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3.3. A Relação Entre Direito e Moral: Conceito, Validade e (Dupla) Natureza do Direito

4.1.1. O Caso Vanusa: Concursos Públicos e a Aplicação da “Teoria do Fato Consumado”

Em 07 de agosto de 2014, o Supremo Tribunal Federal julgou o Recurso Extraordinário nº. 608.482239 que, sob a relatoria do Ministro Teori Zavascki, foi provido pela maioria dos membros da Corte. O recurso foi interposto pelo Estado do Rio Grande do Norte em face do acórdão que julgou a apelação cível nº. 2008.011175-4240 ao confirmar a sentença do juízo de primeiro grau de jurisdição. A decisão do juízo a quo julgou procedente o pedido principal de V. F. da A. que pleiteava, à época do ano de 2001, anular ato administrativo que a desclassificava de concurso público para o ingresso à carreira de Agente da Polícia Civil, regulado pelo Edital nº. 001/2000.

Após aprovação na prova escrita, a candidata foi convocada para a etapa seguinte, dos exames físicos, na qual realizou vinte e dois abdominais, dois a mais do que os vinte exigidos. Entretanto, foi reprovada sob a justificativa de que três dos abdominais não foram contabilizados porque teriam sido mal efetuados, reduzindo a contagem para dezenove. Sem obter êxito na via administrativa, V. F. da A. ajuizou ação ordinária em face do Estado do Rio Grande do Norte, cujo pedido em sede liminar foi julgado procedente, autorizando-a a participar da quarta etapa do certame e considerando suprida a terceira - do exame psicotécnico - pela apresentação de laudo psicológico emitido por profissional competente. Ao final, o juízo julgou procedente o pedido da ação ordinária, confirmando a decisão liminar.

Inconformado, o Estado do Rio Grande do Norte interpôs apelação cível alegando infringência às disposições do edital e violação ao princípio da isonomia. Para o apelante, não haveria nos autos nenhum documento comprovando os fatos alegados na inicial, além de que a não realização da terceira etapa do certame não poderia ser suprida por mero laudo psicológico. Em contrarrazões, a recorrida alegou que teria concluído com sucesso os requisitos exigidos pelo edital, e que possui o direito a ser mantida no cargo diante da aplicação da “teoria do fato consumado”. Além disso, alega que o teste físico e o exame psicotécnico não poderiam ser utilizados como critérios de admissão em concurso público.

A 3ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Norte entendeu que, embora inexista demonstração de que a apelada tenha completado com êxito os exercícios

239 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 608.482. Recorrente: Estado do Rio Grande

do Norte. Recorrida: V. F. da A. Relator: Min. Teori Zavascki. Brasília, 07 de agosto de 2014. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=7088200. Acesso em 30 out 2016.

240 Id. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Norte. Apelação Cível nº. 2008.011175-4. Recorrente:

Estado do Rio Grande do Norte. Recorrida: V. F. da A. Relator: Des. Amaury Moura Sobrinho. Natal, 23 de abril de 2009. Disponível em: http://esaj.tjrn.jus.br/cjosg/pcjoDecisao.jsp?OrdemCodigo=1&tpClasse=J. Acesso em 30 out 2016.

do teste físico e que não há ilegalidade em tal tipo de exigência, a recorrida fazia jus ao cargo pela aplicação excepcional da teoria do fato consumado. Conforme o voto do relator, pelo fato de V. F. da A. estar, à época, exercendo o cargo há mais de sete anos sem notícias de qualquer ato incompatível com a atividade exercida, sua destituição geraria “prejuízos de elevada monta e provavelmente irreversíveis”, além do dano causado à Administração Pública. Diante do caráter excepcionalíssimo da situação, foi reconhecida a convalidação da decisão judicial do juízo a quo, em homenagem aos princípios da segurança jurídica e razoabilidade.

O apelante vencido questionou a decisão do tribunal potiguar ao interpor Recurso Extraordinário, o qual, admitido para julgamento, deu azo à repercussão geral nº 476 no Supremo Tribunal Federal: “Manutenção de candidato investido em cargo público por força de decisão judicial de caráter provisório pela aplicação da teoria do fato consumado”. No recurso constitucional, o Estado do Rio Grande do Norte aponta ofensa aos arts. 5º, caput, e II, e 37, caput, I e II, da Constituição Federal, por entender que a decisão recorrida (i) viola o princípio da isonomia, visto que a recorrida não se submeteu ao exame psicotécnico como os demais candidatos inscritos no concurso público; (ii) a vulneração do “princípio da vinculação ao edital”, uma vez que a participação de V. F. da A. na etapa final do concurso foi assegurada por força de liminar, sem que se cumprisse fase prévia; (iii) inaplicabilidade da “teoria do fato consumado” para perpetuar “decisões injustas, ilegais ou inconstitucionais”.241

O Supremo Tribunal Federal, por maioria de seus membros, deu provimento ao recurso, nos termos do voto do Ministro relator Teori Zavascki, vencidos os Ministros Luís Roberto Barroso e Luiz Fux, para reformar as decisões das instâncias judiciais inferiores e, por consequência, julgar improcedente o pedido principal da ação ordinária.

Do voto do Min. Zavascki percebe-se que, embora não cite expressamente o jusfilósofo alemão, a sua decisão foi construída nos moldes da teoria dos princípios de Alexy. Para o relator do recurso, o caso trata do “[...] confronto de duas ordens de valores, que, por incompatíveis entre si, devem ser sopesadas para que se defina qual delas merece prevalecer”.242 Conforme esse raciocínio, haveria, de um lado, o interesse individual da candidata em manter o cargo público que, embora obtido sem aprovação em concurso público regular, já estava sendo exercido, por força de liminar, há mais de sete anos; de outro, o interesse público em dar cumprimento ao art. 37, II, da Constituição Federal que, segundo o Min. Zavascki, “[...] dá

241 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 608.482. Recorrente: Estado do Rio Grande

do Norte. Recorrida: V. F. da A. Relator: Min. Teori Zavascki. Brasília, 07 de agosto de 2014. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=7088200. Acesso em 30 out 2016. p. 4.

concretude a outros princípios da administração pública, especialmente o da impessoalidade, da moralidade e da eficiência”243.

Conforme o voto do relator, o desacordo jurídico em questão se trataria de uma colisão entre valores e interesses antagônicos, em que ambos encontrariam, de algum modo, resguardo no ordenamento jurídico, mas que, devido às particularidades do caso concreto, inevitavelmente entrariam em rota de colisão, fazendo com que um (ou mais) necessariamente prevaleça(m) diante do peso do(s) outro(s). A conclusão do Min. Zavascki é a de que “[...] sopesando os valores e interesses em conflito, faz preponderar, sobre o interesse individual do candidato, [...] o peso maior do interesse público na manutenção dos elevados valores jurídicos que, de outra forma, ficariam sacrificados”.244

O voto do relator não gerou unanimidade na Corte. O Min. Luís Roberto Barroso inaugurou a divergência, ao desprover o recurso extraordinário interposto pelo Estado do Rio Grande do Norte. Para o Min. Barroso, o caso dos autos não se limita ao confronto do interesse público versus interesse privado, mas suscita “[...] interessante caso de ponderação de normas constitucionais”245 entre o princípio da obrigatoriedade do concurso público, corolário da isonomia, e o da segurança jurídica que em sua vertente subjetiva protege a confiança legítima. Diferentemente das submáximas da proporcionalidade de Alexy, Barroso apresenta três fatores como “proposta de parâmetro específico para a ponderação”246, quais sejam: “[...] a) a permanência no cargo por mais de cinco anos; (b) a plausibilidade da tese jurídica que justificou a investidura e a ausência de conduta processual procrastinatória; (c) decisão de mérito proferida em segunda instância”.247

Da divergência entre os Ministros exsurge a questão central que exterioriza claramente o núcleo da problemática da teoria dos princípios, da fundamentação das decisões judiciais em casos constitucionais sensíveis e a sua relação com o paradigma filosófico que ampara o pensamento alexyano. Se ambos os Ministros entendem que se trata de um caso de sopesamento/ponderação entre normas constitucionais, por que chegaram a resultados diametralmente opostos em suas decisões? Afinal, qual das posições traz argumentos mais sólidos? Seriam ambas igualmente possíveis e legítimas?

243 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 608.482. Recorrente: Estado do Rio Grande

do Norte. Recorrida: V. F. da A. Relator: Min. Teori Zavascki. Brasília, 07 de agosto de 2014. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=7088200. Acesso em 30 out 2016. p. 5.

244 Ibid. p. 10. (grifo nosso) 245 Ibid. p. 19. (grifo nosso) 246 Ibid. p. 20.