ALEGORIA E DRAMA BARROCO
3.8. Catástrofe e apogeu
Benjamin (1984a, p. 5658) afirma que as referências mais gerais da linguagem não podem ser entendidas como conceitos, mas como ideias. O universal é a ideia, mas não pode servir de média; o conceito vem à tona a partir da integração das extremidades do fenômeno analisado. Cabe ao investigador encontrar a essência dessas ideias. Ao perderem as palavras o sentido de signos linguísticos, elas passam a se efetivar como nomes. O reino dos signos foi estigmatizado depois da expulsão do Paraíso. O reino dos nomes delimita o início e o fim da escatologia, do estado adamítico e o da redenção messiânica no Barroco alemão.
Na tentativa de traçar a distinção entre dois gêneros narrativos, Benjamin (1984a) se reporta à temporalidade adamítica anterior à expulsão do Paraíso, e a intemporalidade Barroca depois da queda no mundo profano. O mundo criado pelo Barroco alemão, tutelado pelas duas Igrejas, a romana e a luterana, surge como mundo da representação em que há a cisão entre a atividade de representação e a ação humana propriamente dita. É aí que se instala a dicotomia entre a história concebida como natureza demoníaca e a história do drama pastoral como natureza hospitaleira, retrato do idílio paradisíaco, que forjou uma natureza como refúgio, e em que a cena foi se tornando eterna, enfeitiçadora e protetora do ser humano na correnteza do tempo. Portanto, a alegoria barroca leva a que se pense num outro
reino após a morte como sendo o verdadeiro paraíso, para que tudo permaneça como está. De igual modo, o capitalismo forjará uma fabulação para que se acredite em um novo reino, o reino das velocidades, dos benefícios tecnológicos, da elevação das ciências técnicas e do aniquilamento das ciências humanas.
Por isso, Benjamin (1984a, p. 181 e 182), na parte concernente à Alegoria e Drama barroco, irá criticar os estetas do romantismo alemão, por buscaram um saber do absoluto, a partir de um conceito de símbolo que nada tinha em comum com o conceito autêntico que emerge da expressão artística. Ele está querendo dizer com isso que o símbolo, visto pelos alegoristas do Romantismo alemão, empobrece o símbolo artístico, tornandose uma antiarte. Sua harmonia usurpa a expressão da arte que pode agora ser uma expressão desarmônica e livre das redomas do passado. Os românticos fizeram um uso fraudulento do simbólico. Queriam um indivíduo sem máculas, perfeito, defraudando uma perspectiva sagrada. Acabaram, com efeito, eliminando o entendimento ético, da mesma forma que no classicismo. Dessa forma, o raio de ação ou o raio cultural desse indivíduo puro, ficou restrito ao círculo do simbólico. Em oposição a esta visão simbólica, a apoteose Barroca terá de ser dialética; e terá de obter a consumação entre movimentos extremos. A interioridade antidialética do classicismo não tem nenhuma função, enquanto os problemas do Barroco estiverem ligados à política religiosa. No barroquismo, o indivíduo e sua ética não serão afetados, mas apenas sua comunidade religiosa.
Diz Benjamin a respeito da alegoria do classicismo:
Simultaneamente com seu conceito profano de símbolo, o classicismo, desenvolve sua contrapartida especulativa a do alegórico. Uma verdadeira teoria da alegoria não surgiu nessa época, nem havia surgido antes. Mas é legítimo descrever o novo conceito do alegórico como especulativo, porque na verdade ele se destinava a oferecer o fundo escuro contra o qual o mundo simbólico pudesse realçarse. A alegoria, como outras formas de expressão, não perdeu sua significação por se ter tornado 'antiquada'. O que se deu aqui, como é tão frequente, foi uma batalha entre a forma antiga e a posterior, que se tratava em silêncio porque, o conflito, áspero e profundo, não havia atingido uma cristalização conceitual. O pensamento simbólico do século XVIII era tão alheio à expressão alegórica original, que as poucas tentativas isoladas de tratar teoricamente o tema são desprovidas de qualquer valor para a investigação, e por isso mesmo são ilustrativas da profundidade do antagonismo (BENJAMIN, 1984, p. 182183).
Depois do classicismo barroco profanar o conceito de símbolo, criou com o alegórico um tempo nebuloso, sem entender o símbolo manifesto na própria expressão artística. O pensamento simbólico do século XVII dá um tratamento teórico alheio à expressão alegórica original dos tempos remotos. A forma antiga não tinha o sentido indutor e modelador dos tempos modernos e dos tempos contemporâneos, por isso, o árduo conflito entre a alegoria antiga e a moderna. No Barroco, a alegoria passou a buscar seu sentido no mundo histórico ou no fazer semiótico da linguagem, pois a natureza foi separada da história. A separação entre natureza e linguagem tratou o humano desde um sentido impróprio, originando uma alegorização teológica que está implicada na educação atual. Consoante a isso, a alegoria no Barroco inaugura duas vias extremas: a via da catástrofe e a via do apogeu. A via da catástrofe será implantada conforme a vontade do Príncipe – reino da ordem e da estabilidade; a do apogeu segue a história natural desprovida de fins. Por isso, a criatura estará condenada à imposição de um destino forjado pela mão do soberano e a morrer sem escolha.
Destas duas vias, Benjamin vai dizer que o intérprete pode (re)traduzir as alegorias, as alegorizações, pois nelas radicam as origens do Drama barroco.
Eliade (2007) ajudanos a esclarecer melhor a questão da ascensão e queda em Benjamin. Em Mito do eterno retorno (Parte 4 – O Terror da história), ao se referir à sobrevivência do Mito do eterno retorno, Eliade coloca em questão o ser humano que vivia nas civilizações tradicionais em relação ao homem integrante do mundo moderno. O homem tradicional demonstrava uma atitude pura em relação à história, e mesmo entendendo haver uma forma de história, fazia de tudo para depreciála. Rebelavase contra o tempo real e histórico, por entendêlo como o tempo profano e empobrecedor da existencialidade humana. Mais à frente, Eliade (2007) dirá que o judaísmocristão, ao introduzir pela primeira vez, na experiência religiosa, a categoria de fé, consumou a presença de Deus entre nós; e ao falar do horizonte dos arquétipos e da repetição, explicita que a forma que o homem moderno tem para se defender do terror da história é através da fé. Fora dessa condição, todas as outras liberdades na modernidade serão insustentáveis; não terão força suficiente “para justificar a história” (ELIADE, 2007, p. 137). Sustentando este ponto de vista, Eliade acrescenta:
o cristianismo é a 'religião' do homem moderno e do homem histórico, do homem que descobriu simultaneamente a liberdade pessoal e tempo contínuo (em lugar do tempo cíclico). É até interessante observar que a existência de Deus impôsse de maneira ainda mais urgente sobre o homem moderno, para quem a história existe como tal, como história e não como repetição, do que sobre o homem das culturas antigas e tradicionais, que, para defenderse do terror da história, tinha à sua disposição todos os mitos, rituais e costumes […] a ideia de Deus e das experiências religiosas que implica tenham existido desde épocas mais distantes, elas poderiam ser, e foram, algumas vezes subsaturadas por outras 'formas' religiosas (totemismo, culto dos ancestrais, Grande Deusas da fecundidade, e assim por diante), que respondiam mais prontamente às necessidades religiosas da humanidade primitiva. No horizonte dos arquétipos e repetição, o terror da história, quando apareceu, podia ser suportado. Desde a 'invenção' da fé, no sentido judeucristão da palavra (= para Deus tudo é possível), o homem que tinha deixado o horizonte dos arquétipos e da repetição, não pode mais defenderse contra aquele terror, exceto por intermédio da ideia de Deus (ELIADE, 2007, p. 137). Depois do surgimento do homem moderno, a história passou a existir como uma cadeia de fatos históricos sucessivos, banindo do seu caminho o tempo cíclico e repetitivo. Este foi o motivo de Deus passar a ser imposto com muito mais força sobre o homem moderno. O homem das culturas ancestrais, frente às atrocidades da história e o terror, abrigavase nos mitos, nos rituais e nos costumes disponíveis, como forma de escapar das imposições. O indivíduo moderno e histórico agarrouse ao cristianismo, vendo nele uma tábua de salvação, a partir da liberdade individual e da história linear. Tal cegueira acabou extirpando o tempo cíclico e repetitivo, e toda a tradição precedente.
Na sequência, Eliade (2007, p. 123) sinaliza para a sobrevivência do Mito do eterno retorno, confrontando o homem moderno (homem histórico) que, voluntarioso e consciente, cria a história como o homem das eras tradicionais. Este homem primitivo tinha uma atitude pura e não atribuía nenhum valor ao fato histórico em si; esta categorização não fazia parte do seu modo de existência. Na atualidade, darseia o conflito entre essas duas visões: a visão arcaica, que deveria ser chamada de arquetípica e ahistórica; e a visão moderna, que obriga cada vez mais a tolerar a pressão da história.
mito na história da civilização ocidental, procurando recuperar e fundir a tradição da mística judaica, por ter sido ela diminuída na modernidade. Em segundo, passa a mostrar que o estado de pureza antes da queda na Escolástica Medieval, na Renascença e no Barroco do século XVII, caiu numa visão instrumental, mecânica e técnica, desembocando no que ele caracteriza como historismo e positivismo; ou ainda, na fábula do real criada e escrita pelos tiranos de forma absoluta. Por isso, na compreensão literária do Estado moderno o Príncipe acaba com a inocência e com o mundo vinculado ao fazer; e com o capitalismo, as coisas se fragmentam mais ainda caindo no reino das significações. Esclarecidos estes pontos, acreditamos ficar mais visível que Benjamin estava refutando a teologia teatral exposta no palco Barroco. Por um lado, percebese o uso do palco móvel e a sua teatralização amoldadora; e, por outro, que o Drama barroco alemão não tinha nada a ver com a Tragédia antiga. A alegoria foi o fator dominante manifesto por detrás das representações dramáticas da teatralidade constituidora do Barroco alemão do século XVII, e por isso mesmo, ela precisa ser tratada em separado.