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Neste primeiro capítulo foi traçado o perímetro histórico e filosófico que liga o idealismo transcendental de Kant até a estrutura racional do discurso prático geral na teoria discursiva de Robert Alexy. Com a finalidade de esclarecer essa trajetória e suas repercussões no cenário jurídico, sintetizaremos as principais conclusões alcançadas até então de forma sistemática e elucidativa. A partir dessa parada metodológica, permitir-se-á que se siga ao próximo capítulo com uma espécie de mapa geral do background filosófico que sustenta hermeneuticamente a complexa teoria de Alexy.

A partir da constatação de que a razão, na busca pela totalidade do conhecimento, esbarra suas pretensões na incontornabilidade de três ideias básicas, Kant recorre ao método cético para concluir que juízos morais, ainda que não possam ser verificados no mundo fenomênico, encontram uma morada segura no mundo racional ancorados na noção de uma vontade livre. Essa separação representa a distinção fundamental intensificada por Kant entre razão teórica e prática, mantendo o alerta de Hume de que não se poderia confundir os terrenos dos fatos com o dos valores, a atitude descritiva com a prescritiva.

Mais do que isso: no âmbito da razão prática, em que a transgressão aos deveres morais apenas proporciona sanções internas ao agente, Kant recorre a uma lei universal de liberdade para fundamentar as instituições jurídicas que se incumbiriam do cumprimento das condutas humanas na externalidade. Essa nova separação entre deveres éticos e jurídicos implica, do ponto de vista de sua concretização prática, que enquanto os últimos assumem uma precisão matemática e se aplicam por subsunção da norma ao fato, os primeiros contêm uma margem de aplicação cuja amplitude não apenas leva a colisões entre deveres igualmente universais, como permite que o agente possa se valer de uma margem de discricionariedade (Spielraum) para decidir nesses casos.

A filosofia kantiana foi, na passagem do século XIX para o XX, objeto de profundos estudos pelo movimento intelectual na Alemanha denominado neokantismo. Em uma de suas vertentes, o neokantismo se preocupou precisamente com o problema filosófico da separação entre ser e dever ser, que expressa a distinção entre as faculdades teórica e prática da razão kantiana. Uma das principais reformulações que esse movimento realizou foi expandir as formas a priori em Kant ainda restritas àquelas disciplinas com capacidade de universalização para o mundo cultural, na busca pelo fundamento seguro para as ciências do espírito, à época desafiadas pela navalha do positivismo científico. A partir do neokantismo, o Direito que antes derivava sua legitimidade da régua do imperativo universal agora passa a integrar o mundo

cultural, determinado pela noção de valor como o elemento sustentador de qualquer ciência do espírito. Há, nesse momento, uma vinculação necessária e estruturante entre o fenômeno jurídico com a esfera dos axiomas valorativos.

Esse elemento valorativo foi exatamente aquilo que Gustav Radbruch precisou para desenvolver a sua famosa fórmula, formulando um conceito de Direito do qual se poderia extrair a existência de normas jurídicas que pudessem perder sua validade se atingirem determinado grau de injustiça. O detalhe do qual parece que Radbruch não tenha dado tanta importância é o fato de que esse elemento valorativo ligado à cultura, quando incorporado ao Direito, torna-se refém da possibilidade de o seu conteúdo ser preenchido segundo as preferências políticas e morais daquelas autoridades encarregadas de sua aplicação prática. Ainda que o valor seja o elemento universal que sustenta as ciências do espírito, o seu conteúdo permanece indefinível a priori.

Nos passos do pluralismo moral que dominou o universo intelectual no pós-Guerra, a chamada jurisprudência dos valores transporta essa dimensão valorativa integrada ao conceito de Direito para praxe jurídica, com o objetivo de assim explicar a natureza das normas de direito fundamental que preencheram o núcleo da Lei Fundamental alemã de Bonn. Daí a razão do famoso trecho de uma decisão do Tribunal Constitucional Federal declarar que a Constituição alemã se constitui como uma ordem concreta de valores. Com essa incorporação, a jurisprudência dos valores se reforça para superar a jurisprudência dos interesses, justamente por meio da nova metodologia jurídica para os casos de indeterminações interpretativas.

Nesse novo contexto, a tarefa da Teoria do Direito passa a construir um modo de argumentação racional para essa diversidade valorativa que ingressou no mundo jurídico, especialmente na forma de normas de direito fundamental. Assim, o problema central se volta para a investigação da metodologia que permita dar objetividade à pluralidade do conteúdo dos juízos morais manifestados no mundo cultural e que passaram a integrar o Direito. Diante desse cenário é que se desenvolve o pensamento de Robert Alexy. Não é por acaso que a primeira grande obra do professor alemão – a Teoria da Argumentação Jurídica –, já em suas páginas iniciais, busca no segundo Wittgenstein as premissas básicas para todo o seu desenvolvimento posterior. A noção de linguagem enquanto um empreendimento constituído por regras – e não meramente como adequação da palavra ao objeto - abre a possibilidade de que juízos morais também possam ser identificados como verdadeiros ou falsos.

Ao aprimorar o modelo de jogos de Wittgenstein, a teoria da argumentação avança com John L. Austin para mostrar o elemento ilocucionário da linguagem. Com ele, permite-se demonstrar as contradições que surgem entre a expressão enunciativa e o comportamento

prático de seu emissor (contradição performativa). Na sequência, Habermas se apropria desse conceito central de Austin para formular uma de suas teses principais: substituir a razão prática solipsista pela comunicativa, procurando encontrar os pressupostos necessários para desenvolver um discurso racional e, assim, alcançar o consenso para desacordos jurídicos, morais ou políticos.

Somando as contribuições de autores como Hare, Perelman e da Escola de Erlangen, Alexy encontra os recursos suficientes para elaborar um esboço de uma teoria geral do discurso prático racional. O discurso jurídico seria então um caso especial do discurso prático geral, ainda que limitado sob condições institucionais, como o conjunto de leis, precedentes e a dogmática jurídica. Em geral, o esboço da teoria do discurso prático racional geral de Alexy procura apresentar as condições pragmático-transcendentais nas quais o discurso normativo se sustenta, encontrando, para tanto, diversas regras e formas de argumentos, que constituem o código da razão prática.

Com esse material discursivo à sua disposição na esfera da do discurso prático geral, Alexy pode então estruturar uma teoria que incorpora elementos morais no conceito de Direito e seguir com a distinção kantiana entre deveres perfeitos e imperfeitos. Acrescentando, no entanto, no âmbito dos deveres (éticos) imperfeitos, todas as contribuições filosóficas e as transformações jurídicas obtidas no hiato até a contemporaneidade, e assim desenvolver uma teoria dos princípios.

3 DOS TRAÇOS E DESDOBRAMENTOS FUNDAMENTAIS

A obra de maior repercussão no Direito Brasileiro de Robert Alexy é a Teoria dos Direitos Fundamentais (Theorie der Grundrechte), publicada oficialmente pelo autor no ano de 1985. Se for possível delinear uma síntese genérica da obra, podemos citar a passagem que inaugura o posfácio de 2000 desta obra: “No núcleo deste livro encontra-se a tese segundo a qual os direitos fundamentais, independentemente de sua formulação mais ou menos precisa, assumem o caráter de princípios e são mandamentos de otimização”.122

A ideia geral de que os direitos fundamentais de uma Constituição são considerados princípios traz diversas consequências e interfere no sistema jurídico como um todo. Daí a razão pela qual se dispensa maiores esclarecimentos a respeito da importância de uma teoria que pretende manejar o ponto nevrálgico do Direito. Os casos jurídicos nos quais se interpelam direitos constitucionais são normalmente aqueles que atraem maior atenção do público em geral, e, ao mesmo tempo, os mais sensíveis e complexos de alcançar um resultado racional. Uma das razões pelas quais isso acontece é o fato de que esse tipo de litígio transparece de forma mais evidente as interconexões que o universo jurídico atinge com as demais áreas do conhecimento. Discutir a aplicação e eficácia das normas constitucionais significa considerar necessariamente aspectos morais e políticos na interpretação jurídica, os quais permeiam de forma quase inexorável o modo como se desenvolve a fundamentação das decisões judiciais.

A teoria dos princípios de Alexy é uma das mais bem-sucedidas teorias preocupadas com essas questões. O jusfilósofo alemão introduz um modelo no qual as normas de direitos fundamentais são compreendidas a partir de uma estrutura semântica na qual lhes permite abranger um suporte fático amplo, levando ao modelo epistemológico de colisão. A partir dessa tese central, é desenvolvido um procedimento analítico responsável por esclarecer as diversas possibilidades fáticas e jurídicas nas quais a decisão pode se dar. Ao final, Alexy conecta a estrutura da teoria dos princípios com uma teoria da argumentação jurídica, que, por sua vez, entende que o discurso jurídico é um caso especial do discurso prático geral. Não por outra razão que investigamos, no capítulo anterior, o modo pelo qual Alexy retira os pressupostos filosóficos básicos para desenvolver sua teoria do discurso prático racional geral. Neste capítulo veremos que tais teorias estão implicadas e consistentemente conectadas.

122 „Im Zentrum dieses Buches steht die These, daß die Grundrechte, unbeschadet ihrer mehr oder weniger präzisen

Formulierung, den Charakter von Prinzipien haben und daß Prinzipien Optimierungsgebote sind.“ ALEXY, Robert. Nachwort / Postscript (Texto sem publicação do autor no original), 2000. p. 1.