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CATADORES DE MATERIAIS RECICLÁVEIS: EXCLUSÃO, TRABALHO E IDENTIDADE

1.1. Os catadores do lixão

Para que haja um melhor entendimento sobre os processos de organização dos trabalhadores em cooperativas, é necessário que uma parte da trajetória destes homens e mulheres no lixão seja revivida, identificando processos e tentativas de organização do grupo6. A história terá como fonte o lixão de Presidente Prudente, cidade analisada na dissertação de minha pesquisa de mestrado , intitulada, “Educação Ambiental e Coleta Seletiva em Presidente Prudente: avaliando seus resultado no Conjunto Habitacional

Ana Jacinta”, apresentada no início dessa pesquisa, o que serviu de base para novas

investigações.

A pesquisa teve início em 2000, motivada pelo interesse na história dos catadores de materiais recicláveis do lixão de Presidente Prudente. A vivência e o aprendizado durante o convívio com estes trabalhadores durante mais de dez anos é o fator que proporcionou uma visão mais abrangente em sua organização. As leituras e reflexões foram e são de extrema importância, porém, o contato direto com estes homens e mulheres é o que diferenciou as análises científicas.

Sendo assim, é dentro de um processo de trocas, entre pesquisadores e catadores que o trabalho de pesquisa começou. Em um primeiro momento, os catadores

6 Para maiores informações ver: CANTÓIA, Sílvia Fernanda (2007), GONÇALVES, Marcelino Andrade

trabalhando e vivendo dos materiais recicláveis garimpados no lixão, e posteriormente, organizados em cooperativas de materiais recicláveis.

No lixão, quando foram avistadas, aquelas pessoas misturadas ao meio de restos, a sensação foi de indignação e revolta, misturadas a certa insegurança, pois a visão construída através da mídia local os definiu como “perigosos”, “revoltados”, “sem

educação”.

Nas primeiras aproximações, o grupo de trabalhadores ficou receoso, pois há anos eram expostos a olhares de desconhecidos que queriam tirar algum proveito da situação em questão, e na maioria das vezes os enganavam prometendo ajuda para a compra de cestas básicas, ou empregos, ou seja, ajuda assistencialista e sem resultados que proporcionassem melhorias concretas.

Eram tidos como animais em exposição, a diferença é que estes não tinham grades visíveis aos olhos desatentos dos observadores, as grades eram concebidas por uma trama excludente e perversa na qual se encontravam presos por não servirem mais a certas exigências sociais, seja na idade para executar trabalhos pesados, seja na falta de experiência profissional ou em um grau de aperfeiçoamento técnico.

É fundamental, neste ponto, demarcar o caráter violentamente degradante atribuído socialmente a catadores (as) de lixo a gerar exploração, humilhação e sofrimento prolongados e incorporados, a solapar sua humanidade, lançando-os à categoria de bichos, ao nível da irracionalidade. Não falamos aqui de qualquer bicho: nos referimos a abutres, urubus à cata de carniça, porcos a chafurdar no resto – expressões recorrentes para designar catadores (as) (ADAMETES, 2006, p.3).

Por estas razões e tantas outras, foram, não por opção, e sim por falta delas, obrigados a se instalarem nos amontoados de toneladas de lixo, objeto que não tinha mais serventia para os que os descartaram,

O mundo do trabalho sob o novo complexo de reestruturação produtiva é permeado não apenas por novos tipos de controle do trabalho, mas principalmente por uma nova exclusão social, caracterizada pelo desemprego estrutural que atinge os polos industriais mais desenvolvidos (ALVES, 2000, p. 259).

Nesse sentido a complexidade das relações sociais mediadas pela maior ou menor inserção no mundo do consumo, faz com que o valor dos seres humanos passe a ser aferido pela sua capacidade de consumo, sendo que dessa maneira, aqueles que não se inserem no mercado de trabalho e não são capazes de consumir são diferenciados e excluídos.

Como aponta Xiberras (1993, p.22) “o excluído seria, pois, aquele que é

rejeitado para fora dos nossos espaços, dos nossos mercados materiais e/ou simbólicos, para fora dos nossos valores”.

Pensando a exclusão dentro da esfera das representações normativas da sociedade, encontra-se no mesmo autor, a seguinte constatação,

A pobreza significa a incapacidade de participar no mercado de consumo. O desemprego sublinha a capacidade de participar do mercado da produção. Estes dois fenômenos, pobreza e desemprego, se bem que excluam diferencialmente do mercado, serão, pois, considerados como processos similares na sua maneira de rejeitar os homens para fora do que a sociedade moderna detém de mais invejável: a esfera dos bens e dos privilégios econômicos. Esta primeira forma de exclusão consiste, de facto, numa ruptura do laço econômico que liga fielmente, ou normativamente, os actores sociais ao modelo de sociedade (XIBERRAS, 1993, p.28).

Neste cenário, teve-se a impressão que o grupo analisado não possuía uma organização em seu ambiente de trabalho, porém, com o passar do tempo, através do convívio, essa primeira impressão se alterou significativamente. O lixão era um território organizado dentro das relações de trabalho estabelecidas pelos trabalhadores, o grupo era dividido e cada um tinha o seu papel.

Essa primeira impressão de desorganização se deu pela estranheza ao lugar, aos costumes tecidos pelo grupo de pesquisadores, em uma tentativa de adentrar nesse mundo, repleto de valores e conceitos. Não eram os catadores de materiais recicláveis

“os diferentes”, mas sim, os pesquisadores. A partir do momento em que a aproximação

foi se dando de maneira recíproca e um sentimento de confiança foi surgindo, pôde-se começar a enxergar, entender e participar das relações que aconteciam no lixão, como a história dos trabalhadores até chegarem lá, a divisão do trabalho no “garimpo” dos

materiais recicláveis, à venda semanal para “os gatos” (atravessadores que compravam

os materiais no lixão), ou seja, a rotina do dia a dia de trabalho.

Para que as análises tivessem validade foi fundamental a realização de trabalhos de campo que proporcionaram a constatação de inúmeros processos na organização dos trabalhadores em outros municípios, além do conhecimento das histórias de vida contadas pelos trabalhadores em conversas informais. A vivência e conhecimento das lutas destes trabalhadores em diferentes municípios foram fundamentais para tecer relações entre a teoria e a prática, entre o saber científico e o saber popular e a aproximação entre a pesquisa e o pesquisado. Em uma observação participante no

processo de organização dos catadores do lixão de Presidente Prudente. (BRANDÃO, 1990).

O lixão passa então a ser compreendido, devido ao entendimento e valor atribuído pelos catadores de materiais recicláveis como espaço de trocas e vivências, um território que é processo, que é dinâmico (Haesbaert, 2002), além de ser um espaço cultural no qual há valores referentes à identidade dos trabalhadores.

Ressalta-se que espaço e território não são sinônimos, e que o espaço antecede o território, como afirma Raffestin (1993, p.143),

O território se forma a partir do espaço, é o resultado de uma ação conduzida por um ator sintagmático (ator que realiza determinadas ações) em qualquer nível. Ao se apropriar de um espaço, concreta ou abstratamente [...], o ator

“territorializa” o espaço. (RAFFESTIN, 1993, p.143)

Sendo assim, esses trabalhadores se apropriam do espaço do lixão e através das ações realizados no local, o territorializam, porém, como discute Bonnemaison7 (1997, p.77) apud Haesbaert (2007, p.40) essas pessoas (os catadores do lixão) “não possuem o

território, mas se identificam com ele”, ou seja, há um sentimento arraigado e

construído através do trabalho da catação dos materiais recicláveis que cria um valor para aquele lugar do qual retiram o seu sustento, e no qual passam a maior parte do tempo trabalhando. Em pesquisa realizada com os trabalhadores do lixão no ano de 2001, verificou-se que dentre eles, alguns passavam a semana trabalhando e morando em barracos construídos com materiais do lixão e que só voltavam para as suas casas nos fins de semana depois da venda dos materiais.

É através das relações baseadas na divisão do trabalho que o processo de construção de uma dimensão simbólica da catação dos materiais recicláveis se dá, os conflitos vividos, o processo de exclusão e a identificação com um grupo que congrega das mesmas necessidades dão ao lixão um valor, e é por isso que estes trabalhadores criam nas relações cotidianas sua inclusão neste território através da catação.

Neste processo cria-se a identidade de catador, e como afirma Woodward8

(2004, p.10) apud Haesbaert (2007, p.43) “a construção da identidade é tanto simbólica quanto social”.

7

BONNEMAISON, J.Les gens de lieux: Histoire ET gésymboles d´une societé enracinnée: Tanna.Paris: èditions de l´ORSTOM, 1997.

8 WOODWARD,K. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In:Silva, T (org.)

Pensando sobre o conceito de identidade e tendo em vista a exclusão de grupos que não são aceitos socialmente, Bauman, (2007, p.46) traça algumas análises sobre classes desfavorecidas, chamadas de “subclasse” e a construção da identidade,

Se você foi destinado à subclasse (porque abandonou a escola, é mãe solteira vivendo da previdência social, viciado ou ex-viciado em drogas, sem-teto, mendigo ou membro de outras categorias arbitrariamente excluída da lista oficial dos que são considerados adequados e admissíveis), qualquer outra identidade que você possa ambicionar ou lutar para obter lhe é negada a

priori. O significado da “identidade da subclasse” é a ausência de identidade,

a abolição ou negação da individualidade, do “rosto” – esse objeto do dever ético e da preocupação moral. Você é excluído do espaço social em que as identidades são buscadas, escolhidas, construídas, avaliadas, confirmadas ou refutadas. A subclasse é um grupo heterogêneo de pessoas que – como diria Giorgio Agamben – tiveram o seu “bios”, ou seja, a vida de um sujeito socialmente reconhecido reduzido a “zoe” (a vida puramente animal, com todas as ramificações reconhecidamente humanas podadas ou anuladas) (BAUMAN, 2007, p.46, grifo do autor).

Neste conjunto de ações vividas pelos catadores, redes de cooperação entre eles foram sendo construídas com o passar dos tempos (o atual lixão de Presidente Prudente tem aproximadamente 15 anos de existência) e nesta sistemática roda de trocas coletivas e plurais, ao meio de tensões e contradições, se deu o processo de tessitura da identidade desse grupo. Porém, como afirma Castells (1999, p.23), “identidades, por sua vez constituem, fontes de significados para os próprios atores, por eles originadas, e

construídas por meio de um processo de individualização”, ou seja, a construção é

coletiva, porém, a interiorização dos valores criados é individual.

Neste sentido, a transição de catadores e catadoras para cooperados e cooperadas pode ser analisada segundo a citação de Castells (1999), pois, se a interiorização dos valores é individual, o reconhecimento e decisão da saída do lixão também são. Desta forma, os embates nesta nova configuração do grupo que serão inseridos em uma nova forma de organização do trabalho também serão repletos de tensões, de avaliações de valores, até que se crie uma construção coletiva com aqueles que apostaram no sucesso de um empreendimento cooperativo.