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2.3. Algumas Repercussões do Giro Linguístico na Filosofia Moral Contemporânea

2.3.1. O Discurso Prático Sob as Formas de Vida

No início do século XX a Filosofia de um modo geral passa a ter como um de seus principais objetos de estudo a linguagem, sobressaindo-se aquilo que mais tarde veio a se chamar de giro linguístico (linguistic turn). Uma das características dessa virada foi a constatação de que a linguagem não é apenas uma atividade descritiva ou emotiva, mas guiada por regras compartilhadas intersubjetivamente, como diagnosticou Ludwig Wittgenstein. Em contraposição a sua própria tese inaugural em seu Tractatus logico-philosophicus, publicada em 1921, o filósofo vienense percebe que a linguagem não se limita a função meramente representativa da realidade, mas engloba também diversas outras formas de expressão significativa.

A postura isomórfica entre linguagem e mundo é abandonada por Wittgenstein em suas Investigações Filosóficas, obra póstuma editada somente em 1953. Nessa sua segunda fase, a linguagem passa a ser entendida a partir de uma analogia com a noção de “jogos”, ao se diagnosticar que se trata de atividades constituídas por um conjunto de regras. Daí surge o conceito de jogos de linguagem (Sprachspiele) em sua obra.89

E por que essa aproximação? Wittgenstein percebe que o que se pode verificar tanto em um jogo como na linguagem é que em ambos está pressuposto um conjunto de regras como condição para sua existência. Podemos visualizar essa tese com o seguinte exemplo: ainda que dois jogadores possam convencionar que em uma partida de xadrez sejam utilizadas peças diferentes das tradicionais, o jogo poderá ser tranquilamente executado sem qualquer prejuízo. Entretanto, isso não seria possível caso as regras do xadrez fossem alteradas, pois, desse modo, se passaria a jogar outro jogo. Isto é, não são os instrumentos utilizados no jogo que determinam o que ele é, mas a composição de suas regras compartilhadas com os demais jogadores. O mesmo, dirá Wittgenstein, acontece com a linguagem. Ela é composta por um conjunto de regras que, se desrespeitadas, não farão sentido e, como consequência, não serão entendidas e aceitas pelos demais interlocutores.90

As regras que compõe a linguagem vão desde regras gramaticais até as regras pragmáticas dos usos que fazemos com os objetos na vida cotidiana. Nesse contexto também se inclui a possibilidade de identificarmos proposições não apenas descritivas da realidade como falsas ou verdadeiras ou falsas. A possibilidade de surgir algo que identificamos como sendo equivocado só surge quando estiver pressuposta uma regra que diferencie entre um

89 WITTGENSTEIN, Ludwig. Philosophische Untersuchungen. Frankfurt: Suhrkamp, 1971. p. 17. (§ 7) 90 Ibid. p. 104-105. (§§ 197-199)

comportamento correto do incorreto. Assim, na medida em que a dimensão pragmática passa a ser o grande diferencial, Wittgenstein introduz o conceito de formas de vida (Lebensform) para se referir às práticas pelas quais os indivíduos compartilham significados de suas manifestações em determinados contextos sociais. As regras que compõem a linguagem estão inseridas nesses contextos onde os indivíduos compartilham dessa mesma forma de vida. Com isso, Wittgenstein descobre que a linguagem descritiva compõe apenas uma das diversas formas de vida que compartilhamos. Com a linguagem não somente enunciamos proposições, mas praticamos ações que geram efeitos práticos nos demais participantes, como pedir algo, exclamar, ordenar, fazer suposições, inventar uma história, representar personagens teatrais, cantar melodias, adivinhar enigmas, agradecer, rezar, etc.91

Uma vez que uma linguagem puramente privada, enquanto atividade que não respeita as regras que compõe a estrutura linguística na qual torna possível nossa comunicação, não conseguiria ser compreendida pelos demais e, assim, não geraria nenhum efeito prático. Dessa forma, não seria possível seguir uma regra privada, na medida em que nessa regra faltaria justamente a condição que a faz ser regra: o reconhecimento e a capacidade de gerar efeitos práticos nos demais participantes que compartilham da mesma forma de vida, do mesmo contexto social.92

Conforme relata Manfredo Araújo de Oliveira, a filosofia do segundo Wittgenstein é seguida por John Langshaw Austin, que dá seguimento à tese de que a linguagem não se limita à função descritiva ou representativa do mundo. Porém, Austin considera que para determinados usos de linguagem é necessário um sistema conceitual mais preciso do que os jogos de linguagem a fim de alcançar um grau de determinação conceitual maior.93

Esse grau será abordado por Austin com o conceito de atos da fala (speech acts). Trata- se de enunciados que, além de pronunciar algo, realizam uma ação prática. Austin os ilustra com os seguintes exemplos: “dizer ‘eu aceito’ (que essa mulher seja minha esposa) quando perguntado pela autoridade religiosa em uma cerimônia matrimonial” ou "Eu aposto seis centavos contigo que amanhã choverá”. Nesses casos, não se está apenas pronunciando algo, mas também realizando uma ação: no primeiro, se faz uma promessa; no segundo, afirma-se algo.94

91 WITTGENSTEIN, Ludwig. Philosophische Untersuchungen. Frankfurt: Suhrkamp, 1971. p. 24-25. (§ 23). 92 Ibid. p. 106. (§ 202)

93 OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta linguístico-pragmática na filosofia contemporânea. 3. ed. São

Paulo: Edições Loyola, 2006. p. 149 e segs.

94 “(E. a) ‘I do (sc. take this woman to be my lawful wedded wife)’ – as uttered in the course of the marriage

ceremony. (…) (E. d) ‘I bet you sixpence it will rain tomorrow”. AUSTIN, John Langshaw. How to do things

Nesse sentido, a originalidade da teoria dos atos da fala de Austin se fixa na descoberta do ato ilocucionário (illocutionary act): um enunciado em que se realiza uma ação prática ao ser pronunciado. Conforme Austin, a existência de atos ilocucionários demonstra que a linguagem pressupõe um conjunto de regras e, em sua ausência, os atos de fala não seriam sequer possíveis de serem identificados. Assim é possível formular uma doutrina das infelicidades (doctrine of the infelicities) em que são descritos os modos pelos quais os atos de fala podem ser malsucedidos como ações. Isso aparece no caso em que alguém afirma algo sem crer no que diz, ainda que tal enunciado não contenha nenhum defeito lógico ou gramatical. Isso deixa ainda mais explícito que há, além de regras sintáticas e semânticas, regras pragmáticas que servem de base à linguagem. Diante dessa descoberta, Austin consegue concluir que um enunciado pode ser defeituoso não porque o que foi dito é falso, mas é contraditório com o comportamento do falante.95

Além da enorme influência de Wittgenstein e Austin, a teoria do discurso de Alexy é fortemente influenciada por outros autores da tradição analítica, sobressaindo-se as contribuições de Richard M. Hare, Stephen Toulmin e Kurt Baier. De cada um desses autores Alexy retira aspectos importantes para construir sua teoria do discurso prático geral que, por sua vez, servirá de base para a estrutura do discurso jurídico.96

A concepção de Hare97 sobre a universalidade dos enunciados normativos é de fundamental importância para Alexy. Nessa concepção, o filósofo britânico mostra que quem expressa um juízo moral N justificando-o com base em uma razão G, necessariamente pressupõe a existência de uma regra R entre os participantes do discurso. Na medida em que essa regra recebe caráter universal, Hare exige que aquele que profere determinado juízo moral deve estar disposto a aceitar as restrições criadas pela mesma, ainda que venham a recair sobre o próprio articulador do juízo. Na sequência, um dos pontos que Alexy agrega de Toulmin98 se refere à tese de que há regras do discurso moral que consideram certos enunciados de fato (G) como sendo boas razões para justificar um juízo moral N. Passa-se a reconhecer que a argumentação moral não deve começar do vazio, mas encontra-se ligada também a aspectos históricos. Ela está ligada ao material normativo surgido historicamente. Além disso, Alexy

95 AUSTIN, John Langshaw. How to do things with words. 2. ed. Cambridge: Harvard University Press, 1975.

p. 14.

96 ALEXY, Robert. Theorie der juistischen Argumentation, op. cit., p. 106-108, 121-123, 132-133. 97 HARE, Richard M. The language of morals. Oxford: Oxford University Press, 1952.

incorpora também o argumento da generalizabilidade de Baier,99 em que se traz para o raciocínio moral a avaliação das consequências negativas da ação.