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CATADORES DE MATERIAIS RECICLÁVEIS: EXCLUSÃO, TRABALHO E IDENTIDADE

1.4. O reconhecimento político, cultural e econômico do catador

Diante do exposto, há apontamentos para a existência de alternativas capazes de transformar o modo de vida destes trabalhadores e trabalhadoras, valorizando a ideia de grupo, de reinserção. As Cooperativas Solidárias, empreendimentos alternativos diante do modo capitalista de produção, tem como objetivo a divisão igualitária dos bens produzidos e valorizando o trabalhador.

Dessa forma, a cooperativa passa a ser o território organizado e estruturado pelas relações não só de trabalho, mas de trocas, e de maneira crescente sendo construído com a interação de uma nova forma de se entender e lidar com os resíduos. Nesta perspectiva o que muda não é o objeto de sustento, no caso os materiais recicláveis, mas sim, a forma de como organizar as relações de coleta, separação e venda dos produtos. É nesse momento que o território cooperativo se transforma em espaço de luta e de trocas em uma perspectiva solidária, de conhecimento de diferentes formas de se entender a questão dos resíduos e do trabalho dos catadores de materiais recicláveis.

Esse novo foco de trabalho gera aumento da qualidade de vida dos trabalhadores, melhoria na sua autoestima e gera uma mudança no hábito dos cidadãos já que sem o descarte seletivo da população e de uma coleta seletiva bem estruturada não haverá êxito na organização formal de cooperativa de materiais recicláveis.

Esse papel desenvolvido pelos catadores é de suma importância, pois este processo de mudanças no modo de vida leva a um crescimento informativo para eles e para a população envolvida, há o surgimento de novos comportamentos e atitudes em relação ao descarte dos resíduos gerados e desse modo um aprendizado, e consequentemente a valorização do que antes era descartado sem ser reaproveitado. Esse fato não impacta positivamente somente os catadores, mas o município inteiro, o processo de aquisição de outros hábitos mobiliza setores sociais como a educação, já que as escolas podem ser parceiras nesse processo de esclarecimento e disseminação de atitudes, colocando em prática ações de educação ambiental. Além disso, poderá haver inúmeras doações de empresas privadas, ações culturais, criação de cursos e debates sobre a questão do lixo, e claro, a mudança de hábitos da população, a valorização dos cooperados pelo trabalho importante que desenvolvem realizando a coleta seletiva.

Os cooperados passam a ter um valor positivo, diferente dos aspectos e valores antes designados quando estavam no lixão, essa mudança no valor atribuído a esses

homens e mulheres desmistifica não só o papel negativo para aquele que trabalha com materiais recicláveis, mas o reconhecimento das ações realizadas18.

A transformação de valores é lenta, assim como o processo educativo que se dá concomitantemente às mudanças de hábito, desse modo, para que haja êxito nas ações faz-se necessário o constante trabalho de mobilização social e de educação ambiental.

Em relação aos trabalhadores inseridos neste processo de entendimento e organização do trabalho cooperativo há melhoria na autoestima, estímulo a mudança na valorização do trabalho que realiza, inserção em debates com diferentes setores da comunidade e o conhecimento de outros empreendimentos cooperativos que os insere em grupos que passaram por processos parecidos na construção de empreendimentos solidários gerando trocas valiosas desde a forma de separação dos materiais recicláveis, venda dos produtos e o sentido de se valorizar como catador e catadora de materiais recicláveis.

Deve-se ressaltar que os temas cooperativismo e economia solidária atualmente estão em evidência, resultado de uma crise do capitalismo, trazendo à tona maneiras alternativas de se pensar o modelo econômico vigente além do modo de vida individualizado e excludente (Cattani, 2003).

Segundo Thiollentt (2006), autores como Henri Desroche e Paul Singer são estudiosos relevantes para a análise do surgimento do sistema cooperativo de produção.

De acordo com Desroche, os valores do cooperativismo possuem uma longa história que se origina na tradição do pensamento utópico e, muitas vezes, relaciona-se com crenças religiosas de diversas obediências [...] ou em algum tipo de identidade comunitária. Um cooperativismo sem crenças, sem utopia ou sem ancoragem comunitária seria uma fórmula jurídica e gerencial pouco diferente dos mecanismos de gestão do capitalismo dominante e, muitas vezes, seria utilizado como disfarce para burlar certas leis relativas ao mercado de trabalho, ao comércio, às finanças ou ao fisco. Nesse sentido, o resgate da tradição social humanista do projeto cooperativo é primordial e apresenta um aspecto de demarcação para com outros tipos de projeto, por exemplo, o de empreendedorismo convencional, apenas centrado no negócio. (THIOLLENT 2006, p29).

Deste modo, o cooperativismo aliado à economia solidária, cria além de traços sociais uma identidade para os trabalhadores que se inseriram no processo, pois,

18 Na cidade de Presidente Prudente, no momento da implantação da coleta seletiva no ano de 2002 foram

realizados trabalhos educativos em escolas, igrejas, e na mídia local para a adesão da população, sempre com a participação dos catadores, depois de dois anos de implantação um trabalho investigativo foi realizado com a população em bairros onde existia a coleta seletiva. Maiores informações em CANTÓIA,(2007) e Relatório FAPESP- Processo nº00/02034-0- “Educação ambiental e o gerenciamento integrado dos resíduos sólidos em Presidente Prudente-SP Desenvolvimento de Metodologias para Coleta Seletiva, Beneficiamento do Lixo e Organização do Trabalho".

valoriza o indivíduo, nos seus aspectos sociais, culturais e não apenas como agente que gera lucro, que cria possibilidades através de sua qualificação profissional de aumento na produtividade. O trabalhador não é visto como mercadoria, mas como elemento criador dentro de um grupo, como sujeito social, e se enquadra dentro dos princípios da economia solidária que são:

1. O valor central da economia solidária é o trabalho, o saber e a criatividade humanos e não o capital-dinheiro e sua propriedade sob quaisquer de suas formas.

2. A Economia Solidária representa práticas fundadas em relações de colaboração solidária, inspiradas por valores culturais que colocam o ser humano como sujeito e finalidades da atividade econômica, em vez da acumulação privada de riqueza em geral e de capital particular.

3. A Economia Solidária busca a unidade entre produção e reprodução, evitando a contradição fundamental do sistema capitalista, que desenvolve a produtividade mas exclui crescentes setores de trabalhadores do acesso aos seus benefícios.

4. A Economia Solidária busca outra qualidade de vida e de consumo, e isto requer a solidariedade entre os cidadãos do centro e os da periferia dos sistema mundial.

5. Para a Economia Solidária, a eficiência não pode limitar-se aos benefícios materiais de um empreendimento, mas se define também como eficiência social, em função da qualidade de vida e da felicidade de seus membros e, ao mesmo tempo, de todo o ecossistema.

A Economia Solidária é um poderoso instrumento de combate à exclusão social, pois apresenta alternativa viável para a geração de trabalho e renda e para a satisfação direta das necessidades de todos, provando que é possível organizar a produção e a reprodução da sociedade de modo a eliminar as desigualdades materiais e difundir os valores da solidariedade humana (BRASIL, 2003. III Plenária Nacional da Economia Solidária).

Neste processo de ação cooperada o indivíduo se torna sujeito do e no processo, ele tem liberdade de pensar sobre os procedimentos adotados, pois é parte fundamental do conjunto e se insere numa rede de relações e de traços grupais dando o suporte necessário para o sucesso das ações.

Segundo Singer (2000, p.13),

O modo solidário de produção e distribuição parece à primeira vista um híbrido entre o capitalismo e a pequena produção de mercadorias. Mas, na

realidade, ele constitui uma síntese que supera ambos. A unidade típica da

economia solidária é a cooperativa de produção, cujos princípios organizativos são: posse coletiva dos meios de produção pelas pessoas que as utilizam para produzir; gestão democrática da empresa ou por participação direta (quando o número de cooperados não é demasiado) ou por representação; repartição da receita liquida entre os cooperadores por critérios aprovados após discussões e negociações entre todos; destinação de

excedente anual (denominado “sobras”) também por critérios acertados entre

todos os cooperados. A cota básica do capital de cada cooperador não é remunerada, somas adicionais emprestadas à cooperativa proporcionam a menor taxa de juros do mercado. (SINGER, 2000, p.13, grifos do autor).

Essas organizações econômicas solidárias são os elementos chave para o resgate de homens e mulheres excluídos dentro do circuito econômico capitalista, agem como ferramenta que integra, e criam laços de amizade, já que passaram pelos mesmos problemas. Agora não são mais rejeitados, mas sim inseridos dentro de um grupo de iguais.

A criação dessa identidade de catador de materiais recicláveis é de suma importância na construção da identidade de cooperado, de um trabalhador que se difere dos demais, pois, na cooperativa os ganhos e perdas não se darão sozinhos, o empenho deve ser coletivo para que haja crescimento de todos que estão inseridos nesse empreendimento solidário.

Além desse aspecto, as cooperativas solidárias conseguem maior respaldo já que agregam maior volume de produtos e dessa forma melhores preços no mercado, aumentando a renda e possibilitando melhores condições básicas para que estes trabalhadores possam viver com dignidade.

Ressalta-se que sem o trabalho dos cooperados através da coleta seletiva e do trabalho informal de trabalhadores que recolhem com seus carrinhos pela cidade os materiais recicláveis a situação dos locais de descarte das cidades seriam mais preocupantes, já que são retiradas mensalmente toneladas de material que iriam ser depositadas nestes locais, como indica Lajolo, 2003.

Dessa forma, fica clara a importância desses trabalhadores dentro do circuito da reciclagem, porém, como afirma Zanin e Gutierrez (2011, p.31)

De maneira geral, as formas associativas de produção dos catadores demandam das políticas públicas um conjunto de ações de apoio e fomento que não se diferem das necessidades imediatas dos demais empreendimentos da economia solidária. Trata-se de possibilitar a esse segmento profissional condições para acesso aos conhecimentos, desde a formação e assessoria técnica para gestão coletiva dos seus empreendimentos à realização de programas de qualificação social e profissional específico que dialoguem com as suas necessidades e aspirações, e o desenvolvimento de tecnologias sociais adequadas ao desenvolvimento dessas associações cooperativas, com a ampliação do controle dos trabalhadores sobre outros elos da cadeia produtiva (ZANIN e GUTIERREZ 2011, p.31).

Neste contexto é necessário que haja uma expansão do trabalho do catador, que não fique apenas na coleta, triagem e comercialização dos produtos. A criação de redes de comercialização dos materiais recicláveis entre as cooperativas é um dos caminhos, pois, deste modo, aumentam a quantidade de material podendo ser comercializado

direto para as indústrias saindo dos compradores atravessadores gerando mais renda para os cooperados aumentando a possibilidade de crescimento.

Como afirma Zanin e Gurierrez (2011), as Cooperativas também necessitam de parcerias e assessorias que dialoguem com os cooperados proporcionando debates que construam situações nas quais os cooperados resolvam o problema de forma coletiva, pois, como já dito, trabalhavam individualmente no lixão, porém, na cooperativa, trabalharão coletivamente, em grupo, transição que gera conflitos.

Tendo em vista os assuntos que permeiam as relações de trabalho cooperado, fazem-se necessárias medidas eficazes que atuem de modo a melhorar as ações desses homens e mulheres que lutam todos os dias por maior dignidade. As políticas sociais devem ser pensadas tendo em vista a necessidade dos grupos, que além de formular leis é necessário que sejam colocadas em prática e não apenas declaradas em artigos que não são respeitados.

O papel desses homens e mulheres é demasiadamente importante para a gestão e gerenciamento dos resíduos, e o poder público municipal deve estar presente através de parcerias para que haja a realização de trabalhos dignos e de qualidade.

Dessa maneira muitos grupos de trabalhadores lutam por reconhecimento como categoria, buscando mudanças na forma com são vistos pela sociedade aumentando o respeito pelo seu trabalho. O Movimento Nacional de Catadores e Catadoras de Materiais Recicláveis (MNCR)19 se consolidou em um grupo de grande impacto, já que promove dentro de suas atividades mobilizações junto aos catadores para que haja melhorias nas condições de vida e de trabalho. O surgimento do MNCR foi de grande valia para a categoria de catadores, pois, através de inúmeras mobilizações conseguiu levar para a agenda pública federal a necessidade da discussão sobre a reciclagem.

Segundo Zanin, (2011, p.25),

Esse processo de organização social e política dos catadores é fruto especialmente de um profundo trabalho de base, de formação dos catadores, visando a sua organização e constituição enquanto sujeitos sociais e políticos. Nesse processo, foram constituídas suas primeiras ferramentas e estratégias para que os catadores pudessem levar adiante suas reivindicações e lutas por direito. Foi importante, neste período, o trabalho de igrejas e pastorais, passando pelo apoio do Fórum Nacional de Estudos sobre a População de Rua, criado em 1992. Um lento e persistente trabalho de cultura e conscientização resultou na constituição no final dos anos 90, de importantes instituições dos catadores de resíduos recicláveis, confluindo para a criação do MNCR em 2001 (ZANIN, 2011, p.25).

19

Percebe-se que, o trabalho das bases foi e continua sendo de fundamental importância para o fortalecimento do grupo, esse papel de desenvolvimento em cada cooperativa e associação não seria possível sem a colaboração de inúmeras parcerias. Porém, ressalta-se que deve haver entre as bases e a direção do MNCR transparência nas ações e a prática da solidariedade e dos conceitos básicos de cooperativismo e da economia solidária, para que a trajetória de lutas e conquistas continue ocorrendo.

A cada luta em suas bases os trabalhadores proporcionam melhorias em âmbito nacional, e as lideranças de base são de fundamental importância nos encontros para que os problemas de cada grupo sejam discutidos, gerando um trabalho de equipe.

Dentre as conquistas dos catadores houve em 2010 a aprovação da Política Nacional dos Resíduos Sólidos (PNRS) já que há “o reconhecimento do resíduo sólido reutilizável e reciclável como um bem econômico e de valor social, gerador de trabalho

e renda e promotor de cidadania”, e a “integração dos catadores de materiais

reutilizáveis e recicláveis nas ações que envolvam a responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos”, ou seja, agora estes trabalhadores são amparados por lei (PNRS,2010)20.

A PNRS trás o objeto e campo de aplicação no Art. 1o que diz:

Esta Lei institui a Política Nacional de Resíduos Sólidos, dispondo sobre seus princípios, objetivos e instrumentos, bem como sobre as diretrizes relativas à gestão integrada e ao gerenciamento de resíduos sólidos, incluídos os perigosos, às responsabilidades dos geradores e do poder público e aos instrumentos econômicos aplicáveis. (PNRS, 2010)

A PNRS, trás nas “disposições legais” a organização dos planos de resíduos

sólidos em âmbito nacional, estadual, microrregionais e de regiões metropolitanas e que terão até o final de 2012 para se adaptarem às novas regras, dentre elas, a inserção efetiva dos catadores de materiais recicláveis nos processos de gestão e gerenciamento, participando das fases de elaboração de estratégias para o manejo dos resíduos sólidos, assim como contratação dos serviços prestados, aspectos discutidos no capítulo II.