obtidos mostraram que, em termos de taxas, for¸ca e porcentagem de raios CG, o modelo n˜ao apresentou sensibilidade alguma ao aumento do n´umero de CCN. Por´em, ao fazerem a sondagem de condi¸c˜ao inicial um pouco mais ´umida, a m´edia da porcentagem de +CG diminuiu e a taxa de descargas aumentou. Assim, Smith et al. (2003) atribu´ıram o aumento de +CG somente `a condi¸c˜ao de anomalia seca do ver˜ao de 1998, ressaltando que ´e poss´ıvel que a fuma¸ca das queimadas tenha na verdade redistribu´ıdo a precipita¸c˜ao suficientemente para que naquele per´ıodo fossem produzidas condi¸c˜oes mais secas, como sugere a teoria do efeito de aeross´ois (Rosenfeld e Lensky, 1998; Rosenfeld, 1999; Williams et al., 1999), talvez criando um efeito secund´ario das queimadas nas descargas atmosf´ericas. Mais recentemente, Carey e Buffalo (2007) mostraram que o ambiente de meso-escala pode indiretamente controlar a polaridade dos CGs afetando diretamente a estrutura, dinˆamica e propriedades microf´ısicas de tempestades severas. Esses autores mostram que as tempestades positivas (tempestades com mais de 25% de +CGs) tendem a se formar em ambientes com uma baixa a m´edia troposfera mais seca, altura da base da nuvem (hN CL)

mais alta, menor espessura da camada quente (ECQ=altura da isoterma de 0oC menos

a altura da base da nuvem), maior instabilidade condicional, forte cisalhamento do vento entre 0 e 3 km de altura, e grande empuxo na regi˜ao de fase mista da tempestade. A hN CL e a relacionada ECQ foram os parˆametros mais diferenciados entre as tempestades

positivas (maior hN CL e menor ECQ) e negativas (menor hN CL e maior ECQ), gerando a

“hip´otese da ECQ”: maiores hN CL e conseq¨uentes menores ECQ podem ser interpretadas

como regi˜oes de correntes ascendentes mais largas com menos entranhamento de ar mais seco do ambiente, resultando em menor dilui¸c˜ao da ´agua de nuvem e empuxo nas tem-

Se¸c˜ao 1.4. Modelagem num´erica de tempestades e raios 23

pestades positivas. Logo, a CAPE pode ser melhor processada e intensificar tamb´em as correntes ascendentes, levando `a supress˜ao da precipita¸c˜ao e um aumento da fra¸c˜ao nu- vem/precipita¸c˜ao, tornando as tempestades positivas mais intensas e com maior conte´udo de ´agua l´ıquida na regi˜ao de fase mista. A “hip´otese da ECQ” explica como as tempesta- des negativas, que apresentaram mais ´agua l´ıquida adiab´atica e portanto maior potencial para conte´udos de ´agua l´ıquida maiores que as tempestades positivas, se tornaram menos intensas que as positivas.

Como v´arios autores mencionados acima sugerem que a polui¸c˜ao da queima de biomassa e as caracter´ısticas termodinˆamicas de superf´ıcie e da atmosfera podem influenciar na polaridade dos CGs, nesta tese de doutarado tamb´em s˜ao analisadas tais influˆencias na polaridade das descargas. A predominˆancia de +CGs e −CGs ao longo de 4 anos de dados s˜ao analisados, juntamente com uma an´alise mais detalhada da polaridade das descargas das tempestades durante os experimento DRYTOWET (Cap´ıtulo 3).